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Uma nova oportunidade

No documento O AMOR QUE NOS FAZ BEM (páginas 111-115)

Diz uma velha história oriental que, quando Deus criou o homem e a mulher, ele o fez em um só corpo, de modo que ambos desconheciam o sentimento de solidão e de carência. Estavam juntos, fundidos, completos, e eram felizes. Mas logo surgiram dificuldades. Às vezes, o homem queria caminhar para o oeste e a mulher para o leste. Às vezes, o homem queria deitar para descansar e a mulher queria continuar caminhando. Por cont a disso, começaram a brigar, até que um dia pensaram: não seria melhor nos separarmos? Então, foram falar com Deus e lhe disseram:

- O senhor seria misericordioso e nos daria dois corpos?

E Deus, que efetivamente é misericordioso, concordou. E ao homem deu um corpo de homem, e à mulher um corpo de mulher.

Ambos se sentiram muito felizes com seu novo corpo. Cada um podia avançar na direção que queria, de modo que um dia o homem começou a caminhar para o oeste e a mulher para o leste. Mas, quando já caminhava m havia um tempo em direções opostas, sentiram uma ponta de desânimo, pois sentiam falta um do outro, e perceberam que se necessitavam. Fizeram o caminho contrário e correram para se encontrar de novo. O mesmo episódio aconteceu várias vezes: quando estavam juntos durante um tempo, tornavam a sentir a necessidade de caminhar cada um para um lado; mas,

quando o faziam, sentiam aquele mal-estar, de modo que faziam o caminho contrário para se reencontrar.

Assim, diz a lenda, estão há muitos anos, e ainda não conseguiram resolver o problema. Querem pedir a Deus que os ajude, mas não sabem o que pedir. Vivem em tensão, no anseio de ser um e no anseio de ser dois, em um conflito não resolvido que já faz parte de sua natureza.

Todas as pessoas experimentam as duas necessidades, de união e de independência, mas em graus e maneiras diferentes. Assim, encontramos pessoas altamente voltadas para a fusão com o outro, e outras, para a autonomia. Costuma-se dizer que no relacionamento um tem a energia centrípeta e o outro a centrífuga, um olha para dentro e o outro para fora. Cada casal negocia como satisfazer essas necessidades em ambos, respeitando suas tendências e estilos pessoais. Muitos fracassos no relacionamento se devem a uma má conjugação da satisfação dessas necessidades; por isso, quando nos dirigimos a um novo relacionamento, é de grande ajuda ter clareza das próprias necessidades e tendências, de maneira que possamos encontrar uma pessoa com quem nos sintonizemos sem graves conflitos.

É óbvio que os extremos geram dificuldades especiais. Algumas pessoas se perdem na fusão, pois temem encontrar a si mesmas, e outras se perdem no excesso de independência, pois temem se diluir no outro. Em ambos os casos convém que trabalhem consigo mesmas, talvez terapeuticamente, para flexibilizar suas posições, pois nenhum extremo é bom.

Cada nova relação é uma nova oportunidade de recuperar o vínculo original, de ter acesso ao aroma do um e indiviso que é prelúdio de um vínculo de amor, e que em muitos casais se concretiza no re al, na poderosa união de almas que experimentam, ou por meio dos filhos. As segundas ou terceiras relações são também uma nova oportunidade para amar melhor, e especificamente para combinar a paixão com a clara percepção de como é o outro, para abrir os olhos e ver. Para caminhar rumo à unidade na clara percepção das diferenças.

para viver o caminho da entrega, que adoça e domestica os delírios e medos do eu pessoal. A entrega significa: “Eu amo você, e também amo aquilo que o dirige. E amo a mim, e também amo aquilo que me dirige. E amo a nós e amo aquilo que nos dirige. E me entrego às forças que nos dirigem aonde quer que elas nos levem, mesmo que para longe um do outro, ou a lugares estranhos ou que não desejaríamos”. Quando isso acontece, é possível amar no outro seu próprio destino, sua luz e sua sombra, sua alegria e sua doença, e até sua morte.

O casal pode representar diferentes dimensões do amor, e uma delas, misteriosa, consiste em amar não só o outro, mas o espírito que o guia. O espírito é uma sabedoria maior que cuida de nós e nos conduz de um modo imprevisível, seguindo uma lógica que não é a da vontade. Chacoalha -nos ou nos abençoa, levanta-nos ou nos derruba, dá ou tira, cura-nos ou nos faz adoecer, ou morrer, submete-nos a crises e nos reorienta, faz com que algo comece ou acabe. O espírito move tudo do seu próprio jeito e sem descanso. Alguns casais conseguem viver a entrega. Em certa ocasião, conheci um casal que havia tido filhos, os criado e conseguido ser uma família forte e um casal muito comprometido. Quando ele completou cinquenta anos, disse a sua mulher que queria viver plenamente sua homossexualidade. Ela se sentiu ferida, claro, porque desejava que seguissem junt os como casal, mas foi capaz de reconhecer que naquele momento aquilo era o que seu marido necessitava e expressou seu respeito e apoio. Com amor, e também com dor, deixou que ele fosse. Isso é um resumo do que aconteceu, claro. Certamente foi um pouco mais complexo, mas assim é a entrega: acontece quando a vida e o relacionamento já não estão em nossas mãos, e sim nas de alguém maior que move os fios da vida de seu jeito estranho, e concordamos que assim seja.

Conheci pessoas que passam a vida se apaixonando e se desapaixonando, criando ilusão e sua consequente desilusão, em uma roda-viva repetitiva que muitas vezes acaba sendo insatisfatória. Eu não as julgo por isso, e acho que a vida também precisa dessa dança. E algumas pessoas chegam talvez ao cúmulo da insatisfação, o que acaba sendo um poderoso estímulo para mudar. Também conheci pessoas que passam a vida explorando

relações sem escolher nenhuma delas, ou explorando relações paralelas. Aventuram-se por um tempo, mas não escolhem nem se comprometem. E não as julgo. Cada um com sua vida, sua sorte, suas vivências e o preço a pagar. Também respeito a vida delas como é. Conheci pessoas que estiveram comprometidas em um relacionamento, que viveram o compromisso, que o vivem de uma maneira forte e durante mu ito tempo, e isso lhes dá uma tranquilidade e uma força especial. E também não as julgo. Não me parece bom nem ruim. Eu me abstenho de opinar, como diria um cético pirrônico. Respeito a vida dessas pessoas como ela é. Também conheci pessoas que foram submetidas a movimentos que exigiram sua rendição, entrega absoluta a destinos imprevisíveis. E conseguiram realizar esse movimento espiritual interno. Também respeito sua vida. Qualquer vida, como ela é, me parece respeitável.

Não é obrigatório conseguir se entregar, assim como não é obrigatório se apaixonar nesta vida. Vivemos o que vivemos, e, às vezes, um movimento nos faz progredir e nos entregarmos, ou, ao contrário, deixar o companheiro. E tudo bem. Como eu dizia no início do livro, eu vi muitas pessoas sofrerem por não se encaixarem na teoria de como deveriam viver a vida.

O sufismo iluminou o poeta Rumi, que talvez tivesse seu equivalente católico em São João da Cruz ou Santa Teresa d’Ávila. Um de seus poemas diz:

O ser humano é como um albergue. A cada manhã chega alguém novo. Este é uma alegria, este outro é tristeza, ali vem a mesquinhez

e aqui uma faísca de consciência.

O pensamento escuro, a vergonha, o malicioso, podes encontrá -los à porta, sorrindo para você; convide-os a entrar.

Seja grato com quem vem, porque cada um foi enviado como um guia do além.

Aquilo que vivemos é necessário, diz Rumi, porque é algo enviado pela Grande Inteligência com propósitos que com frequência só

compreenderemos mais tarde, ou talvez nunca. Aceitando-o, damos um salto e de certo modo nos sentimos guiados em nossa viagem particular; e, com sorte, aprendemos. Então, talvez estejamos mais disponíveis para um relacionamento, mas, ainda assim, não sabemos se nosso destino é permanecer solteiros, ou ser religiosos, ou morrer hoje mesmo. O que sabemos? Sabemos se é melhor viver ou morrer, ter uma vida longa ou curta, ser casado ou solteiro, ser simpático ou antipático? Passamos boa parte de nossa vida amorosa perseguindo quimeras, mas só podemos amar, a cada momento, o real; o ideal não existe. Amar o real nos outorga a possibilidade de ser felizes.

No documento O AMOR QUE NOS FAZ BEM (páginas 111-115)