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O realismo norte-americano e a escola jurídica escandinava

Capítulo 1: O direito e o contexto decisório

1.4 O realismo norte-americano e a escola jurídica escandinava

Ao lado de concepções normativistas, que acabam por assumir uma postura preponderantemente legalista, desenvolveram-se também, a partir da virada do século XIX para o século XX, modelos explicativos do fenômeno jurídico genericamente enquadrados como visões sociologistas. São construções teóricas empiristas que encaram o direito a partir dos seus aspectos fáticos. Também apresentam-se como sistemas reducionistas, uma vez que privilegiam um dos elementos pertinentes ao direito, o “fato” concreto e observável. Se se utilizar a metáfora do direito como um verdadeiro edifício jurídico, o que interessa a este enfoque, sobretudo, é

a funcionalidade do edifício, isto é, para que serve cada um dos seus elementos – que necessidade social ou individual pretende satisfazer – e para que serve – que lugar ocupa – todo o edifício do conjunto de que forma parte [ ... ] e não pretende substituir a perspectiva estrutural (normativismo jurídico) na descrição do direito, mas sim completá-la, enriquecê-la18

(ATIENZA, 1997, p. 21).

O direito, assim, não é só linguagem, normatividade, mas também realidade social, comportamento humano.

Um dos modelos a exemplificar tal postura é o realismo jurídico norte-americano. Claro está que por tal denominação há um enquadramento de tendências mais ou menos próximas, que guardam relações muito nítidas de semelhança. O profeta de tal concepção,

18 “la funcionalidad del edificio, esto es, para qué sirve cada uno de sus elementos – qué necesidad social o individual pretende satisfacer – y para qué sirve – qué lugar ocupa – todo el edificio en el conjunto del que forma parte [...] y no pretende sustituir a la perspectiva estructural (normativismo jurídico) en la descripción del derecho, sino completarla , enriquecerla”

homem do século XIX, foi o juiz norte-americano Oliver Wendell Holmes, fortemente influenciado pela filosofia pragmática. Os seus seguidores no século passado, que lograram sistematizar uma verdadeira teoria, coisa que o juiz Holmes não fez, em verdade partiram daquela que era a preocupação maior do precursor – aproximar o direito da realidade concreta, da ação do cotidiano.

Na verdade, o direito enquanto fenômeno vivo nas sociedades humanas é bem anterior a qualquer sistematização científica sobre o mesmo. A sensação do jurídico, das condutas desejadas e das reprovadas, sempre se fez presente nos agrupamentos humanos. A observância de que diante do delito há uma pena a ser imputada de forma obrigatória integra o próprio contexto cultural das sociedades primitivas. O fenômeno jurídico, assim, se apresenta inicialmente como um fato natural, ainda não estimado. Num segundo momento o elemento valorativo associa-se ao contexto normativo, mas a tonalidade do direito como fato social é inquestionável. E isso é que enseja uma necessária estimação desse fato tão significativo no contexto societário.

De certo modo, a chamada escola realista norte-americana chega a se caracterizar por seu extremismo em ater-se quase que exclusivamente aos fatos nos estudos jurídicos. A lógica dessa construção repousa nos seguintes elementos: o direito muda constantemente; o direito é um meio para o alcance de fins sociais; a sociedade muda mais rapidamente que o próprio direito; o jurista deve observar como agem os tribunais e os cidadãos, dando mais ênfase do que a como deveriam agir; o jurista deve desconfiar do fato de que a vida real, decisões de tribunais e condutas humanas, não se encontra fielmente presente nos livros jurídicos; deve suspeitar também da ilusão de que as normas, como são enunciadas, são verdadeiramente fundamentadoras das decisões judiciais. Eis uma síntese das idéias marcantes dessa concepção jurídica (AFTALIÓN; VILANOVA; RAFFO, 1999, p. 283-284).

Outra corrente realista que se pode apresentar, embora guarde algumas diferenças para com o realismo norte-americano, é a Escola de Upsala (Suécia), cujos principais expoentes são Wilhelm Lundstedt, Axel Hägerström, Alf Ross e Karl Olivecrona. A concepção desses pensadores, avessa à visão mítica de um direito eminentemente normativo-formalista, assenta- se no chamado realismo jurídico escandinavo. Para o dinamarquês Alf Ross, o sistema jurídico se estrutura sobre o fato de que as normas são acatadas porque sentidas como socialmente obrigatórias. Ele contesta a idéia, presente em várias concepções jurídico- filosóficas, segundo a qual o direito extrai sua validade de uma tomada de posição a

priori. O conteúdo de uma norma jurídica de conduta, assim, é uma diretiva para o juiz e

um determinado ordenamento jurídico historicamente situado é um conjunto orgânico de regras que estabelece e que faz funcionar o aparato de força do Estado. Na verdade, trata-se de uma construção teórica que se estabelece a partir dos fatos concretos, também incorporando a idéia de um direito em ação (ROSS, 2000, p. 53-100).

Hägerström compartilhou com todos os realistas a tendência anti-metafísica. Ele sustenta que um direito subjetivo, tal como geralmente é concebido, não pode ser identificado com nenhum fato. Assinala que a ciência moderna trata de usar apenas os conceitos que correspondem a fatos, mas no tocante aos conceitos de direitos subjetivos e deveres não é possível identificar tais fatos. A expressão direito subjetivo, assim, não expressa noção alguma de representação. É uma fórmula vazia na medida em que não possui profundidade conceitual. Tem-se a noção do objeto de um direito, mas não do direito ele próprio. Lundstedt, discípulo de Hägerström, lança vigorosa crítica à teoria jurídica, identificando-a como não- científica. Para ele não existem direitos subjetivos nem deveres jurídicos, pois que tais noções não podem ser objeto de uma investigação científica (trata-se de um objeto ilusório). No aspecto meramente realista o direito subjetivo seria uma posição favorável que se estabelece a

respeito de uma pessoa em razão da pressão psicológica exercida nos outros por conta da manutenção de todo o aparato jurídico (OLIVECRONA, 1995, p. 20-27).

As chamadas concepções realistas mantêm, como se depreende do exposto, uma nítida postura anti-racionalista. Elas enfatizam sobremaneira as circunstâncias empíricas, historicamente determinadas. O essencial é assinalar que as noções jurídicas tradicionais pertencem ao contexto da realidade social, apresentando-se, na verdade, como importante elemento desta. Assim, é impossível eliminar a realidade social da ciência do direito, já que ela tem o seu lugar definido. O problema de fundo é descobrir que lugar é este para que possa ser assinalado, se efetivamente há o desejo de se proceder cientificamente.

Se nas explanações normativistas sobre o direito o caráter decisório se faz presente, como elemento essencial, estando atrelado à concretização da norma, mais ainda nas correntes realistas a decidibilidade é marcante. A propósito, a tentativa de compreensão do fenômeno jurídico, para tal concepção, possui como ponto de partida a realidade jurídica viva, as condutas humanas e as decisões judiciais.