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PARTE I: ORIENTAÇÕES TEÓRICAS

Capítulo 1: As crianças de rua – Abordagem teórica

1.2. De criança a criança de rua

1.2.4. Situação de exclusão e direitos

As crianças de rua encontram-se numa situação de exclusão e isto revela-se em muitas facetas: não têm acesso à educação, não tem acesso à protecção, são vítimas da exploração e não têm acesso a um lugar para dormir. Estas facetas relacionam-se com a abordagem daquilo que significa a exclusão: a exclusão exprime-se em termos de negação (privação ou não acesso) de direitos (Clavel, 2004). A exclusão é um somatório da precariedade em conjunto com a pobreza. É bem visível que as crianças de rua em Luanda se entram numa situação de exclusão, quando estão doentes, não tem possibilidade de ir ao médico porque não são aceites sem dinheiro. A forma de obter medicamentos é comprando-os no mercado paralelo (Kanoquela, 2009). Na mesma

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investigação foi concluído que 67% das crianças não frequentou uma classe numa escola no ano em que foram entrevistadas (Kanoquela, 2009) Estes números exprimem o comportamento das crianças que estão excluídas na sociedade: elas não querem ficar nos lugares e bairros onde há limpeza ou pessoas de classe social mais elevada do que elas. Gostam de ficar nos bairros mais pobres com as pessoas que se encontram na mesma condição. Neste comportamento podemos encontrar as três dimensões que fazem parte da exclusão.

A primeira refere-se a um somatório de várias situações objectivas de privação, de regulação ou de fechamento em espaços sociais ou económicos (Clavel, 2004). Um exemplo disso, são as crianças que não podem entrar em certas igrejas porque não têm roupas limpas, crianças que são impedidas pelos seguranças de entrar nas lojas e crianças que são eliminadas pela polícia enquanto estão a dormir.

A segunda relaciona-se a uma relação social simbólica negativa, objectiva ou subjectiva (Clavel, 2004). Esta dimensão exprime-se no facto que a criança de rua tem duas imagens implicadas através da sociedade: a primeira é que elas são vistas como vítimas do não reconhecimento da sua condição infantil por parte da sociedade e esta imagem sobrepõe-se à da sua imagem de actor social competente (Marchi 2007). Portanto, elas são vistas como actores passivos e desviantes daqui conduzindo directamente à segunda imagem das crianças porque também são vistas como vitimizadoras: a acção que a criança comete é socialmente “má”. E estas más acções levam a uma imagem de vitimizadora (Marchi, 2007). Como afirma Sarmento (2003, p. 2) “Esta dupla imagem reforça os factores de exclusão social em que eles vivem: privação do acesso a direitos sociais, no domínio económico, social, cultural e da participação cívica”.

E a terceira refere-se às rupturas dos laços sociais tradicionais que desinserem e operam uma desqualificação social (Clavel, 2004). Nesta dimensão pode-se referir as famílias que excluíram as crianças da própria família e que o próprio bairro onde a criança cresce já não a encara como normal mas como alguém sem valor. Nas situações familiares das crianças de rua em Luanda há vários problemas, por isso uma das razoes porque as crianças escolhem uma vida nas ruas, que nem sempre é uma escolha, é que preferem o ambiente de rua do que ficar em casa na sua família onde existem maus tratos (Kanoquela, 2004). Isto ainda é sublinhado pelos números segundo os quais, para as crianças, as pessoas de que elas não gostam na família, são os pais (24.1%) e a madrasta (25.5 %).

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Portanto, com todas estas dimensões é possível concluir que, quando uma pessoa se encontra numa situação de exclusão, ela está submetida a uma grande precariedade e/ou uma grande pobreza em vários domínios da existência, embora a exclusão seja um processo que atravessa o conjunto da sociedade. (Clavel, 2004).

A zona de exclusão tem, segundo Claves (2004), três conjuntos de indicadores: indicadores materiais ou objectivamente qualificáveis, um défice de relação social identificável e indicadores simbólicos. Para ter uma imagem mais completa sobre a situação das crianças de rua queria ilustrar com as suas próprias situações (Quadro 1).

Quadro 1: Indicadores de exclusão na prática

Indicador da exclusão Significação da indicadora Implicada nas vidas das crianças de rua

Indicadores económicos ou

objectivamente quantificáveis

Pobreza dos recursos Precariedade do emprego Precariedade financeira

Habitação não conforme com as normas, insalubre ou com falta de elementos de conforto. Capital cultural: situações de insucesso ou de dificuldades escolares.

Saúde: mau estado geral, má alimentação, falta cuidados de saúde.

Direito: não acesso a (determinados) direitos

As crianças trabalham quando aparece uma oportunidade para trabalhar, neste sentido nunca têm um salário fixo, e é pouco. Não têm acesso a comida, comem da lixeira nas ruas ou compram produtos nas ruas quando têm dinheiro.

Dormem nas ruas ou nos centros de apoio para estas crianças. Várias vezes ficam feridas sem possibilidade para ir ao centro médico.

Como crianças de rua não têm acesso à educação numa escola.

Indicadores de relação social Isolamento em relação à

sociedade, afectando cada vez mais indivíduos, o que promove a dessocializaçao dos indivíduos e isto leva à perda de civismo.

As pessoas consideram-nas sujas e não querem tocar-lhes. Não podem entrar em lugares públicos como igrejas, lojas, escolas e centros públicos. Procuram contactos com as pessoas e crianças que se encontram na mesma situação. Há várias crianças que recebem contactos e usam drogas e começam a roubar.

Indicadores simbólicos Desqualificação

Estigmatização Auto-exclusão

As crianças são vistas como sujas, más e delinquentes. Isto leva a que a criança se comporte segundo aquilo que a sociedade espera dela.

Nota: os indicadores são referidos ao livro de Clavel (2004)

Na situação de exclusão grave em que as crianças se encontram, podemos dizer que eles também estão vulneráveis e se encontram numa vulnerabilidade estrutural, o que significa que a quase totalidade das crianças, se não a totalidade, revela falta de poder económico e politico e sofrem a ausência de direitos civis da criança (Fernandes 1997).

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Assim, gerou-se um conflito entre aquilo que a criança tem que receber nas sociedades modernas e aquilo em que as crianças se encontram na prática. O conceito criança está intrinsecamente associado à condição de dependente e inocente, com dois papéis sociais: ser filho e ser aluno (Marchi, 2007) mas isto não vale para as crianças de rua, que são, muitas vezes, consideradas como não-crianças e vistas como uma ameaça para toda a sociedade, sendo consideradas “negativas” e “delinquentes” (Marchi, 2007). Desta maneira, podemos dizer que estas não-criancas são crianças mas crescem sem infância (moderna), não são socialmente reconhecidas na sua identidade ou condição infantil, por isso também não aproveitam os direitos implicados para as crianças que vivem uma infância, mas juridicamente ainda têm acesso a estes direitos (Marchi, 2007). É importante notar aqui que esta visão negativa sobre as crianças de rua pode ter influência em relação à intervenção e às práticas policiais quanto às de assistência social para a sua pobre infância.

Embora elas não sejam consideradas crianças, isto também não implica que sejam consideradas adultas: elas têm uma dupla alteridade e trata-se de uma transformação simbólica: desde criança, para não-criança (Marchi, 2007). E com esta transformação ainda são mais excluídas na própria sociedade.

1.3. A cultura da criança “de rua”