• Nenhum resultado encontrado

A notícia como “narrativa”

No documento O admirável Mundo das Notícias (páginas 65-71)

Muitos autores têm sublinhado a existência de uma dívida das notícias para com outras formas de narrativa popular. Em 1968, Hugues já desenvolvera um estudo pioneiro sobre as histórias de interesse humano, mostrando como certas histórias como “as da criança perdida” são recorrentes actualizadas nas peças noticiosas, arrastando consigo o tema da inocência ameaçada e do «pa- pão». Robert Darnton (1975) desenvolveu também o tema dos arquétipos narrativos nas histórias de interesse humano.

Michael Schudson desenvolveu uma teoria segundo a qual a configuração das notícias emerge das interacções com as tradições literárias e culturais de cada país. As notícias são enunciados produzidos de acordo com as necessi- dades e fórmulas consagradas por uma organização especializada. Porém, são também “estórias” que estão associadas à busca de um sentido de comunidade de pertença e que reflectem a sua contaminação por outras formas simbólicas, provenientes sejam das tradições da cultura escolarizada e canónica sejam da cultura entendida num sentido mais vasto e antropológico (Schudson, 2003, p. 182). O acto de produzir notícias vive indissociavelmente a par com o acto de relatar uma história, negando-se a dicotomia que codifica o estilo narrativo como antitético da produção de notícias (Zalizer, 2004, p. 131).

Desta forma, ao abandonar a noção segundo a qual a notícia é um espe- lho da realidade, constata-se que a mesma é um dispositivo para dar forma à experiência tal como um poema, um romance, um livro de histórias ou um Livros LabCom

58 O admirável Mundo das Notícias

conto de fadas. A distinção entre os diversos tipos de notícias pode, segundo Schudson, ser feita a partir da teoria dos géneros:

Como é que o jornal e a notícia são únicos no seu género ou no seu uso dos géneros? Suponhamos que se faz uma simples per- gunta baseada na teoria dos géneros de Northropp Frye: a notícia é romance, tragédia, comédia ou sátira? Isto é, trata-se de um género no qual os heróis se erguem do mundo frustrado da expe- riência para um ideal mais alto e um mundo desejável (comédia); ou um em que todo o movimento se passa num mundo altamente desejável (romance); ou em que há uma descida do mundo ideal para o mundo do desapontamento e da experiência (tragédia); ou em que todo o movimento está no mundo da experiência (sátira ou ironia)? (Schudson, 1988, p. 25)

Neste sentido, estabelece-se um ângulo de análise que ganhou particular força no âmbito da teoria da notícia no qual se acredita mesmo que “a circu- lação de identidades entre o ficcional e a narrativa de realidade é muito forte no campo jornalístico” (Mendes, 2001, p. 388).

Ou seja, em qualquer produção noticiosa, também temos uma de mobiliza- ção de recursos narrativos tradicionais que é mais visível e explorada em torno de emoções e melodramas no jornalismo que privilegia a dimensão sensacio- nal de ocorrências e declarações (Ponte, 2004, p. 46). Assim, “a narratividade é uma das características dominantes do texto jornalístico” e insere-se no âm- bito mais alargado da «narrativa factual» que engloba, entre outras, as formas discursivas relacionadas com a história, a biografia e o diário (Mesquita, 2003, p. 13).

Segundo Motta (2007, p. 143), graças aos enunciados narrativos pode- mos colocar as coisas em relação umas com as outras, numa ordem e numa perspectiva, numa desenrolar lógico e cronológico. A narratividade é a qua- lidade de descrever algo enunciando uma sucessão de estados de transforma- ção, dotando as acções de sequencialidade e respondendo a uma necessidade da experiência que alguns psicólogos culturais consideram anterior à própria linguagem. Pode-se, pois, falar de um arquétipo ideal comum à narrativa, inclusive a jornalística, do qual existe uma permanente recriação através de narrativas individuais. Nesta aproximação podem convergir vários elementos www.livroslabcom.ubi.pt

João Carlos Correia 59

de natureza teórica: a pesquisa de Propp sobre as funções, entendidas como acção de um personagem definida do ponto de vista da sua significação no desenrolar da intriga; as análises de Greimas que apontam para a existência de uma matriz estrutural estabelecida em torno de um conjunto de tensões que geram a narrativa; a pesquisa de Todorov de “uma gramática universal da nar- rativa”; a proposta de Lévi-Strauss de “uma matriz estrutural atemporal” da narrativa mítica; a noção de Jung de um inconsciente colectivo onde se contêm todos os tipos originais de representação simbólica, convergem na existência de um núcleo duro do imaginário humano, numa espécie de fundo comum e inconsciente que gera matrizes comportamentais permanentes a partir do desejo, do saber e do poder (Mendes, 2001, pp. 330-336).

O reconhecimento da notícia como forma narrativa permite, obviamente, a sua análise narratológica. Para Mota (2007, pp. 147-166) podemos distinguir cinco momentos analíticos:

a) A identificação da serialidade temática e do enquadramento narrativo cronológico através da recorrência do tema nas notícias isoladas, tendo em conta que os acontecimentos são apresentados de forma dispersa e descontínua. Pretende-se aqui proceder a uma recomposição retrospec- tiva, por parte do analista, do enredo da história. Aí importa identificar os encaixes que permitem estruturar os efeitos de sentido pretendidos: retardamento do desfecho, nexos de causalidade, ritmo da narrativa; b) Um segundo momento tem a ver com a identificação dos conflitos, con-

siderados como elemento estruturador de qualquer narrativa, especial- mente da narrativa jornalística, na qual a situação inicial é um facto que irrompe, desorganiza, transforma e rompe o equilíbrio. Na identificação dos conflitos, procede-se à identificação de episódios que correspondem às transformações no decorrer da “estória”. Assemelham-se às funções identificadas por Propp e, mais tarde, por Greimas na narrativa literária e constituem um elemento básico da progressão narrativa. No caso, da narrativa jornalística, a história pode começar com um clímax, havendo um conjunto de estratégias correspondentes à analepse (flashback) no sentido de proceder a uma constituição semântica do enredo (Motta, 2007, pp. 149-151).

c) Um terceiro movimento analítico tem a ver com a identificação dos per- Livros LabCom

60 O admirável Mundo das Notícias

sonagens, os quais adquirem especial importância na notícia, transfor- mando-se no eixo das histórias. Motta (2007, pp. 153-154) explica que, no jornalismo, os personagens têm uma dimensão fáctica mas isso não impede um certo investimento subjectivo do repórter que escolhe quais acções, traços de carácter, características, em suma, quais os elementos que lhe são propostos pelo real que ele vai elaborar.

d) Um quarto movimento analítico tem a ver com a análise de estratégias comunicativas das quais se destacam as estratégias de objectivação e os efeitos de real e as estratégias de subjectivação e a construção de efeitos poéticos (Motta, 2007, p. 157-159).

As estratégias de objectivação são predominantes no jornalismo, visando fazer com que os leitores/ouvintes interpretem os factos narrados como verda- des, como se os factos estivessem a falar por si mesmos. Entre os recursos de linguagem que favorecem este efeito contam-se a ênfase do presente e do ins- tante, a construção da teia de facticidade tão visível na utilização das citações (forma de encobrir a subjectividade e dissimular a mediação), a identificação precisa e sistemática do lugar e do tempo, a utilização de deícticos ou às ve- zes sua omissão como forma de ocultação do sujeito enunciador, o abundante uso de números e de estatísticas. No caso da citação, é possível pensar duas situações-limite: a ausência de encadeamento entre os dois discursos, exis- tindo apenas uma relação entre discursos autónomos num plano exterior ao enunciado ou a intertextualidade pura que consiste na fusão de dois discur- sos numa estrutura homogénea (Rebelo, 2000, p. 67). Verificam-se assim duas situações: conservação e delimitação estável do discurso reportado den- tro de limites identificáveis ou assimilação e absorção do discurso reportado. No caso específico do jornal, a primeira situação verifica-se na citação e a segunda na intertextualidade.

Ao trabalhar o espaço da intertextualidade, o jornal neutraliza o enun- ciador assumindo ele próprio a responsabilidade do dito ou remetendo para o senso comum ou para a evidência. Ao recorrer à citação, o jornal enuncia o que é dito e quem o disse, o que permite a identificação da intencionalidade subjacente ao acto de dizer. Podem-se encontrar, deste modo, transcrições integrais sem referência à fonte ou com referência à fonte. Porém, a referên- cia à fonte, apesar de ser, canonicamente, considerada como mais legítima, www.livroslabcom.ubi.pt

João Carlos Correia 61

também funciona como estratégia de legitimação do já dito. Ou seja, muitas vezes os factos não passam da transcrição rigorosa de depoimentos oficiais, descartando o jornal de um maior empenho investigativo.

Podem-se também encontrar uma estratégia de amálgama em que o enun- ciado primário deixa de ser reproduzido na sua forma própria e é substituído pelo enunciado do jornal que impõe o seu vocabulário. São situações em que a assimilação do discurso da fonte faz com que a relação estabelecida entre o enunciado primário e o enunciador portador se aproxime da fronteira que se- para a citação da intertextualidade (Hillary diz que quer “união global” contra a Coreia do Norte, I, 22 de Maio de 2010); ou ainda outras situações ainda que o jornal procede à interpretação do dito do enunciador primário (“Manuel Alegre diagnostica nervosismo a Cavaco Silva” in RTP, 25 de Junho de 2010); ou do dito dos enunciadores (“Beira Interior Unida Contra Portagens in “JF” – 24 de Junho de 2010).

Outra estratégia enunciativa concretiza-se através da despersonalização exactamente para assegurar e reafirmar a ideologia jornalística da objectivi- dade. Nalguns livros de estilo de estilo (como sucede nas agências) a desper- sonalização inclui a ausência de espacialização (não é permitido dizer “aqui” e “ali” porque isso implica um autor que se posiciona espacialmente) e de temporalização (não é permitido em despachos de agência dizer «ontem», «hoje», «agora» porque isso remete para um tempo vivido pelo enunciador que se «apaga»). As técnicas de redacção objectiva também servem para ocultar a presença do narrador/repórter ou, se assim se quiser, do narrador instituição/empresa.

Já as estratégias de subjectivização geram nos leitores efeitos de sentido emocionais e estão visíveis nas escolhas lexicais, no uso de qualificativos e de possessivos, no recurso a substantivos estigmatizados (terroristas, radicais, marginais), nas figuras de estilo, nos implícitos, etc.

e) Um quinto movimento analítico dirá respeito ao modo e ponto de vista em que a história é narrada, um ponto de vista que não pode ser ana- lisado como uma pura imposição do olhar do narrador mas da existência de uma relação comunicativa entre narrador e narratário em que o texto se torna o nexo de uma actividade interactiva entre os dois interlocuto- res, em que há lacunas, indeterminações e relações que são preenchidas pelo receptor (Motta, 2007, p. 161-164).

62 O admirável Mundo das Notícias

f) Finalmente, um sexto movimento analítico diz respeito à identificação das metanarrativas e ao significado moral ou simbólico profundo que se encontra por detrás das narrativas, já referidas.

Apesar da importância reconhecida às histórias (“estórias”) no processo noticioso, Bird e Dardenne continuam a achar útil a distinção entre registo e história (“estória”). Assinalando que na narrativa oral africana há lugar para formas de contar mais próximas do registo e formas de contar mais próxi- mas da história, os autores utilizam a palavra “registo” para referirem relatos mais rotineiros, elaborados no estilo conciso e que registam acidentes, crimes pouco importantes, assuntos do governo local e nacional que se inscrevem no dia-a-dia. A diferença entre “registos” e “estórias”, no fundo, corresponde- ria à distinção canónica entre hard news e soft news, sendo que as primeiras constituem notícias construídas com um a linguagem seca e factual centradas em eventos discretos, relatados com uma fórmula que remete para a mais es- trita imparcialidade. Porém, acrescentam: “Isto não leva a deduzir que «os registos» ao contrário das «estórias», se limitam a registar a realidade, em- bora isto pareça ser o modo como vieram a ser relatados pelos profissionais da informação. De facto, são um elemento vital no processo mitológico con- tínuo. Fornecem-nos o pano de fundo de acontecimentos que nos informam que o mundo ainda continua e que as coisas que prezamos ainda têm interesse” (Bird e Dardenne, 1993, p. 269).

Esta distinção tem implicações cuidadosamente assinaladas: as notícias que seguem a forma de «registos» ou de hard news seguem, de forma canó- nica e estrita, o método da pirâmide invertida e o relato sequencial de acordo com a ordem crescente da notícia, respondendo de forma seca e concisa às seis perguntas consideradas essenciais para estruturar uma rede de facticidade. Po- rém, proporcionam claramente uma leitura orientada e económica que leva os leitores a debruçarem-se sobre o que consideram essencial. Já a “estória” tem de apresentar relações de causa e efeito, a interligação das explicações no sen- tido narrativo e dispensa o lead clássico, pois carece de um certo suspense e de uma certa excitação. É escrita sob a forma de uma novela curta com títu- los sugestivo. Curiosamente, estas “estórias” parecem suscitar mais interesse e proporcionar uma memorização mais apurada por parte dos leitores. Mui- tas das vezes correspondem a certos estilos da tradição oral, o que explica o motivo pelo qual certos géneros são preferidos no interior de uma certa co- www.livroslabcom.ubi.pt

João Carlos Correia 63

munidade. (Bird e Dardenne, 1993, p. 274). Ou seja, há uma gramática do «mostrar» que não coincide com a gramática do «contar».

2.6 Jornalismo: entre saber cognitivo e saber narra-

No documento O admirável Mundo das Notícias (páginas 65-71)