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PARTE I: ORIENTAÇÕES TEÓRICAS

Capítulo 1: As crianças de rua – Abordagem teórica

1.3. A cultura da criança “de rua”

1.3.2. Os elementos universais em Luanda

Além de existir várias culturas de infância existem certos elementos universais nas culturas: imaginário infantil, a interactividade, a ludicidade, e a reiteração (Sarmento, 2004). Vamos abordá-las uma por uma, com as suas características, capacidades e na maneira em que elas se expressam dentro uma certa cultura infantil.

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Nas culturas infantis, as crianças fazem alterações com o tempo presente, passado e futuro e através desta capacidade as crianças podem estar presente em dois mundos: o

real e o imaginário. Isto é o primeiro aspecto das culturas da infância que podemos

constatar em cada cultura que é criada pelas crianças. Através desta capacidade, elas podem experimentar contradições e possibilidades do mundo em que estão inseridas (Sarmento, 2004). Relativa a esta capacidade para estarem presentes em dois mundos é a expressão “faz de conta”, é uma maneira específica das crianças para transportar a realidade para um outro mundo onde podem reconstruir esta realidade em condições que elas preferem. De facto, isto é importante com o meu alvo porque na sua vida há muitos riscos e não há protecção, portanto “viver em dois mundos” para experimentar situações pode dar alguma segurança nas suas vidas, pois podem transformar situações dolorosas em situações aceitáveis (Sarmento, 2004). O quotidiano das crianças é marcado pela exclusão da sociedade que tem bastantes consequências (tratados no capítulo 2) como drogas, violência, roubos e fome; neste sentido podemos imaginar que a capacidade para transportar a realidade para um outro mundo onde podem o reconstruir é um aspecto da cultura das crianças fundamental para sobreviver. Através do “faz de conta” podem substituir o medo, tristeza e outras emoções difíceis por sentimentos agradáveis que facilitam uma vida que se vive nas ruas de Luanda. É, portanto, também uma forma de “terapia natural”, ou seja, as crianças podem dirigir as suas experiências traumáticas numa maneira natural.

A capacidade de “fazer de conta” e o imaginário infantil que faz parte da capacidade “faz de conta” também implica um lugar fundamental numa expressão que as crianças usam diariamente: o jogo. O jogo ocupa um lugar importante porque, em tempos em que tudo falta, o jogo pode ser um modo para as crianças sobreviverem à situação (Sarmento, 2002). Essa é uma forma de conseguir criar um outro mundo, nas condições da mais dura adversidade, através do jogo e da ficção de uma existência onde até o horror aparece transmutado em projecção imaginária de uma realidade alternativa (Sarmento, 2002). Como as crianças de rua vivem em situações difíceis, o jogo, que cruza as diferentes expressões culturais, é um meio de sobrevivência importante.

Uma outra possibilidade que as crianças conseguem com o imaginário infantil é o jogo simbólico que implica que o objecto referenciado não perca a sua identidade própria e é, ao mesmo tempo, transmutado pelo imaginário (Sarmento, 2002). Um exemplo é que a criança consegue ser cão, mas ao mesmo tempo não perde a sua própria identidade, neste sentido, experimentam com diferentes identidades. Como as crianças de rua não

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são muitas vezes valorizados pela sociedade, elas conseguem com o jogo simbólico ser alguém de valor, como um atleta ou cantor importante. Teixeira (2006, p. 214) confirma isto com a expressão que “no mundo da fantasia e do imaginário pode-se ser quem quiser, independente da realidade, satisfazendo desejos irrealizáveis de outra forma”. Desta maneira as crianças recebem a possibilidade de esquecer a realidade em que estão inseridas e podem ser alguém de valor, animal, ou uma outra personagem em que elas também podem conhecer através das experiências que podem fazer consigo próprias neste mundo de imaginação.

As crianças jogam muitas vezes com outras crianças; este elemento das culturas infantis chama-se culturas de pares ou seja: “um conjunto de actividades ou rotinas, artefactos, valores e preocupações que as crianças produzem e partilham na interacção com os seus pares” (Corsaro, 1997, p. 114, apud Sarmento, 2004). Aqui, a palavra

interacção, o segundo elemento das culturas da infância, é a palavra-chave: Rogoff

(2003) disse que o ser humano se desenvolve em relação com outros actores da sua comunidade, e para nos desenvolvermos com outros actores precisamos de interactividade. Portanto, no desenvolvimento das expressões culturais a interactividade é crucial para se desenvolver. Para além do desenvolvimento, a interactividade nas culturas dos pares tem muitas vantagens para as crianças, pois através da convivência com os seus pares elas constroem actividades e rotinas que lhes permite exorcizar medos, representar fantasias e cenas do quotidiano, que assim funcionam como terapias para lidar com experiências negativas (Sarmento, 2004). Nas crianças de rua podemos reencontrar isto na forma como vivem. A maior parte das crianças vive em grupos, não só por causa da segurança mas também para conseguirem brincar em pares, em conjunto, construindo novas actividades e rotinas enquanto estão a passear nas ruas. Através desta interactividade elas desenvolvem-se e aprendem umas com as outras. Neste sentido, criam dentro das suas culturas de pares uma sensação de grupo que implica: uso de valores comunitários (língua, símbolos, rituais) e o seu investimento na perseguição de objectivos pessoais (Corsaro e Eder, Corsaro, 1997, apud Sarmento, 2004). Isto quer dizer que as culturas da infância se desenvolvem neste ambiente: surge uma língua própria que só as crianças entendem, usam símbolos próprios, como cumprimentar os outros, e criam ou praticam determinados jogos. Todos estes valores comunitários são integrados por elas para alcançarem os seus próprios objectivos. Quando, num grupo, as crianças decidiram que o jogo de futebol tem que ser jogado com meias, o que acontece em Luanda, as crianças podem inserir este valor na sua

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aprendizagem pessoal para, afinal, desenvolverem-se e tornarem-se num jogador melhor.

A interactividade também implica um papel fundamental na existência do jogo tradicional porque as crianças transmitem o jogo pela oralidade de geração em geração. É por isso que certos jogos são universais, transmitidos de geração a geração. O jogo de formas com borrachas elásticas é algo universal, que as crianças na Holanda fazem mas, em Angola, as crianças num contexto bem diferente fazem da mesma maneira, até das mesmas formas.

O terceiro elemento que faz parte das culturas da infância é a ludicidade. Se as crianças de “rua” não possuíssem a ludicidade, não conseguiriam viver a sua vida porque, além de ter consequências agradáveis tais como esquecer a tristeza, desenvolver-se e entender o mundo que as rodeia, cada actividade que elas fazem está cheia de ludicidade. Isto já leva em conta a diferença no brincar entre adultos e crianças, sendo que as crianças levam o brincar muito mais a sério do que os adultos (Sarmento, 2004) e estão muito mais ocupadas com a brincadeira do que os adultos.

Para brincar é precisa a imaginação infantil mas, várias vezes, são também incluídos brinquedos: formas culturais produzidas para as crianças e criadas pelo mundo dos adultos. É importante notar aqui o facto que os produtos do mercado para as crianças só se conseguem transmitir e difundir de modo bem-sucedido quando se compatibilizam com as condições específicas de recepção pelas crianças (Sarmento, 2002). É lógico que as crianças só vão usar os brinquedos quando estão adequados às suas próprias culturas, isto quer dizer que a cultura comercial das crianças atrai tanto as crianças porque toma seriamente em conta o jogo, a satisfação e o desejo das crianças (Kenway e Bullen, 2001, p. 46, apud Sarmento, 2002). Daí, a razão pela qual elas compreendem o jogo e inserem-se nele, sendo por isso que as crianças gostam tanto dos brinquedos. Estes são tão importantes que, em situações em que não tem acesso aos brinquedos originais das lojas como Barbi, Homem Aranha e Ben 10, criam os seus próprios brinquedos através da sua imaginação infantil e, por outro lado, a imaginação infantil precisa do brinquedo para ser estimulada e continuar com a brincadeira. Elas precisam destes brinquedos para conseguir brincar e desenvolver-se porque o brincar é a condição da aprendizagem e, desde logo, da aprendizagem da sociabilidade (Sarmento, 2002). Sobretudo para as crianças “de rua” que não têm acesso à educação formal, é importante apreender as novidades do mundo em que se inserem através das brincadeiras e, além disso, a própria sociabilidade é uma consequência importante para as vidas das crianças “de rua” em

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Luanda, porque não mantêm uma sociabilidade de fora, com os outros, pelo que têm de criá-la por si mesmas tendo a brincadeira como base.

As brincadeiras que as crianças fazem apresentam características regionais, geográficas e culturas próprias de cada localidade através das quais elas expressam motivações, concepções de mundo, leituras da realidade e aspirações humanas (Maia, Oliveira, Costa, Campos, Lima & Gomes, 2006). É por isso que brincar não é só muito importante para as próprias crianças mas também para os adultos porque permite-nos compreender o modo como as crianças vêem o mundo e o que são as suas opiniões acerca deste mundo. Portanto, este é um dado que, nesta investigação, nos dá muitas informações sobre a própria cultura das crianças “de rua”. Por via da expressão dança

de kuduro podemos “ler” muitas opiniões das crianças sobre a sociedade ou, numa peça

de teatro sobre o seu trabalho quotidiano podemos ler outras opiniões. Da mesma forma, nos jogos que elas inventam, geram possibilidades para entrar um pouco nas suas culturas.

O último elemento das culturas da infância é a reiteração. Aqui temos que reparar que as crianças vêem sempre falhas nos actos que acontecem no seu quotidiano. Repetindo- os, elas podem experimentar e dominar estas falhas até a um ponto em que se acham perfeitas. Além disso, quando a criança repete uma experiência, as suas emoções são cada vez mais intensas e é por isso que a criança quer que tudo comece de novo, pois quer sentir mais alegria e mais triunfos e vitórias (Benjamin, 1992b, apud Sarmento, 2002).

Estes quatro aspectos das culturas da infância são universais e podem ser encontrados em qualquer cultura que a criança cria. Com estes quatro elementos que constituem as culturas da infância as crianças são competentes e têm capacidade de dar a sua opinião sobre a interpretação da sociedade e sobre elas próprias, os pensamentos e sentimentos das crianças mostram-se de maneiras diferentes para lidar com tudo o que elas experienciam na sociedade (Sarmento, 2004). Deste modo, as culturas infantis das crianças de rua são muito distintas das outras culturais infantis porque têm experiências, sentimentos e pensamentos diferentes das crianças que fazem parte de outra posição de classe, etnia e raça e vivem num outro espaço geográfico. Elas expressam estes sentimentos, experiências e opiniões nas expressões culturais que fazem parte das suas culturas da infância.

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