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O movimento amoroso interrompido

No documento O AMOR QUE NOS FAZ BEM (páginas 71-74)

O movimento amoroso interrompido, do qual derivam consequências cruciais, é algo muito simples: quando uma criança perdeu, durante um tempo, contato com seus progenitores, com seu pai ou com sua mãe, por doença, por ausência, por entrega em adoção, por morte ou por qualquer outro motivo, o movimento espontâneo amoroso natural de um filho, que consiste em ir com confiança para os pais e abraçá-los, encontrando o suporte e a conexão com eles, fica interrompido e truncado. E ntão, o filho, em vez de ir diretamente aos pais e abraçá-los com amor, aprende a congelar seu coração e seu corpo e a assumir uma postura defensiva, como quando diz, por exemplo: “Grito, e assim vão fazer o que eu quero”, “Choro, e assim eles virão até mim”, “Sou crítico para com meus pais e assim não sofro”, “Eu me tranco, e assim fico protegido”, entre outras frases. São formas de buscar o amor, mas por um caminho torto. Na

realidade, trata-se de estratégias indiretas, tortuosas e complexas de busca de amor e conexão com os outros, que configuram a paisagem da neurose e do sofrimento humano. O que as pessoas costumam fazer, a menos que desenvolvam consciência suficiente ou curem bem as feridas, é repetir esse esquema relacional/afetivo na troca amorosa. Por exemplo, se a relação com os pais for de vítima, facilmente se repetirá o esquema com o parceiro, até que o outro, que provavelmente adotou um papel salvador com os seus, perceba que não consegue salvar essa pessoa e a relação se deteriore ou acabe em violência e grande desânimo. Esta é, enfim, a outra face do amor que nos faz bem.

Pessoalmente, acho que essa interrupção do movimento amoroso espontâneo e natural para os progenitores não ocorre só quando há uma separação precoce e dolorosa da mãe ou do pai, ou dos dois; ela é universal, todo mundo o interrompe em algum momento, às vezes de uma maneira grave e outras de uma maneira mais suave. Ou seja, todos experimentamos algum tipo de queda do paraíso amoroso biológico cheio de inocência e ingressamos penosamente nas filas do medo, transformando a pureza de nosso coração em uma tortuosa negociação com o amor. Wilhelm Reich, conhecido como um dos pioneiros na introdução do corpo e sua couraça muscular na terapia, falou da praga emocional que se perpetua ent re pais e filhos. Isso quer dizer que até mesmo os melhores pais, ou os pais mais bem-intencionados e amorosos, em algum momento ferem seus filhos, e também todos os filhos em algum momento ferem seus pais. As feridas e a falta de respeito também fazem parte de qualquer relação de intimidade. A ferida pode ser grave, como quando se perde um dos pais, ou quando ocorrem abusos ou violência, ou mesmo quando o feto sofre por excesso de emoções estressantes ou pelo uso de substâncias tóxicas durante a gravidez; mas, de qualquer maneira, cabe a todos nós descobrir e trabalhar de que maneira interrompemos esse movimento amoroso espontâneo, e que estratégia, que estilo afetivo, que modo tortuoso, que negócio vincular indireto geramos ao fazê-lo. Porque muito provavelmente vamos levar ao relacionamento esse estilo afetivo e teremos de revisá-lo.

Alguns casais se instalam em estilos afetivos que não se encaixam e que causam muito sofrimento e muita desnutrição. O casal tem de tolerar e

sustentar certa dose de mal-estar, ou de tensão ou de estresse em certos contextos, mas, quando essa situação se torna crônica, as pessoas perdem vitalidade, ficam desnutridas. E uma das funções dos membros do casal é ser nutritivos e acompanhar um ao outro. Enfim, somar mais que dois. Existem muitos estilos afetivos possíveis. Por exemplo, o “eu, e acima de tudo eu mesmo”. Certas pessoas levam esse estilo ao extremo e escondem a grande necessidade que têm de se fundir no outro, de depender do outro, de cair nos braços do outro. No extremo oposto há quem aposte em um “furiosamente você em vez de eu mesmo”. Trata-se de pessoas que se adaptam e trilham o caminho do outro, e escondem sua necessidade imperiosa de dizer um dia “eu” e atender às suas próprias necessidades. Ao unir um estilo “eu” com um estilo “você”, pode até ser que haja um encaixe durante um tempo, mas algum dia essas pessoas entrarão em crise. Se souberem como fazer, vão mudar seus parâmetros, e quem dizia tanto “eu” dirá também um pouquinho “você”, e quem dizia tanto “você” dirá um pouquinho “eu”. Algumas vezes poderão se ajustar. E outras vezes não. Como se pode consertar esse movimento amoroso interrompido? Não é fácil, mas qualquer reparação possível passa por aceitar de coração nossos pais e aquilo que um dia fez doer e foi difícil. E não basta ter clareza mental dos mecanismos, nem saber como funcionam; é necessário também trabalhar com o corpo e liberar sentimentos e emoções presos nele. O corpo guarda memória de nossas feridas e traumas e precisa se descongelar, desapertar, soltar-se, voltar a confiar e a se sentir inocente. E, para isso, são necessários métodos ativos, e não só discursivos, e técnicas cênicas, teatrais, psicodramáticas, gestálticas, corporais, de Constelações etc. Enfoques que fornecem vivências, e não só pensamentos, que facilitam reestruturações emocionais e orgânicas, além de cognitivas. É necessário, enfim, dar amparo à dor do que aconteceu sem nos defendermos, durante o tempo suficiente para que se torne amor. É preciso “reabraçar” nossos pais até nos rendermos e retornar ao fluxo do movimento amoroso espontâneo que foi interrompido. É imperativo abrir o coração àquilo que nos fez sofrer, não porque o sofrimento em si mesmo seja curador, mas porque abrir o coração é.

De resto, acho que habita em todos nós um núcleo de amor biológico, transcendente, uma instância profunda que só conhece o amor, na qual descansamos quando nos assentamos mais e mais em nossa verdadeira natureza.

No documento O AMOR QUE NOS FAZ BEM (páginas 71-74)