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Os estudos culturais

No documento O admirável Mundo das Notícias (páginas 175-180)

5.2 Abordagens clássicas

5.2.2 Os estudos culturais

O projecto do Cultural Studies Center de Birminghan será apresentado em 1964. Stuart Hall, indicado para Director conferiu uma orientação que em grande parte foi influenciada pelo pensador italiano António Gramsci e que deu uma parte considerável da sua atenção à criação de sentido no interior de uma sociedade ou de uma comunidade dada. Cultura e sociedade são olhadas como interagindo uma com a outra de uma forma dinâmica e que privilegia a análise da produção, formação e circulação de bens culturais.

Os Estudos Culturais desenvolvem-se como uma visão crítica dos proces- sos de dominação implícitos aos fenómenos comunicacionais em que todavia se reconhece uma mais ampla visão conflitual no que respeita à disputa pela conquista do poder simbólico agora designado por hegemonia. Os estudos culturais definem cultura como “o processo contínuo que produz sentidos da nossa experiência social.” (Fiske apud McQuail, 2003, p. 94). Em concordân- cia com esta abordagem, desenvolveram uma abordagem do processo comu- nicacional que analisa o modo com os usos dos media e a sua recepção são integrados e adaptados de acordo com a experiência social e o meio cultural circundante Apesar de se identificarem com muitos pressupostos da Escola de Frankfurt, os estudos culturais dão bastante mais atenção a processos de recepção diferenciados negando uma visão unilateral da ideologia, em que se denota a influência de Gramsci.

A herança gramsciana

Há três conceitos essenciais de Gramsci que fizeram a sua aparição dentro dos Estudos Culturais: ideologia, hegemonia e sociedade civil. A ideologia integra os recursos simbólicos que são utilizados pelas diferentes classes na luta pela obtenção da hegemonia. O conceito de hegemonia caracteriza a li- derança cultural e ideológica de uma classe sobre as outras. Para Gramsci, na luta pela obtenção da hegemonia, os agentes sociais recorrem à ideologia para se alcançar um consenso reordenador das relações sociais. Os signi- ficados, representações e actividades quotidianas são organizados e dados a entender de modo a mistificar as estratégias de um bloco social hegemónico como sendo do interesse geral. Gramsci distingue ainda duas esferas ao nível social. Uma delas é a sociedade política, conjunto de mecanismos através dos

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quais a classe dominante detém o monopólio legal da repressão e da violên- cia e que se identifica com os aparelhos de coerção sob controlo dos grupos burocráticos ligados às forças armadas e policiais e à aplicação das leis. A ou- tra é a sociedade civil a qual designa o conjunto das instituições responsáveis pela elaboração e/ou difusão de valores simbólicos e de ideologias, compre- endendo o sistema escolar, os partidos políticos, as corporações profissionais, os sindicatos, os meios de comunicação, as instituições de carácter científico e cultural, etc. Enquanto a sociedade política tem seus portadores materiais nos aparelhos coercivos de Estado, na sociedade civil operam os aparelhos priva- dos de hegemonia (organismos relativamente autónomos em face do Estado em sentido estrito, como a imprensa, os partidos políticos, os sindicatos, as associações, a escola privada e a Igreja). Tais aparelhos estão empenhados em obter o consenso como condição indispensável à dominação. Por isso, pres- cindem da força, da violência visível do Estado, que colocaria em perigo a legitimidade de suas pretensões (Gramsci, 1977, p. 2010).

Nesta abordagem, a hegemonia não é uma construção monolítica, e sim o resultado do jogo de forças entre blocos sociais actuantes na sociedade civil em determinado contexto histórico. Lugar de luta simbólica, “o domínio da sociedade civil opera sem «sanções» e sem «obrigações» taxativas, mas não deixa de exercer uma pressão colectiva e obter resultados no plano dos cos- tumes, do modo de pensar e de agir, da moralidade, etc.” (Gramsci, 1977, p. 1566). Os estudos culturais recorreram aos conceitos gramscianos e aplica- ram-nos para além da sua origem associando-os a fenómenos de dominação que dizem respeito a múltiplos referentes identitários como sejam o género, a raça e a etnia (Hartley, 2004, p. 130).

Recepção activa

Os estudos culturais, na sua versão mais conhecida, valorizaram a influência de Gramsci, nomeadamente ao enfatizarem o estudo da ideologia na cultura mediática, de um modo que parece absorver os elementos dinâmicos e confli- tuais que claramente permitem a distinção em relação à Escola de Frankfurt (McQuail, 2003, p. 99). Esta inflexão reflecte-se, por exemplo, na impor- tância conferida à significação da cultura dos media para a experiência dos grupos particulares na sociedade.

A investigação levada a efeito pelos autores que se identificaram com es- www.livroslabcom.ubi.pt

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tes pressupostos teóricos foi realizada em grande parte no Centro de Estudos Contemporâneos da Universidade de Birmingham nos anos 70. A abordagem crítica que lhe está associada deslocou-se progressivamente do carácter exte- rior e coercivo da ideologia para a forma como ela é lida e descodificada pela sua audiência.

No texto Encoding/Decoding (2002) propôs um modelo de codificação/ descodificação dos discursos dos media, referindo-se expressamente às no- tícias. Segundo a proposta apresentada naquele ensaio, o texto dos media localiza-se entre os seus produtores que lhe definem o sentido, e a audiência que o descodifica. Quer a codificação quer a descodificação do texto mediá- tico se desenvolvem de acordo com as diferentes situações de natureza social e cultural que circundam seja produtores seja a audiência, emergindo, conse- quentemente, diversos quadros de interpretação possível. (Stuart Hall, 2002, pp. 51-52). Por isso, uma das questões que é insistentemente colocada pelos estudos culturais é a de conhecer a forma como o sistema dos mass media se articula com outras estruturas e instituições sociais.

Segundo Hall, no processo de construção de sentido podem verificar-se três situações:

a) A posição hegemónica dominante, em que o receptor adquire o signi- ficado conotado de um modo directo e linear, descodificando a men- sagem em sintonia com o código de referência com que a mesma foi construída. Neste caso, o código hegemónico é construído pelas elites que definem a visão do mundo dominante.

Há um código profissional que diz respeito às especificidades técnicas dos processos de representação do mundo que dispõe de uma autono- mia relativa e há um código ideológico exercido por outras elites assim definidas pela especial posição institucional que ocupam. Hall distin- gue entre os valores – notícia formais, pautados por ideologias e saberes profissionais acerca da forma como os profissionais devem relatar uma peça, e os valores-notícia ideológicos. Esta duplicidade aponta para a coexistência de dois discursos sociais, o discurso profissional e os seus imaginários de experiência, por um lado, e um discurso latente, político e moral que recorda os valores profundos da ordem estabelecida; b) A posição negociada. Enquanto a codificação na versão dominante Livros LabCom

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pressupõe os processos de construção dos significados que permite a legitimação da situação social como um todo, na posição negociada verifica-se uma mistura de elementos hegemónicos e oposicionais. As definições que dizem respeito ao código hegemónico e dominante in- dicam um universo de significados possíveis ou o conjunto de relações sociais respeitantes a um determinado sector, mas verifica-se também, a adopção de significados alternativos ao nível mais restrito ou localizado. Os códigos negociados operam ao nível de lógicas locais resultantes de relações diferenciadas com o poder;

c) A posição contestatária ou oposicional: neste caso, o receptor desco- difica a mensagem de uma forma completamente contrária ao código dominante. É o que se passa com os processos de recepção em que se «lê nas entrelinhas». Por exemplo, um espectador assiste a uma comu- nicação de um Primeiro-Ministro e cada vez que este refere o «interesse nacional», o espectador identifica esta afirmação com os interesses das empresas.

Em suma, nas leituras dominantes, o público apropria-se dos textos que reproduzem os interesses da classe dominante, adoptando as suas intenções ideológicas; uma leitura contestatária passa pela apropriação do texto por parte do público.

Através do uso que faz do conceito gramsciano de hegemonia, Hall dispo- nibiliza um enquadramento em que a intervenção dos mass media na socie- dade é entendida como uma série de momentos articulados, sendo que o termo “articulados” ganha a dupla significação de publicamente expressos e de mu- tuamente implicados. Nenhum desses momentos é objecto de uma sobredeter- minação coesiva, não podendo por isso garantir qual o momento seguinte com o qual irá ser articulado. Cada um destes momentos é um ponto de negociação ou de luta cultural pela definição do significado.

Neste modelo simples, reconhece-se que a ideologia enviada não é a mes- ma que a ideologia recebida. Embora possam existir descodificações prefe- renciais construídas a partir de cima, elas podem ser entendidas como propa- ganda, enfrentando, por isso, resistências e dificuldades na sua divulgação.

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Descodificação aberrante

A grande influência que conduziu o Centro de Estudos Culturais neste pro- cesso de identificação dos processos activos de recepção foi a divulgação através de um ensaio de Umberto Eco (1972) do conceito de descodifica- ção aberrante. A descodificação aberrante era uma excepção à expectativa dos produtores de cultura de que as suas audiências percebessem aquilo que procuravam significar. Eco identificou quatro situações: a) Pessoas que não conheciam a língua; b) pessoas de gerações futuras; c) pessoas de sistemas de crenças diferentes; d) pessoas de culturas diferentes. A importância do con- ceito reside no facto de que Eco sustentou a posição segundo a qual os media contemporâneos, como a televisão, trabalham com códigos em que a desco- dificação aberrante é a regra e não a norma. O artigo de Eco foi publicado na Revista do Centro de Estudos Culturais de Birmingham, Working Papers in Cultural Studies, e transformou-se numa fonte de influência fundamental para o ensaio de Hall “Encoding/Decoding”.

Esta abordagem do processo comunicativo levou à proliferação de investi- gações sobre «descodificação diferenciada» com vista, em especial, a encon- trar evidências da resistência de minorias sociais às mensagens dominantes dos meios. Escritores como Fiske (1987) e Morley (1992) tentaram demons- trar que observar textos mediáticos era um processo de negociação entre um texto, uma dada audiência e as ideologias, as crenças e os valores que esses grupos traziam ao processo de negociação. Nalguns casos, conduziu à desco- berta de influências sociais e culturais que influenciam a experiência mediática (Hartley, 2004, p. 97).

Nesse sentido, a «Escola de Birminghan» diferenciar-se-ia da Escola de Frankfurt por dois motivos essenciais: a) a necessidade de proceder à dis- tinção entre os processos de codificação e de descodificação dos media, re- conhecendo que um público activo frequentemente produz os seus próprios significados e usos para os produtos da indústria cultural; b) ausência de uma crítica da cultura de massa tendo por referência a cultura superior ou erudita e, consequentemente, a análise da cultura como um espectro diferenciado de práticas sociais simbólicas, identicamente merecedoras de análise (Kellner, 2001, p. 45).

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5.3 A presença das teorias funcionalistas na mass com-

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