• Nenhum resultado encontrado

O jornalismo como comunidade interpretativa,

No documento O admirável Mundo das Notícias (páginas 144-147)

Rejeitando especificamente o uso exclusivo do paradigma da profissionaliza- ção, Barbie Zelizer (1992; 2000) considera que as actuais análises actuais do jornalismo como profissão são uma forma demasiado restritiva para explicar a prática e a comunidade jornalística. Tal não significa que a colectividade de- signada por profissão esteja ausente de entre os jornalistas. Simplesmente, é um quadro que não fornece uma explicação suficiente para as suas dinâmicas internas.

Desde que os jornalistas americanos começaram a ser identifica- dos como grupo em ascensão social, a academia olhou para estes como fazendo parte de uma profissão ou de um colectivo pro- fissional. Ver o jornalismo como colectivo profissional pode ter constituído uma limitação à nossa compreensão da prática jorna- lística, levando-nos a considerar apenas as dimensões do jorna- lismo postas em evidência pelo enquadramento (frame) através do qual escolhemos observá-los. (Zelizer, 2000, p. 33)

Assim, a autora propõe explicitamente uma forma suplementar de conce- ber a existência de uma comunidade que não passa pelo quadro de uma profis- www.livroslabcom.ubi.pt

João Carlos Correia 137

são. Identifica os jornalistas como uma comunidade interpretativa cuja auto- ridade provém de fontes discursivas operando simultaneamente fora e dentro da esfera profissional.

Segundo esta perspectiva, os jornalistas desenvolvem uma forma especí- fica de narrativas para fortalecer as suas posições como uma comunidade in- terpretativa dotada de autoridade, consolidando assim a sua posição face a ou- tras comunidades interpretativas (Zelizer, 1992, p. 197). Zelizer enfatiza que o processo de legitimação jornalístico é primariamente retórico. A sua autori- dade funda-se não no que eles sabem mas no modo como representam o que sabem (Idem, p. 34). As análises formais do jornalismo enquanto profissão terão assim descurado a rede informal que se estabelece entre os repórteres, a sua forma distinta de sentirem enquanto colectividade posta em destaque pela sociologia da produção noticiosa, a particular importância que nessa forma ganha a interacção horizontal entre pares relativamente à interacção vertical bem como a autoridade colegial relativamente à autoridade hierárquica (Zeli- zer, 2000, p. 35). Ao contrário, a abordagem do jornalismo como comunidade interpretativa enfatiza como os jornalistas delimitam a suas fronteiras, interio- rizam as suas normas e avaliam as suas acções em interacção uns com outros. A noção de comunidades interpretativas permite analisar como certas colecti- vidades produzem interpretações compartilhadas da realidade e desenvolvem padrões comuns de autoridade, memória e comunicação que não resultam ne- cessariamente de padrões rígidos de aprendizagem e de formação mas antes da partilha de sentidos. Por detrás de toda esta concepção, está claramente uma visão culturalista das notícias em que ressoam as intuições de Park sobre as notícias como forma de conhecimento, a concepção ritualista da comunica- ção pensada por Carey (1989) e os estudos de Schudson acerca do modo como os jornalistas dependem da imagem que constroem de si próprios (1988).

Nesta abordagem, as notícias são vistas como resultado de processos de interacção social não entre jornalistas e fontes mas também entre os próprios jornalistas como membros de uma comunidade profissional. Esta interacção faz parte de um processo decisivo de formação de consenso e de consolidação de laços que influenciam o trabalho jornalístico através da partilha de hábitos mentais comuns (Traquina, 2002, p. 126; Traquina, 2004, p. 12). 18). Os jornalistas são assim “um grupo unido pelas suas interpretações partilhadas da realidade” (Zelizer citado por Traquina, 2004, p. 19).

138 O admirável Mundo das Notícias

Há, assim, uma particular insistência do jornalismo na sua particular “ma- neira de ver”, que é compatível com outras teorias como a teoria do campo de Bourdieu e a teoria dos sistemas de Luhmann.

Uma possibilidade que tem vindo a ser estudada é a de repensar o jorna- lismo como um “campo”. Bourdieu descreve a sociedade como um composto de diferentes esferas, altamente diferenciadas, cada uma delas relativamente autónoma e operando de acordo com uma lógica própria. Estes domínios in- cluiriam os domínios da arte, política, academia e jornalismo. Nesta linha, incorporam-se Rodney Benson and Eric Neveu (2005) na aplicação do con- ceito de campo aos estudos do jornalismo. Os jornalistas interiorizariam uma “série de assumpções e crenças partilhadas, desenvolvendo “estruturas cog- nitivas, perceptivas e avaliativas” (Bourdieu, 1998, cit. in Traquina, 2004, p. 19).

A constituição de uma categoria socialmente distinta de profissionais sig- nifica autonomia porque a especialização significa autoridade (Traquina, 2004, p. 16). O campo dos media transforma-se num discurso fechado so- bre si próprio cortado da referência ao campo da produção definindo a sua legitimidade como instituição produtora do único código discursivo legítimo. Também a intervenção de Niklas Luhmann no âmbito da análise dos me- dia e do jornalismo surgiu na sequência da contribuição do autor na análise de subsectores sociais (subsistemas) tão diverso como a moral, o direito, a política, a arte, a economia, a família, entre outros.

Graças à complexidade societária, as sociedades modernas são caracte- rizadas por uma multiplicidade de sistemas e de subsistemas diferenciados não de modo vertical mas horizontalmente em função das suas actividades e domínios próprios.

Pode-se descrever uma sociedade como funcionalmente diferen- ciada a partir do momento em que ela forma os seus subsistemas principais na perspectiva de problemas específicos que devem ser resolvidos no quadro de cada sistema funcional correspondente. (Luhmann, 2000: 44)

De acordo com esta teoria da diferenciação funcional, os mass media são, como todos os outros, um sistema que atende a uma função da sociedade moderna (Luhmann, 2000, p. 12).

João Carlos Correia 139

Cada sistema social tem um código próprio com que filtra, processa e constrói comunicação. Tal como o sistema legal funciona de acordo com um código binário centrado no justo ou no injusto, ou como o sistema político funciona de acordo com uma oposição entre o que diz respeito ao poder e o que não diz respeito ao poder, o sistema dos mass media é uma galáxia de comunicação semelhante aos restantes sistemas dotada de um código próprio: o que se pode considerar ou não digno de ser trabalhado como informação pelos media de massa. Esta binariedade do código impõe aos mass media uma selectividade que os obriga a ir conformando critérios que lhe permitam seleccionar entre o que é publicável e o que não é publicável. A necessidade de ter em conta estes elementos de selecção implica estandardizar e restrin- gir as possibilidades de realização dos mass media. No sistema dos mass media, existem três campos programáticos – a informação, o entretenimento, a publicidade. A busca dos critérios que permitem ao campo programático da informação seleccionar o que pode ser publicado é no fundo, a procura de critérios de noticiabilidade. Assim, a informação acaba por se constituir como um subsistema dotado de uma lógica auto-referencial e autónoma e de critérios de selecção próprios.

4.4 Os valores jornalísticos e a norma da objectivi-

No documento O admirável Mundo das Notícias (páginas 144-147)