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2 FEDERALISMO E COOPERAÇÃO INTERGOVERNAMENTAL

2.6 Municipalismo Autárquico

Edson Nunes (1996) afirma que o papel das unidades subnacionais como parte da ordem política tem sido sistematicamente subestimado18. As conseqüências disso, segundo o autor, se fazem sentir na “enorme Babel que constituem os escritos sobre municípios e regiões e, sobretudo, na facilidade com que a maioria dos analistas aceita como verdades os refrões da moda”. (NUNES, 1996, p. 32). Ainda, segundo o autor, a incompreensão básica decorre do não lugar das unidades subnacionais, em particular do município no pensamento político moderno. Desta forma, a teoria não se limita a figurar os poderes locais como inimigos, mas classifica-os como constituídos de natureza diferente, que se quer preterida ou subordinada. O mesmo se dá em relação às teorias de governo representativo que apresentam um lugar subordinado aos municípios, mais freqüentemente como níveis meramente administrativos. É o que se lê em Stuart Mill que defende centralização política com descentralização administrativa.

Para Nunes esse corpus teórico deixa de considerar importantes conseqüências da necessária territorialização do poder político. Um exemplo disso consiste nas dificuldades de tratamento do “clientelismo”, já que a maioria dos estudos de caso sobre poder local constata sua existência. Ademais e como argumenta Melo (1993, p. 85), “a ideologia municipalista constitui uma das construções discursivo- programáticas mais antigas e resilientes da cultura política brasileira”. No caso das RMs, esses temas são ainda mais cruciais na medida em que os arranjos políticos, institucionais, administrativos e financeiros que a elas se aplicam requerem articulações e cooperação entre as três esferas de governo.

A idéia de repassar muitas das funções antes exercidas por outros níveis de governo diretamente aos municípios, com o intuito de democratizar a gestão pública, atender melhor aos interesses das populações locais, diminuir custos de transação e incorporar inovações advindas da experimentação local esbarrou, como vimos, em dificuldades de ordem administrativa e financeira. No entanto, a argumentação em prol da municipalização e o desenho municipalista das políticas reforçam uma visão não congruente com a realidade do país, ou seja, formou-se uma ideologia cunhada pelo

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No Brasil, a cidade sempre teve – numa tradição que remonta ao período colonial – um papel e um tratamento político destacado, já que nossa formação histórica e cultural é municipalista.

então prefeito de Santo André, Celso Daniel, a qual se deu o nome de municipalismo autárquico. O lado positivo desta ideologia seria a proximidade com os governos locais; contudo, a falta de recursos poderia levar os municípios a concorrerem entre si pelo dinheiro público e a concorrerem predatoriamente por investimentos privados. Finalmente, os municípios poderiam repassar custos a outros municípios (free riders). Infelizmente, o que se viu com o novo federalismo, foi a emergência de um novo padrão no relacionamento dos estados e municípios entre si, estabelecendo-se um jogo de competição não cooperativa, com disputas por recursos públicos e privados que ocasionou o que se convencionou chamar de guerra fiscal.

A Constituinte foi regida pelo princípio da subsidiariedade (CAMARGO, 2001, p. 85), que pressupõe que as políticas públicas “devem ser diretamente conduzidas pela autoridade ou instituição mais próxima quanto possível do cidadão”. Cabe observar que o princípio é de inspiração alemã, país paradigmático do federalismo cooperativo.

Todavia, a descentralização e as mudanças no federalismo brasileiro não trouxeram apenas aspectos positivos. Foi assim forjado um novo tipo de municipalismo, mais autárquico, fazendo com que cada governo local, particularmente com a “prefeiturização” da política, volte-se apenas para os seus próprios problemas.

Além de incluir o município na categoria de entidade política integrante do pacto federativo, a Constituição Federal de 1988 ampliou o âmbito da autonomia municipal, atribuindo ao município capacidade de auto-organização, representada pelo poder de elaborar e aprovar sua lei orgânica. Até então, a capacidade de organização do município cabia ao Estado Federado, sendo compreendido como autonomia municipal apenas a capacidade de auto-governo (eleição de Prefeito e do Legislativo), capacidade legislativa sobre balizados assuntos, auto-administração dos seus quadros de servidores e criação de tributos (LOMAR, 1992).

Segundo Abrucio & Couto (1996), os municípios hoje enfrentam um duplo desafio: precisam assumir políticas antes a cargo de União ou, secundariamente, dos estados, tanto para assegurar condições mínimas de bem-estar social às suas populações (função de welfare), como para promover o desenvolvimento econômico com base em ações de âmbito local, o que envolve o estabelecimento de um novo tipo de relacionamento com o setor privado, que os autores chamam de função desenvolvimentista, assumida pelos municípios após a crise do Estado nacional- desenvolvimentista. Este tipo de atuação voltada ao desenvolvimento local representaria

uma ruptura com padrões tradicionais de ação governamental nos municípios. Novas formas de relacionamento emergiriam, por meio da criação de novos mecanismos de agregação e articulação de interesses (ABRUCIO & COUTO, 1996, p. 40).

Na descentralização entendida como municipalização autárquica, todos os municípios, independentemente de suas diferenças, deveriam assumir as responsabilidades constitucionalmente designadas. Abrucio (2001, pp. 102-103) enumera três obstáculos práticos a este projeto municipalista, que demonstram a necessidade de coordenação:

a) A grande maioria dos municípios não tem condições financeiras de assumir tais responsabilidades;

b) Há um desnível muito grande entre os governos locais na relação administrativa e política – muitos não têm capacidade técnica ou ainda possuem vícios patrimoniais no sistema político;

c) Os instrumentos de parceria ou cooperação no plano subnacional são reduzidos, ou, quando existentes, frágeis institucionalmente – a ótica neolocalista presente nos últimos anos dificulta a criação de instâncias supramunicipais.

O resultado foi a constituição de uma postura individualista não cooperativa entre os municípios, numa luta pelo aumento de suas rendas que causou, inclusive, um acentuado crescimento do número de municípios no país de olho no Fundo de Participação de Municípios. De 1988 a 1997 o número de municípios no país passou de 4189 a 5507; atualmente são 5561 municípios, com o efeito perverso da pulverização da receita. Desses, 83% possuem menos de 30 mil habitantes e concentram menos de 28% da população. Além disso, mais da metade dos municípios criados tem até cinco mil habitantes e mais de 95% apresentam no, máximo, 20 mil habitantes. Neste caso, observamos no federalismo brasileiro um incentivo à predação ao invés do incentivo à cooperação, ao contrário da tendência internacional, onde houve diminuição de comunas e agregação de poderes locais, significando muitas vezes a criação de níveis intermediários entre o regional e o municipal (CARNEIRO, 2000).

Especificamente nos espaços metropolitanos, habitantes de municípios menores acabam gerando renda e impostos em outros municípios mais desenvolvidos – ou porque ali trabalham, ou porque ali consomem. Por outro lado, a metropolização tem levado a uma situação em que municípios menores – muitas vezes sem condição financeira – acabam delegando a responsabilidade por ofertar serviços fundamentais

como saúde e educação, aos municípios maiores que compõe o núcleo da Região Metropolitana. Isso tem implicações sobre a qualidade dos serviços, sem que os municípios-sede tenham qualquer compensação financeira pela oferta destes bens e serviços. A interdependência entre os municípios de um mesmo espaço metropolitano fez com que mesmo municípios que seriam privilegiados na repartição de recursos apresentem dificuldades financeiras. Tal fato se deve à grande concentração populacional e problemas conexos (transporte, água, lixo, violência, etc), que por sua natureza exigem grande aporte de recursos e administração conjunta e planejada.

Cabe ressaltar que, apesar da participação dos municípios ter aumentado significativamente na nova distribuição dos recursos fiscais pós-descentralização, em termos de poder, os estados foram os maiores beneficiários da nova divisão do bolo tributário, dado que muitos municípios dependem de repasses de recursos estaduais. Além disso, o municipalismo autárquico foi acompanhado de uma postura defensiva da União, que ao perder recursos tributários na Constituição procurou transformar a descentralização num mero jogo de repasses de funções, intitulada à época de “operação desmonte”. (ABRUCIO & SOARES, 2001, p. 77).

Outro aspecto da ordem municipalista brasileira é o caráter anti- metropolitano na distribuição de recursos federais aos governos locais (ABRUCIO & SOARES, 2001, SOUZA, 2003). Embora recebam menos recursos, muitos municípios que compõe a área metropolitana acabam por receber fortes pressões para melhorar o atendimento das necessidades de seus residentes. Como veremos no próximo capítulo, essa fragilidade financeira dos municípios metropolitanos é um dos grandes problemas de nossa estrutura federativa, pela premente necessidade de mecanismos de colaboração em municípios limítrofes.

Finalmente, no que se refere à gestão metropolitana, o municipalismo autárquico tem favorecido comportamentos predatórios, como se percebe na atitude de suas lideranças locais, da qual a guerra fiscal é um bom exemplo. Neste sentido inexiste de uma consciência metropolitana nos municípios que compõem as regiões metropolitanas, ou seja, “prevalece uma visão tradicional de cunho essencialmente local, que, muitas vezes, dificulta ou se opõe à visão regional” (AZEVEDO & GUIA, 2000, p. 530).

Pior, este municipalismo autárquico vem acompanhado, também, da ausência de modelo institucional metropolitano entre as três esferas de governo. Os constituintes de 1988, ao transferirem a prerrogativa de criar RMs para a competência

estadual deixaram de fora um importante ator: o Governo Federal. Parte da explicação para tal comportamento, como vimos, está fortemente associada aos constrangimentos gerados pela equação centralização mais autoritarismo, que marcou a institucionalização das RMs brasileiras. Outra explicação está ligada a aspectos políticos e de manutenção do poder do Governo Federal sem, no entanto, arcar com os custos financeiros associados à gestão metropolitana, conforme será exposto adiante, no capítulo que trata da institucionalização das RMs.