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CAPÍTULO I TEORIA GERAL DO DIREITO

I.IV. Norma Jurídica

A expressão “norma jurídica” costuma ser empregada em sentido amplo, podendo representar, dependendo do contexto, o texto jurídico, os enunciados prescritivos neles constantes, os veículos introdutores de normas e/ou a própria conduta normatizada.

Na visão de Ivo (2006: p. XXII):

debaixo de um mesmo rótulo (= norma jurídica) se escondem elementos distintos. É comum o termo referir-se aos instrumentos introdutores de normas, aos documentos normativos, aos enunciados prescritivos e ao sentido que se atribui aos enunciados prescritivos. Assim, quando nos deparamos com um diário oficial encontramos leis publicadas. Essas leis publicadas contêm enunciados que veiculam normas. Não vemos as normas, porquanto o que se abre aos nossos olhos são os textos prescritivos por meio dos quais elas são transmitidas.

No seu sentido estrito, porém, a norma jurídica é reduzida ao sentido completo da mensagem prescritiva, vale dizer, à unidade mínima e irredutível do deôntico, construída intelectualmente a partir da interpretação dos textos produzidos no sistema jurídico, na linha do que predica Carrazza, R. (2010: p. 15):

a legislação não se confunde com o conjunto de normas jurídicas; estas somente surgem com a interpretação da legislação.

Realmente, a partir dos enunciados do direito positivo, o exegeta, valorando-se, constrói as normas jurídicas. Não se nega que estas tomam como ponto de partida os textos do direito positivo, porém seu conteúdo vem discernido pelo intérprete, que se vale, para tanto, de sua própria ideologia, isto é, de sua pauta de valores. As normas jurídicas são, pois,

construções intelectuais do intérprete, efetuadas a partir da análise da legislação lato sensu.

De acordo com o modelo proposto por Carvalho, P. (2010), a compreensão dos textos prescritivos do direito positivo opera-se por meio de um percurso gerador de

sentido, que pode ser segregado em quatro planos.

O primeiro deles (S1) consiste no plano da expressão, da literalidade textual ou plano dos significantes. Neste plano estão depositados os documentos normativos, suporte físico dos enunciados prescritivos. Aqui ocorre o primeiro contato do intérprete com o texto, momento no qual a análise recai sobre os enunciados prescritivos. Neste momento o intérprete analisa as palavras, frases, períodos e parágrafos constantes dos documentos normativos.

Ato contínuo, o exegeta ingressa no plano do conteúdo (subsistema S2), imitindo-se na dimensão semântica e pragmática dos comandos legislados. É o momento em que são criados valores unitários aos vários signos dos enunciados, selecionando as significações (proposições) individuais dos enunciados.

No terceiro plano, o intérprete contextualiza as proposições criadas isoladamente, construindo uma significação normativa plena. Neste momento, o exegeta sistematiza as proposições, identificando uma unidade completa de sentido para as mensagens veiculadas nos textos jurídicos. É aqui que o raciocínio do jurista transforma os textos normativos em normas jurídicas em sentido estrito.

Em esclarecedora lição, Carvalho, P. (2010: p. 249-250) registra que

a norma jurídica não se encontra no plano de expressão, não faz parte do sistema morfológico e gramatical do direito, por este motivo nunca é explícita. Está em outro plano: dos conteúdos significativos deonticamente elaborados. Ela é um juízo construído pelo intérprete a partir dos enunciados prescritivos, por isso, sempre implícita.

O intérprete, no plano S3, cria a norma jurídica stricto sensu, compondo a regra de conduta regulada pelo direito positivo.

Finalmente, o processo exegético se esgota no subsistema S4, plano este no qual as normas jurídicas são sistematizadas e agrupadas nas suas relações de coordenação e subordinação, a fim de definir sua hierarquia dentro do sistema jurídico.

Essa classificação do caminho para a construção do sentido normativo em planos (S1, S2, S3 e S4) é apenas metodológica. O exegeta transita livremente por

estes subsistemas, quantas vezes julgar necessárias, mas sem deles sair. Com tais incursões, ratifica-se a unidade do sistema jurídico, esgotando-se seus componentes num modelo devidamente articulado do ponto de vista lógico: a norma jurídica enquanto um juízo implicacional.

Na linguagem do direito posto, as normas jurídicas seguem o princípio da imputação18. Segundo o magistério de Borges (1999: p. 20):

as normas jurídicas atuam, na sociedade, segundo o princípio da imputação: dado um certo antecedente normativamente previsto, um descritor normativo (Voraussetzung), deve-se seguir um certo consequente, um prescritor normativo (Folgerung). Quer dizer: ao comportamento normativamente regulado imputa-se uma consequência juridicamente relevante.

A norma jurídica estrita apresenta-se na forma de um juízo hipotético condicional, estrutura típica da linguagem prescritiva e que pode ser reduzida à seguinte fórmula: “se se dá um fato F qualquer, então o sujeito Sa deve fazer ou deve omitir ou

pode fazer ou omitir conduta C ante outro sujeito Sp – assim deve ser” (VILANOVA,

2010: p 57).

Essa estrutura é inerente a todas as normas jurídicas em seu sentido estrito, que se diferenciam apenas quanto ao seu conteúdo. Isto significa dizer que o direito positivo é um sistema fechado sintaticamente (homogeneidade sintática), mas aberto nos seus aspectos semânticos e pragmáticos (heterogeneidade semântica)19.

Observando a estrutura normativa, identificamos duas proposições: (i) a hipótese (antecedente ou pressuposto), que descreve um acontecimento de possível ocorrência, o qual serve de fundamento para atribuição de (ii) uma consequência (tese ou prescritor), cuja função é criar um vínculo relacional entre dois sujeitos.

Como explica Santi (2005: p. 9):

18 “Imputação”, segundo leciona Kelsen (2012: p. 101), “designa uma relação normativa. É esta relação – e não qualquer outra – que é expressa na palavra ‘dever-ser’, sempre que esta é usada numa lei moral ou jurídica.”

19 Com efeito, o fechamento sintático leva em conta a auto referência do direito (é o próprio sistema jurídico que cria sua realidade), ao passo que a abertura semântica e pragmática consiste na possibilidade (i) do legislador inserir novos fatos sociais no sistema do direito positivo, assim como a (ii) dos aplicadores do direito alterarem a significação dos signos positivados no sistema, conforme seus referenciais e evolução cultural.

A hipótese implica a tese. Descritor de possível situação fáctica do mundo natural ou social, o primeiro; prescritor da relação em que um sujeito Sa fica em face de outro sujeito Sp, o segundo.

Retomando a fórmula D [h → R(Sa, Sp)] temos: “D” functor-de-functor indicador da operação deôntica incidente sobre a relação de implicação interproposicional, é o functor “D” (deve ser o vínculo implicacional) que constitui o nexo jurídico das proposições jurídicas intranormativas (hipótese e tese); “h”, hipótese; “→”, conectivo implicacional; e “R(Sa, Sp)”, tese. Nesta, “R” é variável relacional que no universo deôntico triparte-se nos modais obrigatório (O), permitido (P) e proibido (V); “Sa” e “Sp” são os termos, relato e referente, desta relação.

O antecedente normativo é descritor de uma situação que pode ocorrer no mundo fenomênico. Tem por função estabelecer as notas que um fato social tem para tornar fato jurídico, implicando uma determinada consequência no ordenamento jurídico. A hipótese, ensina Vilanova (2010: pp. 49, 52), é a

parte ou membro da norma que tem a função de descrever possível

ocorrência no mundo, possível modificação do estado de coisas que

entretêm a instável circunstância humana. É a hipótese da norma (seu antecedente, pressuposto, prótase, como se denomine).

(...)

No campo do direito, especialmente, a hipótese apesar de sua descritividade, é qualificadora normativa do fáctico. O fato se torna fato jurídico porque ingressa no universo do direito através da porta aberta que é a hipótese. E o que determina quais propriedades entram, quais não entram, é o ato-de-valoração que preside à feitura da hipótese da norma.

A hipótese normativa pode ensejar a qualificação da norma jurídica em abstrata ou concreta. Uma norma é abstrata quando contém critérios de identificação de um evento futuro e incerto, mas de possível ocorrência; e concreta quando descrever um acontecimento passado, definido no tempo e espaço.

Utilizando-se dessa classificação, convém observar, com apoio nas lições de Moussallem (2006: p. 135), que

a norma abstrata não contém no seu antecedente o fato jurídico, mas unicamente os critérios para sua identificação. Ao contrário, a norma concreta encerra no seu interior o fato jurídico. A norma abstrata enuncia a conotação do fato, enquanto a norma concreta compreende a denotação do fato jurídico.

Pois bem. O antecedente normativo é conectado ao consequente por meio do “dever-ser” (deve ser que H implique C: “D (H → C)”), de acordo com o ato de vontade da autoridade competente.

O consequente da norma (tese) tem por função determinar uma conduta que deve ser prestada por um sujeito em relação a outro. Nele estão previstos os efeitos imputados ao acontecimento relevante no mundo jurídico. Nas palavras de Carvalho, P. (2011: p. 133):

se a proposição-hipótese é descritora de fato de possível ocorrência no contexto social, a proposição-tese funciona como prescritora de condutas intersubjetivas. A consequência normativa apresenta-se, invariavelmente, como uma proposição relacional, enlaçando dois ou mais sujeitos de direito em torno de uma conduta regulada como proibida, permitida ou obrigatória.

O prescritor normativo, pois, constitui o meio por excelência da concretização do direito. Os efeitos atribuídos aos fatos jurídicos são justamente a forma de garantir a realização do comportamento, sob pena de o Estado aplicar uma sanção no caso de seu descumprimento.

As notas informativas do consequente devem guardar fiel relação com a situação prevista no antecedente, uma vez que esta é causa daquele. O prescritor é sempre uma proposição relacional criadora de um vínculo entre dois ou mais sujeitos em torno de uma determinada conduta, que deve ser prestada por um e pode ser exigida por outro.

A relação jurídica prevista no mandamento da norma é expressa por intermédio do conectivo dever-ser modalizado em permitido, obrigatório, ou proibido, com o que se exaure a possibilidade do comportamento. Qualquer conduta caberá sempre em um destes três modais deônticos, não havendo lugar para uma quarta alternativa (lei do quarto excluído).

O consequente da norma pode ser classificado como individual ou geral.

Individual é aquele que identifica (personaliza) os sujeitos da relação jurídica; e geral é

aquele em que não há esta identificação, regulando uma conduta para uma classe indeterminada de pessoas.

Feitas todas essas considerações, forçoso concluir que é possível construir (i) normas gerais e abstratas; (ii) normas gerais e concretas; (iii) normas individuais e concretas e (iv) normas individuais e abstratas.

As normas individuais e concretas são sempre subordinadas às gerais e abstratas. Para Carvalho, P. (2010: p. 56): “há uma forte tendência de que as normas

gerais e abstratas se concentrem nos escalões mais altos, surgindo as gerais e concretas, individuais e abstratas e individuais e concretas à medida que o direito vai se positivando”.

De fato, as normas gerais e abstratas são produzidas para serem aplicadas. Já as normas individuais e concretas são resultados da incidência daquelas sobre fatos determinados. O que uma prescreve abstratamente, criando uma classe que compreende inúmeros elementos (mais precisamente, tantas quantas forem as situações passíveis de enquadramento), a outra define tais elementos, situando-se no próprio campo material das condutas normatizadas.

Ressalte-se que a diferença entre elas repousa no fato de que a norma abstrata enuncia a conotação do fato, ao passo que a norma concreta demarca um conceito denotativo. E para que seja possível essa denotação (que equivale à própria constituição do fato jurídico), a norma geral e abstrata deve conter critérios mínimos que permitam a sua aplicação.

Tais critérios formam o que a doutrina denomina de regra matriz de

incidência20, expressão que designa a norma jurídica que contém, no seu antecedente: (i) um critério material (uma ação ou comportamento), (ii) um critério temporal (o tempo da ação) e (iii) um critério espacial (o espaço da ação); e no seu consequente: (iv) um critério pessoal (identificador dos sujeitos da relação jurídica) e (v) um critério mensurador da prestação (o objeto da conduta).

Somente a partir do momento no qual são satisfeitos todos esses requisitos na ordem social, e desde que haja o devido relato linguístico na forma prescrita pelo direito, é que um “evento” passa a ser “fato jurídico”21.

20 Tal terminologia foi bem explicada por Carvalho, A. (2010: p. 376): “Na expressão “regra-matriz de incidência” emprega-se o termo “regra” como sinônimo de norma jurídica, porque trata-se de uma construção do intérprete, alcançada a partir do contato com os textos legislados. O termo “matriz” é utilizado para significar que tal construção serve como modelo padrão sintático-semântico na produção da linguagem jurídica concreta. E “de incidência”, porque se refere a normas produzidas para serem aplicadas”.

21 “Fato jurídico é o resultado da incidência da linguagem normativa sobre a linguagem da realidade social, só possível pelo ato de aplicação do direito.” (MOUSSALLEM, 2006: p. 135).

Nesse ponto, importante traçar breves considerações sobre a diferença entre “evento”, “fato” e “fato jurídico". Fato é o relato do evento; e fato jurídico é o relato do evento pela linguagem competente (isto é, produzida no interior do sistema jurídico). O evento se perde no tempo e no espaço. Não temos como repetir um evento, apenas podemos falar sobre ele, na linguagem natural, na linguagem jurídica etc..

Tais signos foram diferenciados com propriedade por Carvalho, A. (2010: p. 522): “evento é uma situação de ordem natural, pertencente ao mundo da experiência,

fato é a articulação linguística desta situação de ordem natural, e fato jurídico é a sua articulação em linguagem jurídica”.

O direito positivo não tem condições de normatizar as condutas referidas diretamente a todas as pessoas. É por isso que o sistema jurídico trata, primeiramente, das situações genéricas de possíveis ocorrências para, a partir daí, criar regras específicas (normas individuais e concretas), a fim de individualizar a conduta propriamente dita, solucionando os conflitos e efetivando a regulação das condutas interpessoais.