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PARTE II: ORIENTAÇÕES METODOLÓGICAS

Capítulo 3: Trabalho no terreno

3.4. As crianças na Casa Magone

3.4.3. Significado da religião

Para as crianças, a religião desempenha um papel importante, na medida em que elas visitam ou vivem num centro de acolhimento do Dom Bosco que é uma congregação religiosa católica, e este é um aspecto bem visível no quotidiano no centro. Todas as crianças tiveram a confrontação do catolicismo por causa do contexto, mesmo que uma criança não fosse crente, ela estava sujeita à religião católica.

Um outro lado da religião era a própria relação que a criança mantinha com qualquer religião, mas só encontrei crianças que tiveram uma grande afeição pela igreja católica. A própria relação com o catolicismo é expressa no quotidiano e nas expressões culturais. A relação com Deus, Jesus, Maria e Dom Bosco são relações importantes para as crianças, relações que dominam as suas vidas e podem ser encontradas em todas as diferentes áreas das suas vidas.

Primeiro quero concentrar-me na forma como o catolicismo se revela na vida das crianças enquanto estão no centro. Estes aspectos são mais vistos como factos porque as crianças estão inseridas neste contexto e tem que os assumir. Além disso, depende de cada criança a forma como ela aborda um certo hábito ou visão. No centro há vários momentos em que a identidade do centro se revela nas crianças, sendo de referir os seguintes aspectos:

 Rezar antes do jantar e do pequeno-almoço e antes de um jogo de futebol.

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 Canções da igreja, que são ouvidas em aulas ou num rádio ligado

 Ao lado do centro há a igreja do Dom Bosco em que há cultos várias vezes por semana, e nos Domingos as crianças tem a “oportunidade” de ir à igreja.

Mais interessante para este estudo é saber como as crianças encararam estes aspectos e de que maneira expressaram a sua própria opinião sobre o catolicismo e a própria fé. Não encontrei qualquer criança que não acreditasse no Deus do cristianismo, e isto tem também uma relação com o contexto; em Angola, 38% da população segue o catolicismo e 15% o protestantismo pelo que podemos concluir que 53% do povo é seguidor do cristianismo. A sua fé não ficou escondida e é com grande orgulho que a mostram nas expressões culturais, hábitos diários e na identidade. Vou revelar algumas formas através das quais as crianças expressaram a própria opinião sobre Deus. De vez quando tive uma relação directa com o ritmo diário no centro mas, outras vezes, são expressões que não têm uma relação directa e são opiniões próprias das crianças e suas culturas.

Primeiro quero concentrar-me nas expressões culturais das crianças em que elas mostram a relação que tem com a religião. Há várias canções que são escritas pelas crianças em que Deus desempenha um lugar importante. Várias vezes reparámos que, através da possibilidade de falar sobre Deus as crianças mantém esperança, respeito e perseverança para continuar as suas vidas. Quero apontar alguns exemplos: o primeiro trata de um rapaz que canta uma canção sobre “a dor e o mal” na sociedade. Aqui só está escrita a primeira frase da canção mas a canção toda é uma repetição duma mesma frase. A canção foi cantada num tom de voz triste.

Canção Allesio: 20-12-2010

“… Nas cadeias tão sofrer, tribunal a condena, hospitale sempre a chora... o mutivo diabo Satanas...”

Nota: para ver toda canção ir ao anexo: canções

Nesta frase da canção do Allesio vemos que ele culpa Satanás por toda a “dor e mal” da sociedade, sendo uma maneira para perceber como é possível que haja tanta “dor e mal” no seu dia-a-dia.

Nas outras canções foi visível a relação especial que as crianças mantêm com Maria e Jesus, pois são eles que lhes dão esperança num futuro melhor.

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Canção cantada pelo C: 10-01-2011 Eu quero dizer que sim

Eu quero dizer que sim Eu quero dizer que sim Eu quero dizer que sim Eu quero dizer que sim Como tu Maria

Como tu um dia Como tu Maria Quero amar Jesus Quero amar Jesus Eu quero amar Jesus Eu quero amar Jesus

Nota: Foi mostrada apenas uma parte da canção. A canção toda encontra-se nos anexos - canções.

Através da comparação que fazem entre elas e Maria, “como tu Maria”, é visível o grande respeito que têm e o desejo de serem como ela. Também cantam sobre o amor que querem ter a Jesus. É marcante que cantem: “quero amar Jesus”, e que usem a palavra quero, significando que o amor a ele ainda não está realizado, mas existe o desejo de o amar. Quando relacionamos isto com as vidas das crianças podemos ver que a sua vida é a delinquência, havendo crianças que roubam, usam drogas, revelam agressividade e outros comportamentos que não são recomendados pela bíblia. Mas o desejo de ser como Jesus e deixar “o mal” é grande, embora não seja realidade. Por isso, podemos entender que quando uma determinada criança canta “quero amar Jesus” isso indica a luta entre o querer seguir Jesus e a vida real que é a delinquência.

Uma outra canção cantada pela mesma criança fala-nos da confiança que eles têm em Jesus, a qual lhes pode dar uma vida melhor, uma canção que fala de novo sobre confiança e esperança.

Canção cantada pelo C: 10-01-2011

Aqui estamos presenté depois do caminhão Com empenho e carrinho

Nossa vida sta muda Somo fruto duma história Que ninguém a procurou Mas agora somos dono Do futuro melhor weeh

Jesus amigo, você vai nos ajudar Jesus amigo vem connosco a caminha

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Na cruz não deixa a tua mãe, mama Muxima mamãe de amor Es um amor, vamos para frente, na receio de recuar

Es um amor, vamos para frente, na receio de recuar Com Dom Bosco caminhamos, procuramos o melhor Para ser agora mesmo filhos irmão e amor

A nova Angola é possível que podemos construir Falhamos a gasolina não quero mais menti weeh Jesus amigo você vai nos ajudar

Jesus amigo vem connosco a caminhar

Na cruz não deixa a tua mãe, mamãe muxima, mamãe de amor Es um amor vamos para frente mas receia de recuar

Es um amor vamos para frente mas receia de recuar Es um amor vamos para frente mas receia de recuar Somos jovens somos fortes nos queremos trabalhar Não gostamos de dalfasse não queremos mais roubar Muito jovens a nossa espera eles querem também muda Nos queremos ajudar weeh

Nosso amor vai mudar weeh“Nossa vida esta mudar”

Nota: Foi mostrada apenas uma parte da canção. Para ver a canção completa ir ao anexo - canções.

Esta é uma das canções que nos mostra muito sobre a história das crianças, do país Angola e sobre a visão das crianças sobre o futuro e a religião. Podemos ver que as crianças indicam que a sua vida implica uma história e a sua situação não é fácil: “estamos presenté depois do caminhão”. Depois indicam a sua história como uma que se situa num certo contexto social: “somos fruto duma história”, ou seja, as nossas situações não são criadas de repente mas construídas por um certo contexto social. As crianças indicam o passado com maus comportamentos: “falhamos gasolina”, “não queremos mais roubar” e um contexto social em que não são vistos pela sociedade: “ninguém a procurou”. Nesta canção cantam sobre uma boa história que vão receber através de Jesus, o que é lógico de entender porquanto as crianças estão desapontadas com a sociedade e, por isso, procuram o futuro melhor na fé. Reparamos que mostram muita positividade no seu futuro com Jesus o que fica demonstrado através desta letra de uma canção:

“ Agora somos dono dum futuro melhor”

“ Angola é possível que podemos construir” “ Somos jovens somos fortes, queremos trabalhar” “ Nossa vida esta mudar”

“ Agora somos dono dum futuro melhor” “ Angola é possível que podemos construir” “ Somos jovens somos fortes, queremos trabalhar”

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A confiança que têm num bom futuro está ligada à presença de Jesus nas suas vidas. Encontramos várias vezes a relação entre o futuro melhor e Jesus: “É seu amor vamos

para frente no receio de recuar”, pois é só com o amor de Jesus em que eles podem

caminhar no futuro. Isto mostra a confiança que têm em Jesus e no facto de acreditarem que ele as vai ajudar. Deste modo, vêem-no como um amigo que as ajuda diariamente. Confirmam isto mais uma vez com a frase: “Jesus amigo, você vai nos ajudar”.

Figura 12: “desenho” encontrado pelo Bas na rua, dado como presente

Agora que descobrimos a visão das crianças sobre a religião nas suas expressões culturais, podemos perceber que nos seus quotidianos a fé é um dado importante para viver a vida. Nos seus hábitos diários a fé desempenha um lugar importante. Bas chegou numa tarde ao centro e foi ter comigo, dizendo que queria dar-me um presente, (Figura: 12).

Quando me deu esta imagem ele disse: “é lindo né?” Respondi-lhe que gostei do desenho e perguntei o que é que ele achou lindo. Ele indicou a madre no desenho e quando eu lhe perguntei porque a madre está linda, ele disse que a madre faz rezar. Aqui, a criança mostra o poder da reza, para determinada criança pode ser muito importante pois pode pedir coisas que ainda não têm e que não pode pedir a mais ninguém, só pode pedir quando vai rezar. Um outro exemplo da importância do rezar é no caso de Moos, em que ele me pediu para falar comigo sobre a sua situação de vida. Ele indicou que queria procurar a sua mãe.

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Notas de campo: 06-01-2011

“…Eu perguntei-lhe porquê que ele queria procurar a mãe. Ele me respondeu que sem família ele não vive. Os meus pais me colocaram na rua porque pensaram que eles me iriam acolher. Eu perguntei como ele quer procurar a mãe dele. Ele disse que tem que rezar a Deus para o ajudar e para receber também um curso. No futuro quero ser pintor de casa, portas, janelas e paredes e também agricultor.”

Nota: estas notas foram feitas na casa Magone entre as 6:15h e as 9:15h

Reparamos aqui que Moos pede ajuda a Deus para encontrar a sua mãe que não vê desde os quatro anos e para conseguir fazer um curso, aspectos que na vida dele são complicados. Portanto, pedem ajuda a Deus quando um problema é tão grande que não sabem resolvê-lo e confiam que Deus pode fazer milagres. Através da fé que mantêm nas orações e no poder de Deus conseguem ter uma visão positiva sobre o futuro: “No futuro quero ser pintor de casas, portas e paredes e também agricultor”. Voltamos ao desenho que o Bas me deu. O facto de ele ter visto este desenho como “lindo” e o ter guardado até o dar a mim como presente, indica o valor que o desenho tem na vida dele. Há vários produtos que as crianças encontram durante o dia dia na rua, mas foi exactamente este desenho que ele apanhou e guardou.

Além da opinião acerca das expressões culturais e dos seus hábitos diários eles também se expressaram sobre a própria identidade. Através de um rosário e fios com medalhas em que estava desenhado uma imagem de Deus, Jesus, Maria ou Dom Bosco (Figura 13) eles queriam confirmar que eram crentes.

Figura 13: Um dos fios das crianças com medalha com a imagem de Deus e Maria com Jesus

Agora surge a pergunta porque é que eles se expressam num nível tão alto e visível em relação à fé. Vimos nas notas de campo que as crianças abordam as “pessoas da igreja”

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como boas pessoas, pelo que podemos dizer que, através da expressão da própria fé, melhoram a própria imagem “má” com que a sociedade as rotula.

Nesta situação vimos que há uma evidente separação entre a música que é da igreja e a música kuduro que tem a ver com “a sociedade”. O Jantje deixa isso bem claro acentuando que não gosta da música kuduro porque ele é da igreja.

Mas há ainda uma outra razão: na pesquisa realizada em 2009 sobre crianças de rua em Luanda foi mostrado que as crianças indicam associações a pessoas de boa fé (57.9%), como aqueles que as ajudam bastante para resolver os seus problemas (Kanoquela, 2009). As crianças indicaram que este grupo de pessoas as ajuda mais do que os próprios amigos (15%), colegas (13%), família (14.8%) ou padres (7.4%). Isto quer dizer que a fé das outras pessoas tem um impacto grande nas vidas das crianças. Através do bom tratamento que as crianças recebem elas respeitam estas pessoas e, por isso, também respeitam a religião porque é por intermédio da religião que as pessoas realizam os apoios.

A última razão que vou indicar é Jesus. Na bíblia há muitas histórias em que Jesus trata bem as pessoas pobres, e pessoas que estão excluídas da sociedade daquele tempo. As crianças que ouvem estas histórias nas actividades sócio-educativos, na igreja ou de outras maneiras, podem reconhecer-se nestas pessoas. Nas histórias, Jesus sempre ama estas pessoas que precisam de apoio e ajuda-as. Isto traz esperança na vida das crianças que acreditam que, mesmo quando uma sociedade não as ame e as exclua, há Jesus que as ama. Também o facto de acreditarem que Deus faz justiça quando as pessoas morrem é uma razão fundamental para que as crianças tolerem quando as outras pessoas lhes fazem lhes mal na sua vida. Assim, estava a falar com uma criança na casa Magone, quando vi que uma outra criança do centro estava a vestir a camiseta dela.

Notas de campo: 6-12-2010

“…Chegou mais um rapaz, comprimentei-o e perguntei o seu nome; os outros disseram que ele se chamava drogada porque usa muita droga. Perguntei-lhe de novo o seu nome ele não respondeu, e andou para cima. Uma outra criança disse que ele é muito stressado. Mas não demorou muito e voltou, começou a cantar um pouco kuduro por si mesmo. Perguntei que música é que ele gosta, e respondeu-me “os vaga”. O Jantje diz que ele não gostava desta música “eu sou da igreja” , começou a cantar algumas canções e disse que iria gravá-las….” Nota: estas notas foram feitas na Casa Magone entre as 17:30h e as 22:00h.

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Vimos aqui bem claro que esta criança tem uma grande confiança em Deus e na sua justiça e que ela não tem que se preocupar com o facto de a sua camiseta ter sido roubada por uma outra criança. Ele está confiante que vai receber o amor de Deus quando morrer e a outra criança vai ser castigada.

A religião tradicional

Um outro tipo de religião que desempenha um lugar na vida das crianças é a religião tradicional que vem das províncias ou do mundo rural. Há muitas etnias, como já referi na revisão da literatura, e estes grupos étnicos praticam várias religiões. Estas religiões integram dois aspectos importantes que estão visíveis nas vidas das crianças que são a tradição e a feitiçaria. Estes dois aspectos estão em contradição com o catolicismo e protestantismo mas como são importantes no contexto de Angola, fazem parte das vidas das crianças. Digo contradições porque nessas religiões há várias divindades que são adoradas e não conhecem Jesus. Além disto, inventam espíritos que existem na feiticeira e isto é contrário àquilo que a bíblia diz em Deuteronómio 18: 9-13.

“Quando tiveres entrado na terra que o Senhor teu Deus de dá, não imitarás as abominações dessas nações. Não haja no teu meio quem faça passar pelo fogo o filho ou a filha, nem adivinhador, nem prognosticador, nem agoureiro, nem feiticeiro, nem encantador, nem necromante, nem mágico, nem quem consulte mortos. O senhor abomina todo aquele que faz essas coisas. É por causa dessas abominações que o Senhor teu Deus expulsa essas nações de diante de ti. Serás perfeito diante do Senhor teu Deus.”

Mas, ao mesmo tempo, também estão ligados porque quando alguém é vítima da feitiçaria, recorrem às igrejas em busca de para cura para os maus espíritos.

O lugar da tradição e da feitiçaria revela-se sobretudo quando as crianças estão em conjunto a contar histórias. “Contar histórias” é também uma actividade que faz parte das expressões culturais, e enquanto as crianças convivem contam as suas “histórias da vida”. É uma forma de expressão que vem das províncias, como constatamos na revisão da literatura, sendo uma expressão usada pelo menos na cultura dos kikongos (Fonseca, 1984). Encontrei-me num momento com uma criança que estava a contar histórias de

Notas de campo: 21-12-2010

“…Eu perguntei se a camiseta que uma outra criança estava a vestir não era dele. Ele disse que sim e que essa criança a roubou. Perguntei se isto não fazia mal para ele. O Jantje disse que não porque Deus iria castigá-la…”

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feitiçaria que eu ouvi, tendo muitas crianças ao seu redor no pátio do centro e o ambiente era excitado.

Conversa: 20-12-2010

B: E quem pegou? Uma criança?

M: Hmmm, ele é feiticeiro, ele recebeu feitiço, ele anda com a zumbissão dele a noite. Tas a ver da noite, como todos estão a dormir. Começa lhes apertar no pescoço no espírito dele, lhe aperta assim.

B: E o que aconteceu com esta criança?

M: Ia, a mãe dele, já já morreu. Agora, agora ele andava a dormir na, andava a dormir na casa daquele ai, andava a dormir na casa daquela ai, que vó da Malange. Depois que descobriram que ele lhe matou a mãe dele, lhe queimaram na perna.

M: Esse uí é que falou, esse é que falou!

Nota: este conversa foi feita com a criança M na casa Magone, entre as 5.55h e as 9.00h. (M) é a criança e a (B) significa investigadora, por volta da M encontraram se mais crianças.