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PARTE II: ORIENTAÇÕES METODOLÓGICAS

Capítulo 3: Trabalho no terreno

3.3. A relação com as crianças

3.3.1. Na casa Magone

Na casa Magone, tive com a maior parte das crianças uma relação adequada para realizar este estudo. Posso dizer que consegui realizar uma ralação de (certa) igualdade, pois as crianças sabiam que tiveram algum poder na minha investigação, podiam confiar em mim e sabiam o propósito desta investigação. A partir do primeiro momento, investi em construir boas relações com as crianças, pois isso era a base para conquistar a confiança das crianças. Para não perder esta confiança continuei a investir nas relações já que a minha prioridade era conseguir trabalhar com estas crianças.

Queria abordar quatro aspectos que marcaram a relação que eu tive com as crianças da casa Magone.

Interesse mútuo: as crianças tiveram um grande interesse em mim, de onde eu vinha, e como é que era o meu país. Acharam injusto que eu apenas levasse dados das suas vidas e não mostrasse algo do meu lado.

Responsabilidade para a investigadora: as crianças sabiam que eu não conhecia bem Luanda e os seus bairros e “mundos”. Elas reconheceram que tiveram, em

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vários aspectos, mais capacidade do que a investigadora, por isto sentiram uma responsabilidade para cuidar de mim caso fosse necessário.

Integração no grupo: Num breve tempo, integrei-me nos seus grupos, pelo que elas contaram-me situações delinquentes e também me integraram nas suas expressões culturais, não só na prática mas também no conteúdo das suas expressões.

Distância: Guardei sempre uma certa distância em relação às crianças, e estas também guardaram uma distância em relação a mim pois na vida real eu era uma adulta, menina da Holanda e eles eram crianças meninos de Luanda, com contextos sociais bem diferentes.

Através dos dados que obtive das crianças vou avaliar cada aspecto que constituiu a relação que tive com elas. O primeiro aspecto interesse mútuo era um aspecto importante para as crianças. Para criar uma relação de igualdade e confiança era preciso um interesse mútuo, pois eles já haviam entendido que eu queria aprender sobre a sua vida mas elas confrontaram-me com o facto que nem só eu queria aprender, mas elas também queriam aprender de mim. Elas trouxeram uma vida nova para mim, mas eu também trouxe uma vida nova para elas, já que me confrontaram com o facto que quando eu queria aprender aspectos sobre a sua vida, também deveria ensinar-lhes aspectos sobre a minha vida. Encontramos isto numa entrevista sobre um desenho que uma das crianças fez sobre actividades que ela gosta de fazer diariamente.

Conversa sobre o desenho da criança: 11-01-2011

“…E a última coisa, o que desenhaste? Perguntei-lhe. Ele disse que é uma limusina. Porque é que desenhaste? Perguntei-lhe. Ele respondeu porque gosta muito deste tipo de carros, porque tem cederom, tem TV, tem mesa, e bwe de ….. [não percebi, era calão]. Pode-me dizer o que significa? Ele riu-se. Uma outra criança disse: -sabes porque eles não querem ensinar? Eu disse que não sabia. Ele disse-me: “Não querem porque também querem aprender a sua língua…”

Nota: Fragmento de uma conversa depois de ter acabado um desenho sobre coisas importantes da sua vida.

Nesta entrevista fica bem claro que as crianças querem ter “algo de volta”, não aceitam dar-me informações apenas. Nesta situação em que uma outra criança completa a criança que está a ser entrevistada, podemos concluir que a outra criança já entendeu porque a criança entrevistada não queria dizer o significado da palavra, portanto, era provável que mais crianças tivessem o mesmo pensamento. Elas mostraram-me aqui de uma maneira bem clara que estão interessadas na minha vida, ou seja, língua, país,

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contexto social. Entao fizeram-me uma pergunta indirecta: Você quer nos ensinar a sua língua? Levei esta pergunta a sério para melhorar a relação com as crianças e realizar a progressão neste estudo. Por isso, criei uma noite da Holanda em que mostrei às crianças vários aspectos do meu próprio país: ensinei-lhes palavras, mostrei música e danças da Holanda e mostrei várias fotografias sobre o contexto social. As crianças gostaram da noite, mas o interesse mútuo tornou-se importante até ao fim do trabalho de campo e foi visível várias vezes o interesse pelo meu país. Como marquei que isto era importante para as crianças tentei sempre responder às perguntas que colocaram.

Notas de campo: 19-01-2011

“…As crianças perguntaram se na Holanda deveria vestir-se um casaco, eu confirmei e também disse que deveria vestir-se, luvas, chapéu, cachecol e uma coisa para aquecer as orelhas. Eles perguntaram se isto são auscultadores. Eu disse que não mas assemelham-se, só que são de tecido e não tem música…”

Nota: Estas notas de campo foram feitas passeando nas ruas durante o dia, entre as 9:30h e as 10:30h com seis crianças que dormiram aquela noite na Casa Magone

Além do interesse da parte das crianças também é visível aqui uma relação de igualdade: a língua que na minha capacidade faltou, pois não sabia a palavra “aquecedores para as orelhas”. O facto de não ser capaz de dizer esta palavra mostrou para as crianças que eu também não era totalmente sábia, e levou-me para mais perto das crianças.

O segundo aspecto que marcou a relação com as crianças foi a responsabilidade para a

investigadora, isto quer dizer que as crianças sentiram-se muito responsáveis por mim,

pois elas sabiam que eu sabia menos sobre o contexto social em que vivem do que elas. Os assuntos delinquentes com os quais eles são confrontados diariamente: bandidos, álcool, tráfico e droga, não foram normais para mim, mas para eles são. As crianças marcaram esta diferença, por isso, depois de ser aceite e integrada nos seus grupos, elas passaram a tratar-me de uma maneira cuidadosa.

Notas de campo: 16-02-2011

“…Michiel, Jantje, Karel, Redoan e eu saímos do centro e entramos no bairro Sambizanga. O Jantje e Karel disseram que era melhor eles levarem o meu saco. Eu entreguei o saco a Jantje e Jantje deu o saco a Karel, enquanto Karel entregou a sua bolsa a Jantje. Assim, entramos no bairro…”

Nota: Estas notas foram feitas passeando nas ruas de Luanda entre as 9:30h e as 10:30h com as crianças que dormiram na Casa Magone.

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Mostra-se aqui um comportamento cuidadoso em relação à minha bolsa pois eles sabiam que era perigoso eu andar com a minha própria pasta na rua porque havia o perigo de ser roubada por bandidos. As crianças sabiam que, se fossem elas a guardar a pasta, a chance de um bandido roubar era menor do que se fosse eu a transportá-la. Aqui, também é visível a confiança que depositei nas crianças e que influenciou a nossa relação de uma maneira positiva, pois mostrei que tenho confiança na capacidade das crianças.

Um outro exemplo do tratamento cuidadoso que recebi não tem a ver com o perigo mas refere-se à comida. Estávamos a passear no bairro do Sambizanga com seis crianças e várias mulheres estavam a vender pão, peixe, salsichas e outras produtos para comer.

Notas de campo: 19-01-2011

“…Um pouco mais à frente as crianças pararam numa mulher que estava a vender salsichas, e disseram: tia, dá-nos três salsichas. A senhora deu-lhes e uma criança pagou. Elas perguntaram se eu também queria uma salsicha mas eu disse que não queria. Depois disseram que eu tinha de comer bem. Eu respondi que iria comer mais tarde...”

Nota: estas notas foram feitas passeando nas ruas de Luanda, entre as 9.30h e as 10.30h, quando as crianças dormiram uma determinada noite na Casa Magone.

As crianças queriam cuidar bem de mim porque se preocupavam com o facto de que eu deveria comer suficientemente bem. Elas queriam partilhar a sua própria comida o que é, ao mesmo tempo, um sinal de integração nos seus grupos mas, o facto de eu não querer comer a comida delas, gerou ao mesmo tempo um confronto com o facto de elas serem diferentes de mim.

O terceiro aspecto que marcou a minha relação com as crianças foi a integração nos

seus grupos, para realizar a minha investigação e recolher dados verdadeiros no

contexto em que elas vivem. Para isso, eu deveria integrar-me nos seus grupos. A partir do momento em que me integrei, podia debater e participar nas suas conversas, participar nas actividades e criar actividades com elas. Como já referi, a língua constituíu um ponto difícil na integração nos grupos pois não consegui entender tudo o que elas falavam mas, mesmo assim, foi possível integrar-me. Elas adicionaram-me nas suas canções como uma “tropa” pois, uma tropa sempre faz parte dum grupo militar e, neste sentido, podemos sugerir que cada criança é uma tropa em que todos constituem o grupo militar.

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Canções na casa Magone: 20-12-2010

“…xupa muita gasolina pra depois não se controla bwe, depois começam fala mee, por isso eu vou grita me mee, eu sou tropeira de Cacuaco, pego no caco vou espetar caco, caixa bucha não tem ciente, nem todos que fumam são ciente, esse é o momento de ciente, nos caixa bucha só tem muito ciente, o da serpente tem bwe de grupo ele disse manquila pega uma miúda leva na casa...., é Brenda, a Brenda é tropa!”

Nota: Letra de música de Kuduro escrita pelo Daan, Jantje, Redoan e Allesio

Uma outra situação que revela que eu sou “uma delas” foi quando estava com as crianças na praia da Chicala, uma praia onde elas, no seu dia livre, segunda-feira, se divertem e me convidaram para ir com elas.

Notas de campo: 07-02-2011

“…Um barco dos pescadores chegou à praia e os homens gritaram para as crianças, que estavam a nadar, para trabalhar com eles. O Jantje disse que eu também tinha que ajudar. As crianças que estavam nas pedras ficaram nas pedras mas as crianças que estavam na água fizeram uma volta ao redor do barco. Dentro do barco havia chocos. Os homens e as crianças gritaram em conjunto: “o vai o vai força junta, o vai o vai força junta!” O barco era bem pesado, quando chegámos à areia, os homens disseram obrigado e nós voltamos para a agua…”

Nota: estas notas de campo foram feitas passeando com as crianças na praia da Chicala, entre as 9.00h e as 14.00h.

O facto de uma criança me ter mostrado a minha responsabilidade para trabalhar conjuntamente com elas, revelou mais uma vez a união e a responsabilidade que tive dentro deste grupo. O facto de todos gritarmos: “o vai, o vai, força junta, o vai, o vai, força junta!” sublinhou mais uma vez a relação estreita que mantive com as crianças. Além da integração, as crianças sempre sentiram o facto de que nunca poderia integrar- me totalmente por não ser uma delas: era adulta, menina, de origem holandesa e de um outro contexto sociocultural. As crianças estavam conscientes disto e eu também, o que me conduziu ao último aspecto da minha relação com as crianças: a distância. Vejamos uma situação que surgiu passeando nas ruas com as crianças que dormiram na noite anterior na casa Magone.

Notas de campo: 16-02-2011

“…O Michiel passou directamente para a rua e ficou alguns minutos com Travis a mexer no lixo; eu chamei o Travis para vir ter comigo. Eles ficaram algum tempo ali e, de repente vieram atrás de nós. Eles encontraram uma tangerina, comentaram os outros. O Michiel tinha a tangerina na mão e abriu-a e deu a todos uma parte. O Jantje disse que eu também queria

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uma parte. Ele perguntou muito surpreendido se eu também queria uma parte. Eu disse que não, era uma brincadeira…”

Nota: estas notas foram feitas passeando com cinco crianças na cidade de Luanda, entre as 9:30h e as 10:30h, que dormiram na Casa Magone.

Por estar integrada nos seus grupos, as crianças querem dividir a sua comida comigo, mas o facto de ter sido encontrado no lixo fez a diferença, pois eu não podia comer essa comida e as crianças podiam porque estão acostumados. As crianças e eu sabíamos deste facto mesmo sem o explicitarmos e isso criou uma distância fundamental na nossa relação embora não a tivesse dominado. Além desta distância também havia um outro tipo de distância que era visível do lado das crianças e também do meu próprio lado. Isso tem a ver com o meu estatuto de investigadora integrada nos grupos das crianças. Apesar da integração continuava a ser uma investigadora e as crianças, por várias razões tais como vergonha, perigo ou a própria cultura, excluíram-me de certos lugares. Na próxima situação, registada nas notas de campo, estamos no oratório do bairro moto, onde as crianças jogaram futebol antes de ir para as ruas. Jantje combinou comigo mostrar-me “a casa da avó” que é um lugar onde várias crianças dormem quando não dormem no centro.

Notas de campo: 16-02-2011

“…Eu disse a Bas que hoje vou visitar o avo. Ele disse que não é bom ai, e que não posso ir. Eu disse a Bas que vou junto com Jantje. Bas disse a Jantje não vai ai, é mal, tem muitos bandidos e malucos. Eu olhei para Jantje e ele disse: eu virei a minha cabeça não vamos mais…”

Nota: estas notas foram feitas na Casa Magone com entre as 6:15h e as 10:00h

Nesta situação fui excluída das grupos das crianças, pois elas acharam que não era bom para mim visitar a tal “casa da avó”. Bas, amigo do Jantje, avisou-o e ele aceitou directamente o conselho, o que revela claramente o poder do grupo. Do mesmo modo, também eu deveria excluir as crianças da minha vida. Enquanto passeávamos nas ruas, as crianças queriam entrar em minha casa, mas aqui também deveria exclui-las pelo que, deste modo, sempre mantivemos uma certa distância.

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