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O amor na maturidade

No documento O AMOR QUE NOS FAZ BEM (páginas 115-118)

Enquanto eu dava forma a este livro, recebi o pedido da revista Anoche tuve un sueño para escrever um artigo sobre o amor na maturidade. Não pude recusar, pois penso que o vínculo do relacionamento afetivo é importante em todas as fases da vida, não só na juventude e idade adulta. E também não pude resistir a incluí-lo neste livro, porque sua leitura me parece doce e esponjosa, como quando do alto de uma montanha, à qual subimos com suor e com deleite, escrutamos nas terras baixas o vale fértil e cortado por abundantes fios de água.

Algumas vezes imaginei a vida como uma viagem de ascensão ao alto de uma montanha que culmina na fase média da vida, e depois somente nos resta a descida. A primeira é o tempo jovem da conquista, na qual fecundamos a vida para que se encaixe com nossos planos e desejos: fortalecemos nossa identidade, edificamos um trajeto profissional, lidamos com os assuntos de relacionamento e criamos filhos (ou não), damos nossa contribuição à vida com o que temos, nossa paixão por conhecer e realizar nos arrasta, e seguimos com todas as nossas forças os caminhos pelos quais somos movidos. Com sorte, chegamos ao alto da montanha e gritamos aos quatro ventos nossas conquistas e sucessos, e invariavelmente nos é devolvido um eco que nos diz que na verdade isso não tem tanta importância; que esse a que chamamos de “eu” e que consideramos o centro de tudo agora vai encarar a descida e as perdas, a compreens ão de que a

vida é efêmera e tem um final, com a imagem da própria morte como estação de destino desenhada no horizonte.

Começa a descida, e, com sorte, se houvermos cultivado certa sabedoria, entramos em um estranho paradoxo: o de que perder e fazer a des cida pode ser suave e produzir uma espécie surpreendente de alegria e felicidade: aquela que vem de quando já não temos de nos preocupar tanto e podemos nos expor ao fluxo espontâneo e confiante da vida. Já não temos de lutar e defender, e experimentamos a doçura do desapego e uma entrega maior à soberania da vida como ela é, acima de nossa vontade pessoal.

Leonard Cohen diz que “Os pessimistas estão muito preocupados porque talvez vá chover. Eu, porém, já estou molhado”. A seguir, acrescenta: “A única coisa que se aproxima de um consolo é o ‘Faça- se Sua vontade’. Devemos nos perguntar até que ponto queremos transformar isso no princípio que rege nossa vida: a ideia de que tudo segue um mecanismo que é impossível entendermos. E que o pegamos ou largamos”.

Costuma-se dizer que o amor jovem é impulsionado pela tirania da sexualidade, com seu imperativo certeiro de que disparemos nossas flechas de vida para o futuro, que o encontro dos amantes arde; que o amor dos adultos se transforma em um amor cuidadoso, que os amantes se tornaram pais e que cuidam de sua prole e do sustento; que o amor maduro é um amor que busca a companhia, o compartilhar e o cuidado, e goza de tranquilidade. Sem dúvida, a paixão, o cuidado e a companhia podem estar sempre presentes em diferentes graus em qualquer fase da vida. Também no amor maduro importa, e muito, o toque dos corpos, os carinhos e a vivência do prazer. E já seria hora, além disso, de que pensássemos abertamente que a sexualidade acaba junto com a vida, e que mesmo na velhice ela tem sua presença, em sua forma particular e diferente da loucura hormonal juvenil.

O amor na maturidade se encaixa com a descida da montanha e, quando a subimos com sentido, a descida representa mais liberdade, tranquilidade, leveza, desapego e entrega ao presente. Os grandes planos já foram traçados, as grandes conquistas já foram realizadas, os filhos, se os houve, já foram criados e são grandes, e agora podemos ser de novo um pouco

crianças e viver de novo o que há e o que cada dia nos traz “com um novo coração trêmulo”, como diria Neruda. No entanto, as adversidades naturais da vida limaram as arestas de nossas paixões e de nosso caráter, as desditas nos sensibilizaram para uma luz que a prosperidade estrita nos mantinha velada, e começamos a entender a linguagem do ser e não somente do ter; o sabor do mistério, e não só o da própria vontade; o gozo do incerto, e não só seu temor.

Surge, então, uma perspectiva madura, sábia, ondulada do amor. A maioria dos estudos reconhece que o índice de felicidade é maior em pessoas de cinquenta e cinco anos em diante, se tiverem saúde. A que se deve isso? A uma mudança de atitude, mais que a uma mudança das circunstâncias. E isso impacta no âmbito do relacionamento, de maneira que o preenche com frutos novos. Vejamos:

Maior pertinência e fusão. Os casais que acumulam muitas milhas

de amor são premiados com uma graça especial, a de ser um só corpo. Assim expressava um casal de idosos, ambos tocados por um evidente prazer de estarem juntos: “Às vezes não sei se a perna dela é minha perna ou a dela”, dizia ele. O anseio de pertencer, fazer parte e estar vinculado profundamente é o maior instinto dos seres humanos. No início queremos estar ligados a nossos pais, depois a nossos companheiros e às famílias que criamos, e, evidentemente, a nosso parceiro na maturidade.

Maior entendimento, compreensão e respeito. Se a viagem própria,

e também a em comum, foi verdadeira e se as pessoas se desenvolveram como verdadeiras, ambos aprenderam o código da tolerância e o apreço ao alheio, aprenderam a sentir o outro tão importante quanto a si mesmo. Flexibilizaram suas crenças e seus mapas da realidade, e abriram o coração para o diferente. E, se além de tudo, acumulam muitas milhas de amor, desfrutam de um grande depósito de atos comunicativos férteis e esquemas de relação previsíveis, que lhes dão o reconhecimento e a segurança de se sentir novamente em casa, sempre.

• Maior alegria, gozo e sentido do presente. Um progressivo relaxamento de nossas paixões, responsabilidades e objetivos franqueia a entrada para um progressivo e inesperado retorno à terra prometida do presente, que nos

faz ecoar o velho paraíso perdido do presente de nossa infância, quando focávamos mais no viver e menos em nossos pensamentos sobre o viver. Com sorte, na maturidade a mente se torna mais silenciosa e mais aberta à alegria por nenhum motivo especial, a alegria de cada momento que a vida continua nos dando, tal como decide ser. No relacionamento começa a edificar-se uma dimensão do amor na qual amamos o outro não tanto pelo que nos produz, move ou satisfaz, mas por ser como é e por estar aí. E os dias se enchem de uma atitude mais prazerosa.

“Inclinado nas tardes, lanço minhas tristes redes aos teus olhos oceânicos”, reza um poema de amor de Neruda. Talvez o amor maduro seja também um amor transcendente. Nesse amor, pelos olhos oceânicos do outro vamos além dele e abrimos esperança, alma e coração a um amor mais amplo que abarca a tudo e a todos. E nos tornamos mais e mais altruístas e generosos. E perto do final sorrimos e continuamos plantando árvores de cujos frutos outros comerão em nosso lugar.

Preferi não citar neste relato os que se compactam com os anos, em vez de algodoar, os que continuam conquistando em vez de saber declinar com dignidade, os que se impõem na maturidade e na velhice em vez de saber morrer um pouco antes de morrer totalmente e ganhar em vida um pouco de vida eterna - o presente maravilhoso - antes que a eternidade nos engula e acolha a todos por igual, com seus enormes braços, como uma grande mãe.

No documento O AMOR QUE NOS FAZ BEM (páginas 115-118)