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O coração treme

No documento O AMOR QUE NOS FAZ BEM (páginas 87-90)

A imagem interna de muitas pessoas não é tanto a de ser um(a) companheiro(a), mas de ter um(a) companheiro(a). E isso indica uma diferença de tom nada desprezível em nossa atmosfera interior e em nosso movimento para ela. Deveríamos nos perguntar se fomos educados e crescemos com a ideia de ser parceiro(a) e cultivar em nós o s valores de ser um(a) verdadeiro(a) companheiro(a), ou se pensamos em termos de preencher um vazio e de arranjar companhia com a perspectiva falsa, como já vimos, de encontrar a felicidade, ou pelo menos de ser menos infelizes. Para o bem ou para o mal, vivemos tempos nos quais o valor central é o “eu”, que tem muito mais peso que o “nós”. Nunca como agora o indivíduo (e o individual) foi tão importante, usufruiu e padeceu tanta liberdade, foi tão epicêntrico, tão nuclear e tão aparentemente senhor de se u próprio destino. De fato, talvez nunca como nos tempos atuais o casal tenha respondido aos desejos pessoais tão acima dos desígnios, necessidades e costumes do grupo, como costumava ser outrora. Na atualidade é frequente que muitos casais terminem seu trajeto juntos porque deixam de satisfazer o outro e porque, diante de situações difíceis e estressantes, seus membros se inclinam ao eu e a seu próprio caminho pessoal.

Em outras culturas e outros tempos, o casal tinha um sentido mais social. De fato, fazia parte do espírito do grupo, e não era tanto o patrimônio das pessoas que o formavam quanto um patrimônio comunitário. O casal estava inserido em uma sociedade significativa de sentido, de serviço e de apoio. Isso apresentava vantagens e inconvenientes. Quando o casal estava imerso em uma comunidade significativa, a relação era mais leve e previsível, pois eram menores as expectativas que depositavam um no outro, e costumava se desenrolar pelos caminhos traçados pelas normas sociais. Mas a nós coube viver uma apavorante e maravilhosa liberdade, com seus gozos e suas sombras, e cuidar de nosso destino pessoal, no máximo familiar, mas em menor medida comunitário, que fica um tanto manchado.

Em suma, o casal, a família nuclear, não está atualmente contida nem sustentada por redes sociais ricas, e isso gera tensões muito grandes e dificuldades para superar as grandes exigências que se depositam nela, bem como os desafios existenciais que visitam o itinerário vital de todas as relações amorosas. Esses desafios podem ser, como eu dizia, a doença grave de um filho, uma morte, um problema financeiro, uma mudança de país, a perda de um dos pais etc. São acontecimentos que podem afetar a todos e que são muito mais difíceis de enfrentar sem esse apoio, sem essa inserção social. Se o casal não conseguir viver unido essa transição emocional, ficará ferido internamente. O coração treme no indivíduo e ocorre a ruptura, mesmo que continuem juntos, pois um casal pode estar separado na alma mesmo que o relacionamento perdure. E o coração que não aceita doer, ser visto, ser escutado, ser expressado, ser reconhecido por outro ou outros, sofre.

Ninguém quer sofrer, evidentemente, mas, se não aceitarmos que em algum momento podemos sofrer, não haverá vínculo nem verdadeira experiênci a amorosa. Algumas pessoas não se vinculam a outras para evitar ficar de coração partido, mas sem vínculo não há amor nem vida. Além de meus estudos e de minha formação e experiência profissionais, para acompanhar as pessoas nos workshops sobre assuntos de relacionamento tenho como recurso principal minha própria experiência afetiva, pois no caminho do relacionamento eu também amei e sofri profundamente, e me expus ao vínculo verdadeiro, com todas as suas bênçãos e também com seus

sofrimentos, e a uma dor muito profunda quando me coube viver separações e desencontros. Por isso, tenho a meu favor o fato de que eu soube amar e soube sofrer (pelo menos é o que acho). Assim é o teatro da vida: todas as relações de intimidade nos expõem ao gozo e ao sofrimento. E temos de aceitar os dois aspectos.

Quando o coração treme, ajuda lembrar que não estamos sozinhos. Talvez a história a seguir ofereça um pouco de esperança.

Contam que uma pessoa morreu e, ao chegar às portas do céu, encontrou Deus. E Deus disse:

- Vamos dar uma olhada em sua vida.

Então viram, como em um filme, toda a vida da pessoa: os fatos significativos, o amor, a dor, os encontros, os desencontros, as feridas, as dificuldades, as alegrias, o feito, o pendente etc. Quando acabaram, a pessoa disse a Deus:

- Tenho de lhe fazer uma pergunta. Notei que em alguns trechos do caminho há quatro pegadas, e isso me faz pensar que você caminhava a meu lado. Mas, curiosamente, nos trechos mais difíceis, naqueles em que eu estava caído, sofria profundamente ou tentava encarar problemas quase sem forças, havia somente duas pegadas. Minha pergunta é: por que me deixou sozinho nesses momentos?

E Deus, sorrindo, respondeu:

- Eu nunca o deixei sozinho. Na verdade, nesses momentos eu o carreguei no colo.

Nós fazemos o que podemos para lidar com nossos assuntos da melhor maneira possível, mas há momentos em que é necessária uma entrega maior, como se tivéssemos de aceitar a ideia de que uma sabedoria maior cuida das tramas das coisas e que podemos nos confiar a ela, e que não estamos sozinhos. Especialmente quando tudo desaba ou reorientamos nossa vida. Isso é algo que às vezes nos chega ao corpo como um conhecimento ineludível que nos guia, embora seja difícil de entender para nossa mente e nossa vontade. Às vezes o corpo sabe, e encontramos a

necessidade de nos render a esse conhecimento, rendermo -nos perante o que ele nos exige, perante o que não foi possível, perante o que desejamos muito e não conseguimos, perante o que obtivemos e depois foi desaparecendo de nosso coração consumido. Encontramos, por fim, a humildade, o aroma básico da rendição e de uma vida conquistada mesmo com suas fendas (ou graças a elas). Para o bem ou para o mal, grandes perdas em um nível são grandes ganhos no plano do espírito; ou, ao contrário, o que parecem grandes ganhos em um nível são grandes perdas em nossa alma.

No documento O AMOR QUE NOS FAZ BEM (páginas 87-90)