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CAPÍTULO I: A CENTRALIDADE DA MÍDIA NA POLÍTICA: MÚLTIPLOS

2.3 Compreendendo o jornalismo: os estudos do newsmaking

2.3.1 O oficialismo nas notícias

Entende-se por oficialismo o predomínio de fontes governamentais no noticiário em relação a outros agentes sociais. Esse termo é uma generalização para refletir a questão. Porém, a nomenclatura não é consensual entre os estudiosos do assunto. Neste patamar existe uma relação bipolar. De um lado, os agentes governamentais utilizam os meios de

comunicação como mediadores da sua relação com a população. Portanto, utilizam seu staff e suas assessorias de comunicação e imprensa para alimentar o campo jornalístico com informações de interesse público e político. De outro estão os jornalistas que dependem das informações oriundas do Estado para preencherem seus espaços informativos e cumprirem a função social da imprensa. Além da facilidade de acesso, utilizam o governo como fonte fidedigna de informações, depositando nele uma credibilidade muitas vezes acima de outros agentes sociais.

Por outro lado, a repercussão governamental na mídia justifica-se pela importância das decisões políticas nesta esfera, pois interferem nos rumos do país e são assuntos de amplo interesse público. Isto demonstra o grau de importância que as pessoas depositam nestas instituições, onde a mídia assume um importante papel de mediação dos acontecimentos gerados neste campo. Portanto, trata-se de uma complexa relação que refletimos sob a ótica do oficialismo, para demonstrar como os agentes governamentais são privilegiados nas notícias diante de seu poder decisório sobre os rumos da Nação, pois dependem principalmente da mídia para expressar suas ações para a população.

Um dos autores a utilizar a expressão é Perseu Abramo (2003, p.30-31), quando diz que um dos padrões de manipulação na imprensa brasileira é o oficialismo, ou seja, presença no jornalismo de fontes “oficiais” ou “mais oficiais” de qualquer segmento da sociedade e não apenas de as autoridades de Estado ou do governo. Na ausência das fontes oficiais, Abramo diz que a autoridade é o próprio órgão de imprensa. Isto, segundo o autor acaba se tornando um autoritarismo. O autor cita como exemplo o que ele chama de "padrão global de manipulação no jornalismo", tratando-se dos tradicionais rituais de produção de notícias em rádio e TV, que funcionam em três atos: a exposição do problema; em seguida a sociedade fala (reclama); e por último a autoridade resolve. Basta observar diariamente as notícias nestes dois segmentos de mídia para verificar esta tendência.

Traquina (2001) cita o oficialismo a partir de autores da chamada teoria estruturalista do jornalismo. Esses pesquisadores acentuam o exagerado acesso sistematicamente estruturado à mídia por parte dos que detém posições institucionalizadas privilegiadas. Esses 'porta-vozes' transformam-se em 'definidores primários' das futuras coberturas e debates. "Os mídia não são freqüentemente os primary definers de acontecimentos noticiosos, mas a sua relação estrutural com o poder tem o efeito de os fazer representar não um papel crucial, mas secundário, ao reproduzir as definições daqueles que têm acesso privilegiado, como que de direito, aos mídia como 'fontes acreditadas' " (Hall et al. 1973/1993, p.230, apud Traquina, 2001, p. 92). Os mesmos autores dizem que essa relação estrutural - entre os mídia e as fontes

'poderosas' - é que começa a esclarecer a questão negligenciada do papel ideológico dos mídia (idem). Traquina (2001, p.94) diz que ao ser encarado como um espaço de reprodução da ideologia dominante, o campo jornalístico perde o seu potencial como objeto de disputa, como recurso potencial para todos os diversos agentes sociais.

Este autor (2001, p.105), enfatiza três critérios na avaliação das fontes: autoridade, produtividade e credibilidade. O primeiro critério justifica a preferência dos jornalistas por fontes oficiais ou que ocupam posições institucionais de autoridade. "Presume-se que essas fontes sejam mais credíveis, quanto mais não seja porque não podem mentir abertamente e porque são também consideradas mais persuasivas em virtude de as suas ações e opiniões serem oficiais" (Gans, 1979, p.130, apud Traquina, 2001, p. 105). Ainda o mesmo autor (p. 106), diz que é fácil compreender que as fontes oficiais correspondam melhor que outras às necessidades das redações, pois adquirem maior credibilidade com o tempo e com a rotina. Outros autores avaliam essa relação, defendendo uma 'relação simbiótica' entre as fontes oficiais e os jornalistas, pois os dois agentes se beneficiam com as trocas estabelecidas. Para os jornalistas, os benefícios são: eficácia, maior estabilidade no trabalho e uma autoridade que valida a notícia. Já, para as fontes oficiais: a publicização de seus atos; possivelmente, uma saliência social; o reforço de sua legitimidade (Bennett, Gresset e Haltom, 1985, p.1-2, apud Traquina, 2001, p. 110).

Para a teoria estrutural, o acesso ao campo jornalístico não é igual entre as fontes sociais. Disso decorre uma conclusão de que o acesso aos mídia é um poder. Traquina (2001, p.111), cita dados empíricos na predominância de fontes oficiais, chegando ao índice de 85% na cobertura de um desastre ecológico ocorrido na Califórnia em 1969. Esse estudo destacou também o privilégio das fontes ligadas ao setor econômico em detrimento de outras.

Tanto a teoria estruturalista como a construcionista defende que as notícias são aliadas às instituições legitimadas. Devido à necessidade impor ordem no espaço e no tempo, a estória do jornalismo e de seu funcionamento é descrita como sendo essencialmente da interação entre jornalistas e fontes oficiais. As fontes provêm, sobretudo, da estrutura do poder estabelecido e, por isso, as notícias tendem a apoiar o status quo (p. 113). Traquina cita o autor Bruck (1989) quando fala, entre outras coisas, que a organização do trabalho jornalístico está ligada a agendas operacionais do aparelho gestor do Estado e da economia.

Comparando as duas correntes, Traquina (2001, p. 114) diz que ambas chegam a conclusões semelhantes em relação ao papel político das notícias, demonstrando a conexão entre fontes oficiais e jornalistas fazendo das notícias uma ferramenta importante do governo

e das autoridades estabelecidas (citando Shudson, 1989) e as notícias tendem a apoiar as interpretações oficiosas dos acontecimentos controversos.

Embora ambas as teorias defendam que as fontes oficiais detêm posições estratégicas, a construcionista diz que o papel dominante das fontes oficiais não é automático, mas uma ação estratégica, uma conquista. Traquina (2001, p. 115) fala ainda que uma das formas de conceber as diferenças entre as teorias é o fato de que a estruturalista é mais voltada para as fontes, enquanto que a construcionista é mais orientada para os jornalistas (idem). Ambas dizem que as notícias são o resultado de processos de interação, não só entre jornalistas e suas fontes, mas também entre os próprios jornalistas, vistos como membros de uma comunidade profissional (p. 117). Aqui se percebe o caráter auto-referente da mídia, pois de fato fundamentam seus discursos nos demais veículos informativos. Este é outro aspecto do newsmaking que estaremos enfatizando adiante.

Rejeitando a teoria do espelho, o paradigma construtivista defende que os jornalistas não são simples observadores passivos, mas participantes ativos na construção da realidade. As notícias acontecem na conjuntura de acontecimentos e textos. Enquanto o acontecimento cria a notícia (porque as notícias são centradas no referente), a notícia também cria o acontecimento (porque é um produto elaborado que não pode deixar de refletir diversos aspectos do próprio processo de produção (Traquina, 2001, p.122).

Como as duas teorias (estruturalista e construtivista) concluem que as fontes oficiais dominam o processo de produção das notícias e que os mídia noticiosos reforçam o poder instituído, Traquina (2001, p. 123) observa que isso põe em causa um dos mitos centrais do jornalismo: o jornalismo como um 'contrapoder'. Antecipa alguns dados do capítulo seguinte do seu livro, onde um estudo da problemática da AIDS em diversos periódicos durante 10 anos constatou o papel preponderante das fontes oficiais. Foram 70% das notícias na primeira etapa da pesquisa (1982a 1984 e 1996); e entre 1985 e 1989 predominaram em 60% dos casos. Em termos globais da pesquisa, as fontes oficiais é o principal ator em 63% das notícias examinadas (p. 124). Ele reforça os dados com uma citação de Olien, Tichenor e Donohue (1989) quando afirmaram, entre outras coisas, que os mídia são reforços das estruturas burocráticas da autoridade estabelecida (p. 124). Dos mesmos autores, questiona (p. 125) o mito dos cães de guarda: "Os mídia não servem de cães de guarda de um público em geral, mas em primeiro lugar como cães de guarda de interesses poderosos e de valores dominantes (...)".

Traquina diz que o estudo do jornalismo põe em causa uma fé simples da ideologia jornalística e contesta a visão do campo jornalístico como essencialmente um contrapoder.

"Seria mais correto afirmar que o jornalismo é um 4o. poder, que periodicamente realiza o seu potencial de contrapoder, mas como tendência geral reforça o poder instituído" (Traquina, 2001, p.125-126).

Ao enfatizar esses estudos do newsmaking igualmente estamos mencionando alguns conceitos de notícia, expostos na concepção de vários autores. Portanto, seria oportuno compreender a visão de notícia na ótica do próprio governo. Nada melhor que o presidente Lula20 dar a sua versão: “Notícia de verdade é aquilo que a gente não quer falar e sai na

imprensa. Aquilo que a gente está doidinho para falar não é notícia, é publicidade”. De fato, nem tudo que Lula gostaria de ver na mídia é divulgado. Por isso os esforços do governo em influenciar e pautar o noticiário nacional.

O predomínio dos agentes governamentais no noticiário não reflete somente as características do trabalho jornalístico, onde há uma cultura valorativa aos assuntos gerados no âmbito do governo, mas reflete também as estratégias dos funcionários públicos em conquistar espaços na mídia, para através dela atingir seus objetivos.

Cook21 (1997, p.111) nos auxilia a compreender essa relação ao afirmar que a

predisposição política mais duradoura da notícia, é sua concentração nos eventos, idéias, preocupações, estratégias e políticas de funcionários poderosos de governo. Esta tendência pelo funcionalismo é que garante à mídia de notícia ser, não meramente política, mas governamental. A disponibilidade e presença da mídia, tanto dentro de suas instituições e dentro do governo como um todo, faz os funcionários do governo pensar nelas como um socorro potencial para atingir seus objetivos e apoiar a conversão da mídia de notícias em uma “instituição de governo”.

Uma das teses centrais na obra do autor é a defesa da mídia como uma instituição política, auxiliando o governo na sua trajetória política. O autor (p.127) diz que a publicidade fornecida pela mídia de notícias pode oferecer assistência fundamental aos funcionários do governo de duas formas. Primeiro, a opinião pública tende a ver aqueles assuntos discutidos nos noticiários como mais importantes e os cidadãos são mais prováveis de julgar os políticos pelas suas posturas em relação àquelas questões, se as notícias estão vinculadas ou não àquelas oficiais ou não oficiais. Segundo, mesmo que a opinião pública não seja ativada, os políticos respondem diferentemente a assuntos mais proeminentes.

20 Ao discursar no dia 10/09/2003, durante a inauguração da sala de imprensa Carlos Castello Branco no Palácio

do Planalto. Esta frase teve ampla repercussão na imprensa na época. Lula voltou a repetir isso no discurso de prestação de contas em 18/12/2003. Isto também é citado por Maurício Lara Camargos no livro de OLIVEIRA, Maria José da Costa (Org.). Comunicação pública, p.153.

Voltando a falar no uso estratégico da mídia pelos funcionários do governo, mais uma vez Cook (1997, p. 111) é incisivo: "A autoridade dos funcionários do governo, como representada nas notícias depende, em grande parte, da agilidade e boa vontade destes atores políticos em encaixar suas atividades aos valores de produção destas notícias. Se eles não o fazem correm o risco (...) de perder o controle de suas agendas e/ ou ser retratado de forma negativa".

O mesmo autor (Idem, p. 114) resume o tema principal de seu argumento na seguinte forma: que a notícia é uma co-produção de fontes (geralmente oficiais) e jornalistas, mas tais fontes não podem simplesmente clicar os dedos e fazer que a notícia saia de seu próprio jeito. A notícia não é, ao invés, somente uma adaptação de ações, eventos e declarações oficiais com valores de produção em mente. Estes valores de produção favorecem específicos tipos de notícia e informações em detrimento de outras e como conseqüência terminam dotando as notícias de uma política específica.

Para o inglês Peter Wilby22, os jornalistas raramente tomam a iniciativa de ir atrás das

notícias. "Eles permitem que grupos de pressão, companhias, sindicatos, políticos e, acima de tudo, governos definam a agenda (do que é ou não notícia). Organismos oficiais são tratados como fontes-padrão de informações".

Kucinski (1998, p. 22) por sua vez enfatiza o oficialismo, comparando o Brasil com os Estados Unidos. Diz que a dependência das fontes oficiais, por exemplo, é um dos filtros mais importantes do processo de construção do consenso nos EUA, como diz Chomsky, e também em nosso país. Adiante o autor (p.22-23) fala nas precondições para a construção do consenso, respaldadas no aspecto auto-referencial da imprensa. As condições estratégicas são: um alto grau de concentração de propriedade dos meios de comunicação, incluindo o controle cruzado de diferentes mídias por um mesmo grupo (tema que enfatizamos no capítulo 3); o sinergismo entre os vários tipos de mídia (rádio, TV e mídia impressa) formando uma ‘rede de factibilidade’, termo usado Gaye Tuchman (1983), fenômeno pelo qual os jornalistas apóiam-se uns nos outros com medo de riscos na cobertura individualizada e para adicionar legitimidade aos seus relatos; o alto grau de promiscuidade entre jornalistas e establischment, incluindo as fontes oficiais e os lobbies. As observações do autor concentraram os dois aspectos que estamos destacando no newsmaking, ou seja, o oficialismo e a auto-referência no jornalismo, que será o próximo tema da nossa reflexão.

22 Citado por Luciano Martins Costa no artigo "A imprensa como 'guardiã do poder", Observatório da Imprensa,

Uma das conseqüências do oficialismo é a restrição das fontes informativas que predominam nos noticiários. Segundo Wolton (1999[1997], p.171) é preciso alargar o círculo dos que falam na mídia, pois ele observa uma tendência em vários países onde predominam centenas de personalidades (políticas, econômicas, culturais, diplomáticas, acadêmicas...) nos média. Por isso questiona: "por que motivo vão os jornalistas buscar sempre as mesmas personalidades bem identificadas? Por que não conseguem aumentar a sua agenda?". Uma das explicações para estas indagações reside na auto-referência da mídia, pois as fontes que costumam aparecer em determinados noticiários passam a adquirir prestígio social para ocupar espaços em outros informativos.