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O poder que convida o poder

No documento O AMOR QUE NOS FAZ BEM (páginas 44-48)

Para que as coisas circulem sobre os trilhos do amor que nos faz bem, nenhum dos dois deve sentir que tem poder sobre o outro, mas deve contribuir para que o outro alcance o máximo poder em si mesmo. A realidade, não obstante, é que os dois membros do casal com frequência se envolvam em lutas de poder que minam a relação. De fora, quase sempre parece que o homem é o mais forte. Contudo, muitas mulheres, no íntimo, julgam-se melhores que seu companheiro. Não se pode generalizar, claro, mas me consta que isso acontece com frequência. E, quando falta entre os dois o verdadeiro respeito, a relação começa a ser desigual e mais competitiva que cooperativa, rompe-se a franqueza e a felicidade do vínculo profundo, mesmo que o relacionamento perdure.

Tanto homens quanto mulheres podem tentar imaginar se seriam capazes de inclinar a cabeça, suavemente e de coração, perante o(a) companheiro(a), e viver isso como um gesto de reconhecimento e respeito a sua existência e sua realidade, e não como uma humilhação e uma derrota. É possível? Fugindo de preconceitos e ideologias, o que encontro em minha experiência real nos workshops é que as pessoas que lutam e competem vivem isso como impossível, ao passo que as que sentem amor e

consideração por seu(sua) parceiro(a) experimentam-no como alegria, beleza e liberdade.

Há outro exercício interessante: olharmos para o(a) parceiro(a) e nos perguntarmos, de forma nua, crua e verdadeira, se nos sentimos superiores, iguais ou inferiores. Não em uma área determinada, não no atletismo ou no sudoku, não na culinária ou na jardinagem, mas sim no essencial, no mais íntimo de nossa verdade interna. Propus esse exercício aos presentes em um workshop, e, curiosamente, contra o que se poderia esperar, mais mulheres se sentem melhores que os homens. Sei que isso pode ser polêmico, mas é o que diz minha experiência: muitas mulheres se sentem melhores, algumas se sentem iguais e só algumas se sentem piores. Com os homens é o contrário: só alguns poucos se sentem, na realidade, melhores que a companheira, muitos se sentem iguais e muitos se sentem piores. Acredito que o homem, no íntimo, tem ciência do poder da mulher, do poder afetivo, do poder que lhe dá a maternidade, de sua intimidade emocional, de como sabe se mover em termos de comunicação, relação e vida, ou seja, nos assuntos essenciais. Talvez por isso o homem tenha dominado o poder econômico ou político, porque estava assustado com sua ignorância nos assuntos emocionais e analógicos. Até agora nos diziam que a mulher só tinha o poder dos sentimentos, mas acontece que são justamente os sentimentos que movem o mundo, inclusive o mundo dos poderes econômico e político.

Seja como for, é conveniente estendermos o olhar, de um modo mais amplo, para o fato de que tanto homens quanto mulheres são afetados por um mal maior, por uma praga emocional de maior alcance que nos mantém doentes em nossa humanidade, que vem da expulsão do paraíso comunitário e tribal de nossos antepassados caçadores-coletores, para passar à mente patriarcal na qual estamos culturalmente submersos, e que quase confundimos com nossa natureza, na qual o outro já não é um irmão, e sim um inimigo. Vivemos mergulhados em um paradigma competitivo que julgamos natural, infectados como estamos pela grande importância do eu pessoal. No livro La mente patriarcal, Cláudio Naranjo faz um diagnóstico preciso dos males do mundo: é essa mesma mente patriarcal, com seus longos

braços que infectam tudo - a concorrência, a luta, a imposição, a inveja e todas as paixões baixas que governam o eu -, que, em sua pretensa grandeza, esquece a verdade essencial de que todos somos um. Um dos antídotos contra a mente patriarcal consiste na feliz integração da tríade básica em cada um: pai, mãe e filho, ou mente, emoção e instinto, e não no predomínio de uma figura sobre as outras.

Voltando ao tema de homens e mulheres, depois de ter feito a mesma pergunta muitas vezes, com idênticos resultados, cheguei a uma conclusão: se tantas mulheres acreditam intimamente que são melhores que os homens, talvez devamos aceitar que seja verdade, que elas guardam uma grandeza maior por conta de sua íntima conexão com a vida. E também fiz uma descoberta agregada: as mulheres mais inteligentes tomam cuidado para que os homens não notem tanto sua grandeza, para não dizer sua superioridade, ou seja, usam-na a favor do amor e do bem-estar compartilhado. A maioria das mulheres sabe que em algum momento terá de cuidar de alguma fragilidade dos homens, que os homens também quebram, que a aparência da força deles é só isso, aparência. É que emocionalmente o homem parece muitas vezes mais ignorante, dependente e vulnerável que a mulher, mas nem por isso tem menos coração. A genuína grandeza se encontra, para todos por igual, na vivência e integração de todas as nossas instâncias internas: mente racional, sent imentos, instinto, intuição e transcendência ou mente espiritual. Mas, para não faltar à verdade, tenho de dizer que em muitos momentos cabe aos homens também apoiar as mulheres, com toda sua empatia e força, por conta das fraquezas e sofrimentos emocionais delas.

Na luta de poder que às vezes ocorre, algumas mulheres brigam pelas mulheres anteriores. Sua luta é, na realidade, aquela que as mulheres que as precederam não puderam travar com seus homens. Em algumas culturas até lhes é negado o estatuto de seres humanos em igualdade de condições. Foram controladas e subjugadas, de modo que, quando olhamos para o passado, quando cada mulher olha para trás, além do tempo de sua vida, certamente encontra muitas outras que sofreram nas mãos dos homens, que se sentiram subjugadas, humilhadas ou não respeitadas, que tiveram de se sacrificar e enganar e que não viveram a companhia masculina como um

amigo em quem confiar, mas o contrário. E também muitos homens, quando olham para trás, encontram outros homens que não pu deram estar em paz nem sentir confiança nas mulheres, que lutaram contra elas, ou as prejudicaram com sua arrogância e autoritarismo, e por isso se sentem afetados, por uma culpa que não lhes pertence. Por isso, quando os homens conseguem reconhecer e respeitar a culpa dos homens anteriores, e as mulheres conseguem reconhecer e respeitar a raiva das mulheres anteriores, podem ver uns aos outros de um lugar mais atualizado. E, então, começar a confiar.

Em meus workshops faço outro exercício, que consiste em descruzar as pernas e buscar um ponto de equilíbrio interno. Depois, no caso das mulheres, entrar em contato com as gerações anteriores de seu gênero e observar nelas o sofrimento que viveram por culpa dos homens. Elas precisam olhar claramente para essas mulheres antigas e se comover pela força que tiveram de fazer para suportar esse sofrimento, e inclinar levemente a cabeça diante da grandeza de tantas gerações de mulheres que sofreram nas mãos dos homens. No caso dos homens, trata -se de evocar muitas gerações masculinas anteriores e ver neles sua desconfiança, sua tensão, sua violência, e perceber neles sua culpa e seu medo. E também inclinar levemente a cabeça perante o destino difícil de tantos homens que não conseguiram ter a plena confiança nas mulheres. Podem vê-los todos juntos, homens e mulheres, e se sensibilizar pelo que os separou e os fez sofrer, e também se inclinar diante de todos, uni-los e reconciliá-los no próprio coração. Por fim, tanto homens como mulheres devem deixar para trás essas vivências difíceis e pedir a bênção das gerações anteriores para seu próprio bem-estar no relacionamento, agora e no futuro, e com muito amor deixar para trás tudo de ruim e doloroso que viveram.

O verdadeiro poder está em se afirmar na realidade de si mesm o, não em se sentir superior a outra pessoa ou em dominá-la física ou psicologicamente. Experimentamos o próprio poder quando nos enraizamos e nos reconhecemos em nossa experiência real, em cada momento e lugar; quando estamos em conformidade com nossa rea lidade, com nossos sentimentos, problemas, alegrias, vivências, pensamentos, contradições, necessidades; com nosso lugar de origem, cultura, família,

lutas; com nossos desejos de mudar aquilo de que não gostamos ou aquilo que sentimos como injustiça etc., ou seja, quando estamos em sintonia com nossa realidade tal como ela é a cada instante, e a administramos com respeito por nós mesmos e pelos outros.

Todos precisamos sentir nosso poder. Sentir que podemos, que somos adequados, que nos sustentamos sobre nossos próprios pés e somos válidos. Quando vivemos esse poder no relacionamento, o poder de um convida o poder do outro. E, então, os dois poderes produzem cooperação e respeito. Virginia Satir, no livro Contato com tato, ensina que o verdadeiro poder tem a ver com a congruência e com o que ela chama de “as cinco liberdades”: a liberdade de ver e escutar o que está aqui em vez do que se supõe que deveria estar; a liberdade de sentir o que se sente em vez do que se deveria sentir; a liberdade de dizer o que se sente e pensa se quiser em vez de fingir; a liberdade de pedir o que se quer em vez de pedir permissão, e a liberdade de arriscar em vez de optar somente por sentir -se seguro. O poder da congruência foge, portanto, de posições de culpa, vitimismo, hiper-racionalidade ou indiferença, que, para Satir, não deixam de ser lugares de sofrimento e falso poder nas relações íntimas.

No documento O AMOR QUE NOS FAZ BEM (páginas 44-48)