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Para dominarmos a trama conceitual e obtermos a compreensão prática de uma narrativa devemos ser capazes de responder às questões-chave da narrativa, como “por quê?”, “quem?”, “como?” e “onde?”. Estas devem conduzir ao entendimento da ação por meio da ligação entre os membros, que possuem entre si uma relação de intersignificação. A intriga ocorre no plano da narrativa como uma imitação da ação, que é inerente ao mundo pré-narrativo, ou o que Flusser (2014) denomina de pré-histórico, pois estaria localizado antes da história escrita, num mundo pré-concebido, no qual está situada a mimese I de Ricoeur (1994).

Porém, para tecer a intriga, é necessário que possamos identificar uma ação, quais seus caracteres temporais e o que a torna digna de ser colocada em uma narrativa, para que esta não seja apenas uma sequência de frases, mas uma trama de fato, que se utiliza de traços discursivos, características estruturais, simbólicas e temporais, que se estrutura para construir uma relação de sentido entre fins, agentes, meios e circunstâncias que fazem parte da ação e que atuam em uma ordem. Caso essa ordem seja alterada, toda a narrativa se altera ou perde o sentido.

Em relação à estrutura da ação, sabemos que ela possui especificidades que possibilitam que seja identificada como tal. A ação é crucial para a tessitura da intriga, consiste naquilo que o personagem realiza, que é digno de nota, que efetivamente ‘acontece’. Porém, para definir de fato no que consiste a ação, é necessário observar seus contornos, ou bordas. Uma ação precisa de um tempo para acontecer, precisa fazer algum sentido no mundo, e ser, portanto, estruturada. Sobre ela podemos fazer perguntas que resultam no conhecimento de seu primeiro elemento definidor: as estruturas. Estas, coincidem com as perguntas que concernem ao processo comunicativo: quem, fez o que, por qual razão, em que circunstância, para quem, produzindo que efeitos?

A dimensão simbólica do mundo também é responsável por caracterizar uma ação. Afinal, esta só tem sentido por fazer parte do mundo simbólico, assim como sua própria razão de existir só pode ser interpretada a partir do conhecimento dos códigos culturais que a compõem. Na ausência do conhecimento prévio dos elementos simbólicos/culturais, a ação e, consequentemente, a narrativa se arriscam a parecer ininteligíveis.

O último elemento responsável por caracterizar a ação, o tempo, é objeto de maiores discussões na obra de Ricoeur (1994). Afinal, a ação só existe porque tem duração, possui um tempo de execução, e também só pode ser compreendida dentro do seu tempo. Se desconectada dele, também corre o risco de recair na incompreensão. Fator que explica porque os fatos

históricos precisam de uma explicação conjuntural, para que as gerações atuais possam entender sua razão de ser.

Na narrativa jornalística, o fator temporal torna-se um imperativo ainda mais importante, pois trabalha-se, no jornalismo, com o “tempo-agora”, o qual Ricoeur (1994, p.98) investiga com base na filosofia agostiniana que aponta para uma abordagem linear do passado, presente e futuro, como sucessões de ‘agoras abstratos’, percebidos no instante em que acontecem.

No tempo da história, ocorre a tessitura da intriga, que pode ser denominada de síntese do heterogêneo, pois tem a função de sintetizar os elementos numa mesma história, de forma organizada no tempo e no espaço. Ou seja, a narrativa puxa o tempo da narrativa para o tempo linear. Para Ricoeur (1994), seguir a história é apreender os episódios que, ordenados de forma lógica, conduzem a uma determinada conclusão.

Podemos, portanto, a partir da construção narrativa, fazer previsões, projeções, imaginar os resultados de determinadas ações e ainda retroceder na ordem temporal e imaginar suas causas. Baseados em histórias e conhecimentos precedentes que coletamos ao longo da vida no mundo pré-narrativo, ou seja, fincados na tradição narrativa, caminhamos em direção à inovação, à nossa própria interpretação da narrativa, que só é possível por meio do encontro do mundo do autor com o mundo do leitor, o que Ricoeur (1990) chama de “boa leitura” e que está relacionado ao que Motta (2007) denomina de “contrato cognitivo”.

Motta (2013) propõe um método para análise crítica dos processos de comunicação narrativa que privilegia dois planos: o plano da estória e o plano da expressão. O autor, propõe sete movimentos para se empreender a análise fenomenológica da narrativa. O primeiro deles é “compreender a intriga como síntese do heterogêneo” (MOTTA, 2013, p. 140), no qual propõe que a intriga aglutina fatos que poderiam parecer aleatórios, fortuitos, porém quando agenciados dentro da intriga, eles se organizam e convergem para um sentido, que o autor denomina “revelação”, e compreende como um processo de desdobramento feito pelo analista da narrativa.

Para analisar a síntese do heterogêneo, o analista precisa compreender muito bem o encadeamento da história, o princípio, o meio e o fim, “observar, decompor e recompor, enfim, a sintaxe narrativa. A sintaxe aqui é da história, não do discurso” (MOTTA, 2013, p.141). Por isso, verificar também o encadeamento dos eventos, o uso de recursos linguísticos como hipérboles, metáforas, repetições, entre outras. Verificar também o comportamento dos personagens e os tipos de ações que realizam dentro da intriga, os pontos de virada na trama, as continuidades, as retomadas, os conflitos menores que constroem a trama maior, a relação entre os eventos, que pareciam soltos e são retomados, e o posicionamento do narrador em

relação à trama, os efeitos dramáticos, o léxico que ele utiliza, os enquadramentos e a perspectiva que ele adota para contar a história. O autor recomenda a utilização de palavras- chave como recurso quantitativo para se empreender uma análise lexical e também a construção de um resumo-síntese da estória (MOTTA, 2013, p.145), contendo os principais elementos da intriga.

O segundo movimento que o autor propõe é a compreensão da lógica do paradigma narrativo (Ibidem, p.146). Para trabalhá-lo, ele parte do pressuposto de que o narrador ao contar uma estória tem a intenção de persuadir, de convencer o leitor de que aquilo que ele diz é interessante e verossímil. Para que isto ocorra, é necessário se observar a lógica dos possíveis (MOTTA, 2013, p. 148), que está presente na contiguidade das ações que adquirem um contorno temporal dentro do tempo da obra. As ações deixam de ser episódicas, dissonantes, dentro da narrativa e passam a compor a intriga verossímil, inteligível. Essas ações são dispostas pelo narrador de forma a causar efeitos no leitor fora do mundo da obra; mundo que, quando o narrador atingir seu objetivo, terá provocada em si as tensões, o clímax, a surpresa e as demais emoções articuladas narrativamente dentro do texto.

Ao terceiro movimento, Motta (2013, p.160) denomina como “deixar surgirem novos episódios”. Segundo o autor, ele se refere aos episódios relativamente autônomos que às vezes se dispõem dentro da narrativa principal. Esses episódios devem ser observados com cuidado, pois muitas vezes são utilizados pelo narrador como uma estratégia semântica para provocar o leitor com efeitos dramáticos e para construir sentidos na trama como um todo. O analista da narrativa deve identificar e nomear esses episódios “de acordo com a relação sintagmática deles no interior da estória” (MOTTA, 2013, p.161).

O quarto movimento denomina-se “permitir ao conflito dramático se revelar” (Ibidem., p.166) e consiste na identificação dos conflitos dramáticos, que, para o autor, são os “frames cognitivos”, enquadramentos que organizam e possibilitam a sequência narrativa. Motta (2013) considera que toda narrativa é um projeto dramático e salienta que, à exceção de Paul Ricoeur, todos os demais autores da narratologia negligenciaram o conflito, ou, “o discordante”, conforme termo cunhado pelo próprio Ricoeur.

Motta (2013) chama a atenção para os enquadramentos, pois a partir deles é possível identificar as intenções do narrador. Pela forma como ele dispõe os personagens em cada frame, pela voz e visibilidade que dá a cada um deles e pela relação que se estabelece entre eles podemos interpretar a narrativa mais amplamente e compreender sua mensagem.

O quinto movimento refere-se justamente aos personagens e Motta (2013, p. 172) o chama de “metamorfose de pessoa a persona”. O autor ressalta a importância da persona na

narrativa, que nem sempre consiste num ser humano de fato, mas em alguma coisa que adquire uma personalidade dentro da trama, pode ser um objeto, um animal ou mesmo uma pessoa, mas o que identifica a persona é a tipificação que o personagem assume, demonstrando características dos arquétipos humanos. Mesmo na narrativa jornalística, na qual geralmente os personagens correspondem a pessoas reais fora do mundo narrativo, há uma construção em torno da personalidade da persona que pode variar de acordo com a intenção do narrador, pois “mesmo no discurso objetivo do jornalismo [...] deve ficar claro que o analista não está examinando a realidade, mas uma narrativa sobre a realidade” (MOTTA, 2013, p.192), ou seja, a análise que deve ser feita não é sobre a realidade do mundo da vida, mas sobre a configuração da intriga narrativa e a persona dentro dessa trama.

Motta (2013) evidencia a ambivalência presente nos personagens do texto jornalístico, pois, ao mesmo tempo em que ele é construído pelo jornalista, ele também passa por um processo em que o leitor completa o círculo hermenêutico da compreensão e interpretação do texto, ao se identificar com o personagem e projetar arquétipos nele. A dificuldade encontra-se na confusão presente na narrativa jornalística, que se pretende de caráter fático, na qual os personagens são constantemente confundidos com seres de carne e osso.

O sexto movimento consiste nas “estratégias argumentativas” e nele se centraliza a figura do narrador, que no jornalismo pretende-se objetivo e fático, porém Motta (2013, p. 196- 197) esclarece que

as narrativas realistas utilizam uma linguagem referencial para vincular sempre os fatos ao mundo físico, mas criam incessantemente efeitos catárticos, como na ficção. A retórica dessas narrativas estimula permanente jogo entre as intenções do narrador e as interpretações do receptor. É quase sempre polissêmica, polifônica, híbrida, transitando contraditoriamente nas fronteiras entre o objetivo e o subjetivo, denotação e conotação, descrição fática e narração metafórica, realia e poética, premissas mais verossímeis ou menos verossímeis, logos e mythos. Cabe ao analista capturar as sutilezas desse jogo de contrários.

Cabe também ao analista perceber nas entrelinhas aquilo que o narrador tenta dissimular. Para isso é preciso compreender a diferença entre as estratégias de produção de “efeitos do real” (MOTTA, 2013, p. 199) e de “efeitos estéticos de sentido” (Ibidem., p.203). No primeiro o narrador tenta apagar as marcas de seu discurso da composição da narrativa, para dar a impressão de que os fatos estão se contando sozinhos, sem uma mediação, que estes são evidentes e acontecem para o leitor no momento em que são contados, visto que esse tipo de texto é centrado no momento presente. Outra característica comum desse recurso é a utilização de tabelas, gráficos e números, assim como a fala de alguma autoridade no tema da narrativa para indicar precisão e domínio técnico do assunto tratado. Já no segundo efeito, acontece o

contrário, a trama se humaniza e provoca no leitor um sentimento de identificação, demanda do analista um vasto conhecimento da linguagem, dos códigos culturais, símbolos e mitos, pois se utiliza de recursos muito mais subjetivos e complexos.

O sétimo e último movimento da análise, Motta (2013, p. 204) denomina como “permitir às metanarrativas aflorar”. Este movimento faz referência às questões de fundo da narrativa, à moral contida na história, à razão ética na qual se configura sua razão de ser. Ele está ligado às questões culturais que existem, em geral, fora do texto, e conta com a intertextualidade e a bagagem semântica do leitor. É nesse movimento que o círculo hermenêutico se completa, pois para compreender esse sentido do porquê da existência da narrativa o leitor

introduz nos marcos de referência dos seus próprios antecedentes culturais, seus imaginários, sua memória, sua compreensão prévia do mundo que inclui suas expectativas concretas, seus horizontes, interesses, desejos, necessidades e experiências (MOTTA, 2013, p. 208).

Para esse movimento de análise, o autor recomenda que o analista faça o mesmo percurso do leitor, porém de forma cuidadosa, menos intuitiva, com mais atenção e foco nos detalhes, anotando impressões pessoais, dúvidas e observações.