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Estado, federalismo e educação: princípios da organização política educacional

1.1 A noção de Estado

A etimologia da palavra estado dá pistas à compreensão do conceito de Estado — objeto da ciência política. A palavra remete ao latim status: estar firme, em situação permanente de convivência e ligada à sociedade política. A origem latina leva à conotação de estabilidade, em geral oposta à de movimento, transformação; e se associa facilmente à ideia de permanência — como a das instituições do Estado resistentes a mudanças que desestabilizam leis e desorganizam a composição de órgãos de governo. A ideia de estabilidade se associa, ainda, à significação da palavra em dicionário, onde seus sentidos são fixos, isto é, estáveis, porque as palavras são tomadas isoladamente, fora de contextos frasais e textuais. (É cabível supor que a significação das palavras se ajuste e se amplie conforme a combinação entre elas para formar sentidos mais amplos como a frase, o parágrafo e o texto.)

A noção de Estado permeia áreas distintas do conhecimento, e sua significação se constrói conforme o uso que se faz dela em reflexões filosóficas e teóricas — críticas e analíticas. Por exemplo, dos dicionários de filosofia deriva-se a noção de Estado como emancipação de um povo que compartilha o mesmo passado e almeja o mesmo futuro, que se reconhece e se sente irmanado em tradições e aspirações comuns. Aqui, Estado traduz Nação.45 Na literatura de áreas como as ciências políticas, parece haver certo consenso quanto à ideia de Estado como conjunto organizado de instituições que regem a sociedade civil e a definem como agrupamento de pessoas cuja vida e conduta se submetem a leis e governos; noutras palavras, “[...] pessoas que vivem num território definido, organizado de tal modo que apenas algumas delas são designadas para controlar direta ou indiretamente, uma série mais ou menos restrita de atividades desse mesmo grupo”.46 Tal concepção, segundo Kolb, sofre do mesmo mal que os conceitos e as concepções em geral: ser ampla aqui e restrita ali.

Se a conotação sociológica da palavra estado ganha projeção na ciência política, que vê o Estado como órgão determinante ou proporcionador da liderança política, convém salientar que a divulgação do vocábulo Status — esclarece Norberto Bobbio47 — coube a Maquiavel, em especial nesta passagem de O príncipe: “Todos os Estados, todos os domínios

45 JAPI ASSÚ, H.; M ARCONDE S, D. Dicionário básico de filosofia. 3. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,

1996, p. 90–1; LALANDE, A. Vocabulário técnico e crítico da filosofia. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 340–1.

46 KOLB, W. L. Estado. In: SILVA, B. (Coord.). Dicionário de ciências sociais. Rio de Janeiro: ed. FGV,

1986, p. 416.

47 BOBBIO, N. Estado, governo, sociedade: por uma teoria geral da política. Rio de Janeiro: Paz e Terra,

que imperaram e imperam sobre os homens, foram e são repúblicas ou principados”.48 Bobbio esclarece, porém, que divulgar não pressupõe introduzir, pois estudos sobre a terminologia e o uso da palavra nos séculos XV e XVI “[...] mostram que a passagem do significado corrente do termo Status de ‘situação’ para ‘Estado’ no sentido moderno da palavra, já ocorrera através do isolamento do primeiro termo da expressão clássica status republicae”.49

Nos séculos XVI e XVII, o conceito de Estado50 se consolidou, ou seja, tornou-se realidade, sobretudo na França, Inglaterra, Espanha e em Portugal, onde a unificação ocorreu primeiramente. Esse período seria o alvorecer da era moderna, por isso se diz que o conceito é moderno. É claro: antes de surgir o Estado moderno houve outras formas de governo e exercício de poder, bem como o Estado não deixou de ser nomeado como “política” — quiçá em razão de sua origem como ordenamento político: a polis;51 igualmente, houve outras ideias associáveis, a exemplo do tratado político intitulado La Republique — a república — de Jean Bodin,52 autor do fim do século XIV cujo texto enfoca todas as formas de Estado, e não só a de Estado republicano em sentido estrito.

Uma vez consolidado como tal, o Estado se tornou questão de jurisdição e legislação aceita e debatida universalmente por pensadores do direito público. O Estado tem sido definido segundo três elementos constitutivos: “[...] o povo, o território e a soberania”.53 O Estado soberano — diria Jean Jacques Rousseau — “[...] transmit[e] seu poder, mas não sua vontade”.54 Mais que isso, supõe a existência do agrupamento de membros associados denominado povo que advém da soberania, à qual uns se submetem como súditos. Nessa lógica, cada pessoa pode ter “[...] uma vontade particular, contrária ou diversa da vontade geral que tem como cidadão, mas será fiel ao Estado por reconhecê-lo como ente de razão, cada indivíduo usufruirá os direitos que lhe cabem como integrante do corpo coletivo”.55 Talvez por isso a sociologia veja o Estado como instituição que organiza a vontade de um

48 M ACHI AVE LLI, N. O príncipe. 25. ed. Rio de Janeiro: Ediouro. Fac-similie da edição de 1532 de O

príncipe, p. 27–37.

49 BOBBIO, 2011, p. 65–6.

50 “O que ‘Estado’ e ‘política’ tem em comum nas observações deste autor (e é inclusive a razão da sua

intercambialidade) é a referencia ao fenômeno do poder. Do grego, ‘Kratos’, ‘força’, ‘potência’, e ‘arché’, ‘autoridade’ nascem os nomes das antigas formas de governo, ‘aristocracia’, ‘democracia’, ‘oclocracia’, ‘monarquia’, ‘oligarquia’. Todas as palavras foram gradativamente sendo forjadas para indicar formas de poder, ‘fisiocracia’, ‘burocracia’, ‘partidocracia’, ‘poliarquia’, ‘exarquia’ etc. Não há teoria política que não parta de alguma maneira, direta ou indiretamente, de uma definição de ‘poder’ e de uma analise do fenômeno do poder” — ver: BOBBIO, 2011, p. 76–7.

51 BOBBIO, 2011, p. 76.

52 BODI N, J. Six livres de les. La République, Du Puys, Paris (trad. It. parcil Uted, Turim 1964) apud

BOBBIO, 2011, p. 66.

53 BODIN, 1964, p. 94.

54 ROUSSE AU, J. J. Do contrato social. 3. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983, p. 108. 55 ROUSSE AU, 1983, p. 35–6.

povo politicamente constituído — seus interesses coletivos. Isso indicaria “[...] que o poder coercitivo do Estado está de alguma forma relacionado com a vontade popular e que o povo possui interesses ou propósitos comuns”.56

De imediato, a proximidade entre os sentimentos de um povo e o valor de solidez atribuída a suas instituições não impede o uso do termo Estado-nação ou Estado nacional. Na filosofia moderna — a que historicamente começa com Hegel —, o Estado derivou da existência mesma do agrupamento, que ele representa. Contudo, neste momento seria prematuro insistir no vínculo entre vontade do povo e exercício estatal do poder; convém, antes, avançar no entendimento histórico dos fins e das funções do Estado. Para isso, recorremos a abordagens histórico-políticas que possam subsidiar uma compreensão das relações entre Estado e educação republicana. Um ponto de partida recorrente para entender teoricamente a concepção de Estado — suas finalidades e funções — é o pensamento de Norberto Bobbio: autor que se inquieta com o nome Estado e as ações que este introduziu em sua feição moderna, ou seja, diferente de sua feição feudal.

1.2.1 Estado segundo abordagens histórico-políticas

Nos primórdios da era moderna, o Estado obedecia não só a uma reivindicação de clareza lexical, mas também à necessidade de encontrar um novo nome para uma nova realidade que se apresentava — a do Estado precisamente moderno — para traduzir uma forma de ordenamento tão diferente das formas anteriores, que não poderia mais permanecer com os nomes antigos. Isso porque é na experiência marcada pela ambiguidade de um mundo em transformação que a modernidade se expressa, mais que na transformação das bases materiais das sociedades. O contexto moderno do Estado se traduz assim nas palavras de Marshall Berman: “[...] um ambiente que promete aventura, poder, alegria, crescimento, autotransformação e transformação das coisas ao redor, mas ao mesmo tempo ameaça destruir o que temos, tudo o que sabemos, tudo o que somos”.57 Nesse contexto, a ordem social e a concentração de poder de comando de dado território, segundo Bobbio, cabe ao Estado: instituição a que a política se restringe. O Estado moderno se preocupa em organizar e controlar as ações do povo. Dentre historiadores, juristas, escritores e políticos que refletem sobre esse período há certo consenso de que se trata de realidade desconhecida e cuja palavra que lhe nomeia seria só um indicador, a ponto de se poder falar em Estado só para formações

56 SI LVA, B. (Coord.). Dicionário de ciências sociais. Rio de Janeiro: Fundação Getulio Vargas, 1986, p. 416. 57 BERM AN, M. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. São Paulo: Companhia das

políticas nascidas da crise da sociedade medieval, e não para ordenamentos precedentes. Igualmente, a concepção de Estado não pode ser tida como universal porque este indica e delineia uma forma apenas de ordenamento político.

Bobbio data o desdobramento do Estado moderno nestes termos: teria surgido na “[...] Europa no século XIII até o fim do século XVIII, ou ainda no começo do XIX, na base de pressupostos e motivos específicos da história européia [...]”; depois teria se “[...] estendido — libertando-se, de certa maneira, das suas condições originais e concretas de nascimento — a todo o mundo civilizado”.58 Enquanto parte da civilização desse mundo estava na construção de um conhecimento científico que culminaria na chamada Revolução Científica — também na Europa —, a necessidade de civilizar o homem brasileiro era parte do contexto local, e à educação caberia afirmar o conhecimento como forma de o Estado controlar a população via escolarização no período republicano. No fluxo das transformações no cenário internacional, autoridades políticas brasileiras nos primórdios do regime republicano voltaram sua crítica à ordem regente da sociedade imperial, então tida como atrasada, retrógrada, cheia de mazelas do período colonial e escravagista; empenharam-se para conceber e concretizar um Estado moderno com reformas e tentativas de regenerar e civilizar a sociedade e o país.

O Brasil moderno da Primeira República — diz Raymundo Faoro — alinhava-se a uma ideologia articulada com

[...] padrões universais, irradiados da Inglaterra, França, e Estados Unidos, confortando a consciência dos ocidentalizadores, modernizadores da sociedade e da política brasileira muitas vezes enganados com a devoção sem exame aos modelos. Ser culto, moderno, significa, para o brasileiro do século XIX e começo do século XX, estar em dia com as idéias liberais, acentuando o domínio da ordem natural, perturbada sempre que o Estado intervém na atividade particular. Com otimismo e confiança será conveniente entregar o individuo a si mesmo, na certeza de que o futuro aniquilará a miséria e corrigirá o atraso.59

Com efeito, essas ideias permeiam a obra A construção da ordem de José Murilo de Carvalho, para quem “O Estado moderno europeu cresceu a partir do século XIII num movimento de implosão política sobre cujas características gerais há consonância entre autores de distintas persuasões”.60 Suas características essenciais seriam a ordem legal, a burocracia, a jurisdição compulsória sobre um território e o domínio da autenticidade da força do Estado.

58 BOBBIO, N.; MATTEUCCI, N.; PASQUINO, G. Dicionário de política I. Brasília: ed. UnB, 1998, p. 425. 59 FAORO, R. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. 4. ed. São Paulo: Globo, 2008, p. 567. 60 CARVALHO, J. M. A construção da ordem: a elite política imperial; teatro de sombras; a política Imperial.

Todavia, importa saber se, subjacente à “devoção sem exame” ao modelo europeu ou norte-americano, já havia uma concepção de Estado, ou se esta se constituiu à época da modernização. Saber isso pressupõe uma definição de Estado que denote análises, seja mais extensas, seja mais restritas, pois a escolha de uma concepção depende de critérios e fatores; por exemplo: é provável que, quanto mais conotações determinada concepção suscite, mais se reduza o campo denotado por ela. Bobbio pode ser mais esclarecedor aqui; segundo ele,

Quem considera como elemento constitutivo do conceito de Estado, também um certo aparato administrativo e o cumprimento de certas funções que apenas o Estado moderno desempenha, deverá necessariamente sustentar que a polis grega não é um Estado, que a sociedade feudal não tinha um Estado etc. O problema real que deve preocupar todos os que têm interesses em compreender o fenômeno do ordenamento político não é portanto o de saber se o Estado existe apenas a partir da idade moderna, mas sim o de saber se existem analogias e diferenças entre o assim chamado Estado moderno e os ordenamentos políticos precedentes, se devem ser postas em evidencia mais umas do que outras, qualquer que seja o nome que se queira dar aos diversos ordenamentos.61

Se assim o for, então a existência do Estado moderno europeu como figura de organização do poder se alinha a uma história produzida e, como tal, caracteriza-se por conotações que o tornam diverso de outras formas de organização do poder também historicamente determinadas e interiormente homogêneas. Um dado fundamental nessa distinção está,

Sem dúvida, na progressiva centralização do poder segundo uma instância sempre mais ampla, que termina por compreender o âmbito completo das relações políticas. Desse processo, fundado por sua vez sobre a concomitante afirmação do princípio da territorialidade da obrigação política e sobre a progressiva aquisição da impessoalidade do comando político, por meio da evolução do conceito de officium, nascem traços essenciais de uma nova forma de organização política: precisamente o Estado moderno.62

Há autores que se referem ao caráter de centralização do Estado como algo válido — em especial no nível histórico-institucional —, como marcadamente “politológico” e como monopólio da força legítima. Nessa lógica, mais que o dado funcional e organizativo, a centralização seria “[...] evidência tipicamente política da intenção de superação do policentrismo do poder, em favor de uma concentração do referido poder, em um interesse tendencialmente unitário e exclusivo”.63

A consolidação do Estado moderno permeia o conflito do sistema policêntrico e complexo dos senhores feudais, que se aproxima do Estado territorial, centralizado e unitário

61 BOBBIO, 2011, p. 69.

62 BOBBIO; M AT T EUCCI; PASQUINO, 1998, p. 426. 63 BOBBIO; M AT T EUCCI; PASQUINO, 1998, p. 426.

graças à racionalização da administração do domínio e ao preparo político resultante do desenvolvimento das condições histórico-materiais. A ordem prescrita pelo Estado moderno se estabiliza como projeto racional da humanidade em volta de seu destino terreno como ordem política, conforme diz Bobbio. “[...] a passagem do Estado de natureza ao Estado civil, não mais é do que a tomada de consciência por parte do homem [...] das suas capacidades para controlar, organizar, gerir e utilizar esses condicionamentos para sua sobrevivência e para seu crescente bem-estar.”64 Esse movimento sugere que o homem busca organizar as relações sociais como variante do modelo universal de Estado, detentor do monopólio e da força legítima.

No Brasil, a concepção de Estado como ordenamento político abraçada pela elite se valeu do liberalismo europeu nos segmentos político, econômico e educacional, dentre outros. Mas os brasileiros adotaram os princípios liberais não sem ajustá-los a sua realidade.