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O agendamento e o enquadramento dos fatos políticos

CAPÍTULO I: A CENTRALIDADE DA MÍDIA NA POLÍTICA: MÚLTIPLOS

2.1 Os componentes no processo de agendamento

2.1.3 O agendamento e o enquadramento dos fatos políticos

Com a evolução dos estudos sobre o agendamento, muitos pesquisadores foram introduzindo análises sobre o enquadramento, uma vez que não bastava somente identificar se a mídia de fato influenciava ou não a opinião pública, mas era necessário saber como isso pode acontecer a partir de determinados enfoques emitidos no conteúdo informativo. Em algumas passagens anteriores no texto, introduzimos algumas observações de autores a este respeito. Cabe agora retomar com mais detalhes o enquadramento, como um desdobramento do paradigma original da agenda-setting. Esta perspectiva de análise será utilizada no capítulo seis, dedicado ao estudo de caso sobre o Jornal Nacional, durante o processo de votação da reforma da Previdência.

O enquadramento pode ser compreendido como um instrumento de análise de conteúdo do noticiário, objetivando identificar na formatação das notícias elementos que orientem a opinião pública numa determinada interpretação dos acontecimentos. Este método foi originalmente proposto por Erwing Goffman (1974) no artigo Framing Analysis5

. Para o autor (apud Aldé)6, os enquadramentos são “definições da situação construídas de acordo com

princípios de organização que governam os eventos – ao menos os eventos sociais – e nosso envolvimento subjetivo com eles”. Para Aldé (idem), a reiteração de argumentos e interpretações pela mídia, objeto de estudo nas análises de enquadramento, tem contrapartida, no campo da recepção, em mecanismos de incorporação de explicações que facilitam a elaboração e atualização das estruturas cognitivas com que as pessoas rotineiramente enquadram a política. A autora demonstra que os enquadramentos propostos pelos meios são incorporados ao discurso dos cidadãos sobre a política, tornando-se explicações que fundamentam suas opiniões, atitudes e decisões. Para isto, investiga os mecanismos psicológicos e discursivos que transformam a mídia num quadro de referência privilegiado para a obtenção de enquadramentos pelos sujeitos, capaz de fornecer as explicações mais recorrentes no discurso dos cidadãos comuns sobre a política.

Cristina Ponte (2005, p.103) credita a Bateson a originalidade do conceito de enquadramento que Goffman opera em Frame Analysis. Para a pesquisadora portuguesa outra designação deste conceito é o de esquemas básicos de interpretação (frameworks) que

5 GOFFMAN, Erwin. Frame analysis. New York: Harper and Row, 1974.

6Alessandra Aldé, no artigo “A televisão como repertório de exemplos: mecanismos de incorporação de

explicações políticas”, s/d, p.1 disponível na internet no banco de textos da Compós (www.unb.br/fac/comucacaoepolitica). Trata-se de uma versão preliminar de um capítulo da sua tese de doutorado posteriormente publicada no livro “A construção da política” (2004, p 175-199), obra que será abordada adiante.

intervêm na leitura de um evento. A autora (2005, p.138) acrescenta os estudos de Gamson e Modigliani (1998) para demonstrar que o discurso dos media pode ser apresentado como “pacotes interpretativos” capazes de atribuir significado a uma questão. “No seu núcleo central está uma idéia ou enquadramento que dê sentido a um evento relevante e, por vezes, estes enquadramentos que organizam o mundo não são dados a conhecer expressamente” (Idem, p.138). A mesma autora demonstra que estes autores distinguem entre “dispositivo de enquadramento”, tradicionalmente encontrados nas notícias (metáforas, exemplos históricos, frases-chave, descrições e ícones), que sugerem como pensar o problema; e “dispositivos de racionalização” que predominam nos textos opinativos, como o editorial (análise causal, análise de conseqüências, apelos de princípio) que justificam como resolver o problema.

Cristina Ponte (2005, p.139), também cita Gamson et al. (1992), operando em outra obra o conceito. Nesta publicação o enquadramento seria um conceito que desempenha o mesmo papel na análise dos media que o esquema na psicologia cognitiva de Van Dijk: princípios organizadores que dão coerência e significados a uma diversidade de signos.

Ainda Cristina Ponte (2005, p.140), utiliza como exemplo de enquadramento jornalístico inter-relacionado o enfoque do sociólogo Zygmunt Baumann (1998, p.80-82) sobre a cobertura recorrente da fome no mundo. Ele comenta duas formas inter-relacionadas de como o tema é representado na mídia: 1) a apresentação do sofrimento dos famintos como opção deles próprios e da sua incapacidade de reagirem à diversidade; 2) a redução do problema da pobreza e da privação apenas à questão da fome: as pessoas são mostradas na sua fome, mas não se vê nestas imagens um único instrumento de trabalho. Para o autor de “Globalização: as conseqüências humanas”, as riquezas são globais e a miséria é local, mas não há ligação causal entre elas, pelo menos no espetáculo dos alimentados e dos que alimentam.

No Brasil, Mauro Porto (2002, p.1)7 foi um dos disseminadores da teoria do

enquadramento. “Apesar de o paradigma encontrar-se ainda em estado embrionário, suas aplicações têm dinamizado o campo da comunicação política, oferecendo uma nova perspectiva para entender o papel da mídia”. O autor diz que o enfoque tradicional é insuficiente para o estudo da relação entre mídia e política, contribuindo para tornar invisíveis diversos aspectos importantes desta relação. As limitações do "paradigma da objetividade"

7Artigo originalmente consultado na internet no banco de textos da Compós

(www.unb.br/fac/comunicacaoepolitica) . Posteriormente foi publicado In: RUBIM, Antonio C. (Org.). Comunicação e política: conceitos e abordagens. Salvador/São Paulo: Editora da UFBA e Editora da UNESP, 2004, p. 73-104.

têm sido cada vez mais reconhecidas e autores têm proposto conceitos como o de enquadramento como alternativa.

O autor cita Hackett, para afirmar que um dos fatores mais importantes da "estrutura profunda" que rege a produção do noticiário são os "enquadramentos" aplicados pelos jornalistas em seus relatos (Porto, p. 120-122). Tomando como base os argumentos de Hackett, Tankard (2001, p. 96-97) Porto acredita que o conceito de enquadramento oferece um instrumento para examinar empiricamente o papel da mídia na construção da hegemonia, no sentido gramsciano de uma direção intelectual e moral na sociedade civil (Porto, 2002, p.2).

Mauro Porto (2002, p. 3), diz que além de constituir um paradigma alternativo à abordagem da objetividade, o conceito de enquadramento tem contribuído também para dinamizar perspectivas teóricas existentes, particularmente as pesquisas sobre função de agendamento da mídia ou agenda-setting. Posteriormente, o paradigma foi criticado por não considerar como as diferentes formas de apresentação dos temas pela mídia pode afetar o processo de formação de preferências políticas da audiência. O principal problema seria a exclusão de variáveis relacionadas ao conteúdo da mídia que são potencialmente importantes (Williams et al. 1991, p. 252). Porto (2002, p. 3), diz que para ultrapassar estas deficiências, os próprios proponentes da teoria da agenda-setting têm recorrido ao conceito de enquadramento para se referir a um "segundo nível de efeitos".

Ainda Porto (2002, p. 3), diz que os pesquisadores passaram então a examinar como a cobertura da mídia afeta tanto "sobre o que" o público pensa (o primeiro nível de agendamento) e também "como" o público pensa sobre estes temas (o segundo nível de enquadramento) (Williams et al. 1991; Ghanem, 1997; Semetko e Mandelli, 1997; McCombs e Ghanem, 2001; Maher, 2001). A incorporação do conceito de enquadramento pela teoria da agenda-setting é vista, todavia, como problemática por alguns autores. Tem sido argumentado, por exemplo, que a perspectiva do enquadramento se refere a novas questões que tendem a negar os princípios da agenda-setting e que em vez de fundir ambos paradigmas é preciso diferenciá-los (Kosicki, 1993; Cappella e Jamieson, 1997, p. 51; Scheufele, 2000).

O texto de avaliação dos 25 anos de pesquisa do agendamento, publicado pela dupla McCombs e Shaw, demonstra como os precursores da teoria valorizaram a inserção da perspectiva do enquadramento ao paradigma original. Segundo os pesquisadores, foi Todd Gitlin (1980) quem introduziu o conceito de enquadramento na investigação sobre comunicação de massas (in Traquina, 2000, p.131). Na seqüência (p. 132) dizem: "sejam quais forem os atributos de um assunto apresentado na agenda jornalística, as conseqüências

para o comportamento da audiência são consideráveis. A maneira como o comunicador enquadra uma questão estabelece uma agenda de atributos e pode influenciar o modo como pensamos sobre a questão em foco". Essa passagem sintetiza a importância do enquadramento como enfoque complementar ao agendamento. Tanto é que na conclusão do artigo, a dupla destaca a necessidade de incorporar essa perspectiva nas pesquisas futuras: "o recurso ao conceito de enquadramento para falar da grande variedade das agendas de atributos irá contribuir para a integração da pesquisa nesta área" (Mc Combs e Shaw, apud Traquina, 2000, p. 134).

Em outra obra Traquina (2001, p.158-159), ao analisar a evolução das teorias sobre notícias, também enfatiza a introdução do conceito de enquadramento nos estudos sobre jornalismo:

Conceber as notícias como 'estórias' aponta para a importância de compreender como são construídas. Gaye Tuchman considera útil a aplicação às notícias do conceito de enquadramento de Erving Goffman (1975, p.10-11) que define enquadramentos como 'princípios de organização que governam os acontecimentos - pelo menos os sociais - e o nosso envolvimento subjetivo neles". Já, segundo Gamson (1989, p.157) um enquadramento noticioso é "uma idéia central e organizadora para dar sentido aos acontecimentos relevantes e sugerir o que está em causa". Gitlin (1980, p.7) considera os enquadramentos midiáticos como "padrões persistentes de cognição, interpretação e apresentação, seleção, ênfase e exclusão, através dos quais os symbol-handlers organizam de forma rotineira o discurso, seja verbal ou visual". Como escreve Tuchman (1976/1993, p.259) as notícias como enquadramentos oferecem definições da realidade social. (Traquina, 2001, p.159).

Com esta passagem, Traquina (2001) sintetiza a aplicação do conceito de enquadramento nos estudos do jornalismo, que serão úteis na análise do Jornal Nacional no capítulo seis. Azevedo (2004, p.52-53), por sua vez, classifica a teoria do agenda-setting em dois níveis: o nível de efeito de agenda (proeminência do objeto) e nível de efeito (proeminência de atributos), ou seja, as formas de enquadramento (framing). Para o autor, a incorporação da teoria do enquadramento, além de mostrar a flexibilidade do modelo para interagir com outras tradições de pesquisa, implicou numa inflexão metodológica ao objeto de pesquisa. "Com a adoção da perspectiva do framing, a famosa frase de Cohen deveria ser modificada para incorporar a afirmação de que a mídia não apenas nos diz o que pensar (o primeiro nível da agenda-setting) , mas também nos diz como pensar sobre algo (o segundo nível da agenda-setting) ".

Tanto nas relações interpessoais quanto nos MCM, um dos elementos centrais na adoção de determinados enquadramentos é a adoção ou não de determinados enquadramentos pelas pessoas é a atribuição de autoridade pelo emissor, ao qual se transfere a responsabilidade de organizar cognitivamente uma grande quantidade de informações sobre um mundo complexo, auxiliando o cidadão a adquirir e demonstrar a competência mínima que lhe exige a política (Aldé, 2004, p.46). Para a autora, as explicações às quais as pessoas recorrem para articular suas atitudes políticas, têm sido tratadas por alguns autores, especialmente ligados à pesquisa das audiências dos MCM, como enquadramentos. As notícias podem atuar na difusão de valores e explicações estruturais a respeito da esfera pública, naturalizando um mundo distante da experiência direta dos indivíduos. "Enquadramentos de mídia são padrões persistentes de cognição, interpretação e apresentação, de seleção, ênfase e exclusão, através dos quais os manipulares de símbolos organizam rotineiramente o discurso, seja verbal ou visual" (p. 47 apud Gitlin, 1980, p.7). Para Aldé (2004, p.47), um dos campos privilegiados de produção de enquadramentos, uma vez aceita a realidade de mundo em que a política e a cultura atuam crescentemente na esfera da mídia, é, portanto, o dos MCM. Ela destaca a importância especialmente a TV, como quadro de referência dos mais relevantes no fornecimento de explicações para a política. Basta lembrar que a mídia, justamente pelo seu caráter de massa, divulga enquadramentos mais homogêneos que outros quadros de referência (p. 48). A TV assume, em muitos casos, o papel de repertório primário de exemplos, fornecendo explicações prontas, incorporadas pelas pessoas à compreensão que têm do mundo político (p. 48). Assim a autora (p. 131) evidencia a centralidade da mídia para a definição básica de aspectos fundamentais da democracia contemporânea relacionados ao conhecimento e a elaboração dos discursos políticos dos cidadãos comuns. Os estudos indicam a existência de enquadramentos identificáveis, homogêneos ou não, exclusivos ou não, com que os meios oferecem sua interpretação das "coisas como elas são".

Segundo Aldé (2004, p. 132), os enquadramentos propostos pelos meios de comunicação são incorporados aos discursos dos cidadãos sobre a política, tornam-se explicações com que estes estruturam opiniões, atitudes e decisões políticas. Os MCM interagem com os indivíduos no mesmo nível cognitivo que outros quadros de referência, fornecendo enquadramentos e explicações para o mundo em geral e a vida política. No entanto, as características de cada um desses emissores de comunicação incluem sua audiência e credibilidade, que lhes conferem uma autoridade pública que não tem sido lograda por outras organizações da sociedade civil (p. 137, apud Figueiredo, 2000).

Portanto, entendemos que este argumento reforça o poder político da mídia ao atuar com mais força persuasiva que outros agentes sociais, por conseguinte, tornando-a um instrumento central na disputa política. Para Aldé (2004, p.139-140), esta centralidade da mídia no universo de referência dos cidadãos da democracia contemporânea tem duas conseqüências: 1) importa a variedade e proximidade de quadros de referência pessoais alternativos à presença homogeneizadora dos MCM; 2) as possibilidades políticas de pensar uma comunicação de massa democrática apontaram a necessidade de pluralizar o consumo (e também a emissão) dos próprios meios de comunicação.

A insistência em determinados enquadramentos por parte da mídia encontra respaldo, no receptor, na tendência de incorporar reiterações e no uso rotineiro de mecanismos cognitivos consoantes com as características discursivas dos enquadramentos oferecidos pelos emissores (Aldé, 2004, p. 176). Para os cidadãos entrevistados pela pesquisadora, o noticiário é uma fonte fundamental para o repertório de exemplos recorrentes, vistos como autorizados, com que legitimam suas explicações estruturais sobre o mundo político. Os enquadramentos fornecidos pela mídia são mesmo os mais convenientes e disponíveis. A TV colabora ativamente na construção da perspectiva a partir da qual cada pessoa confere significado ao mundo, define a agenda pública e fornece explicações que fundamentam a ação (p.176). É vista como uma instituição social que fornece enquadramentos que são incorporados nas narrativas que os cidadãos comuns desenvolvem sobre o mundo da política. "Os mídia passam então a serem vistos não mais como condutores neutros de informação, mas sim como instituições que contribuem para dar significado e interpretar eventos e temas políticos" (p. 176, apud Porto, 1999). A mídia, especialmente a TV, é transformada num quadro de referência relevante. Os mecanismos cognitivos focalizados por ela, ao mesmo tempo em que são predominantes no discurso dos cidadãos, correspondem a enquadramentos e recursos narrativos típicos da linguagem televisiva (p. 177).

Aplicada à vida política, a noção de frame assume uma ambivalência intrínseca fundamental: quadros simbólicos de experiência que se apresentam simultaneamente com um caráter estruturado (passivo) e estruturante (ativo) - “a análise cultural mostra-nos que o nosso mundo político está organizado segundo um dado quadro, que os acontecimentos são pré- organizados e não nos chegam em bruto, mas nós somos também processadores ativos da realidade, codificamos de modo original a realidade que recebemos e decodificamo-la de diferentes modos: a extrema vulnerabilidade dos processos de enquadramento (framing) mostra que estes são um foco potencial de conflitos e não uma realidade imutável com a qual todos inevitavelmente estamos de acordo” (Esteves, 2003, p.133, apud Gamson, 1985, p.615).

O autor vê um potencial de contribuições que "os media tecnológicos" podem oferecer para o fortalecimento da rede de comunicação política. Mas isso "não deve servir para alimentar falsas expectativas quanto ao papel e possibilidades dos media, conhecido seu desenvolvimento na modernidade sob o signo das mais férreas leis econômicas e de um controle administrativo da comunicação” (p.133).

Porto (1999, p.9), desta vez definindo enquadramentos como elementos importantes das narrativas e do processo pelo qual fazemos sentido do mundo da política, defende que é preciso investigar a relação entre enquadramentos e pensamento político. Acrescenta que o conceito se tornou um instrumento analítico importante na pesquisa sobre o papel político dos meios de comunicação, apesar de não ter ainda levado a uma teoria consistente (p.10, apud Entman, 1994). Baseado em Gamson (1995, p.3), diz que os enquadramentos passam a ser em definidos como "idéias implícitas organizadoras" que permitem a cidadãos comuns desenvolver opiniões e discussões razoavelmente consistentes sobre assuntos públicos. Disto afirma (p.10) que há uma preocupação crescente com a interação entre os enquadramentos dos meios de comunicação e processos cognitivos individuais. Assim, conclui que "a literatura sobre os enquadramentos dos mídia fornece uma importante base para o estudo da relação entre televisão, psicologia e comportamento político" (Idem).

Essas concepções serão úteis no capítulo seis, dedicado à pesquisa sobre o enquadramento da reforma da Previdência no Jornal Nacional. Agora é necessário retomar a evolução das pesquisas sobre agendamento, desta vez enfatizando como os pesquisadores utilizaram o paradigma em nosso país.