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CAPÍTULO 2 – REPRESENTAÇÕES SOCIAIS E LINGUAGEM

2.3 Boletim de Ocorrência: um gênero do discurso

2.3.3 O Boletim de Ocorrência de violência contra a mulher

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Termo utilizado por Melo (2010), relativo a parâmetro.

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Na área do Direito, empenho equivale semanticamente à diligência, que, por sua vez, é o ato promovido por ordem judicial para que se cumpra uma exigência processual ou se averigue a respeito da questão ajuizada (LAROUSSE, 1992).

De modo geral, no Brasil, os indicadores de violência contra as mulheres retratam apenas a violência denunciada, ou seja, a que sai do privado e torna-se pública a partir do registro da ocorrência efetuado nas delegacias de polícia ou nas delegacias da mulher. Desse modo, os BOs evidenciam uma parte da violência que realmente é praticada. Comumente, os indicadores tendem a retratar as diferentes práticas de violência ocorridas com pessoas de classe de baixa renda e, sobretudo, restringem-se à violência física.

As denúncias das mulheres pobres são mais frequentes que as das mulheres abastadas, pois as mulheres com maior poder aquisitivo procuram conservar o sigilo do acontecimento para manter seu status social. Além disso, com base nos argumentos de Saffioti (1994), há de se considerar também que existem muitas mulheres que vão à delegacia em busca de uma palavra amiga e, nesses casos, também tendem a não fazer o registro da ocorrência de violência ou a não dar prosseguimento ao inquérito e a não representar judicialmente contra o seu agressor no Ministério Público.

A lavratura do BO em casos de queixa de violência familiar e doméstica é uma das providências legais e cabíveis de competência da autoridade policial.

Art. 12. Em todos os casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, feito o registro da ocorrência, deverá a autoridade policial adotar, de imediato, os seguintes procedimentos, sem prejuízo daqueles previstos no Código de Processo Penal: I – ouvir a ofendida40

, lavrar o boletim de ocorrência e tomar a representação a termo, se apresentada; [...]

VI – remeter, no prazo legal, os autos do inquérito policial ao juiz e ao Ministério Público.

§ 1° O pedido da ofendida será tomado a termo pela autoridade policial e deverá conter:

I – qualificação da ofendida e do agressor; II – nome e idade dos dependentes;

III – descrição sucinta do fato e das medidas protetivas solicitadas pela ofendida. § 2° A autoridade policial deverá anexar ao documento referido no § 1° o boletim de ocorrência e cópia de todos os documentos disponíveis em posse da ofendida (BRASIL, 2006).

Em observância aos princípios da legalidade e motivação, o relator da ocorrência deve fundamentar as ações e providências adotadas, principalmente as coercitivas, como uso da força, prisões, apreensões e multas, quando essas forem

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De acordo com Lima Filho (2007) os termos vítima e ofendida possuem o mesmo sentido para o legislativo e para o judiciário.

possíveis. No caso de registros de ocorrência de violência doméstica e familiar contra a mulher, com a criação, em 2006, da Lei 11.340 ou Lei Maria da Penha não é mais permitido cobrança de multas e de cestas básicas.

O relator ou escrivão deve expor, também, de forma lógica e objetiva, os motivos de fato e de direito que o levaram a adotar tais medidas. Por exemplo, quando o policial apreende um objeto / instrumento que tem relação com o crime, deve indicar o motivo de ter tomado essa providência. O ato administrativo não tem eficácia nem validade se não estiver alicerçado no Direito e na Lei. Quando o policial justifica suas ações, ele afasta possíveis suspeitas e resistências (MELO, 2010).

É importante salientar que o policial não pode fazer afirmações sobre as quais se exige um laudo pericial. Por exemplo, em um acidente de trânsito, ele não pode concluir qual dos condutores deu causa ao acidente. Não pode afirmar que uma substância encontrada é um entorpecente, entretanto, deve descrevê-la de maneira genérica. Não pode asseverar que um hematoma no corpo de uma vítima de agressão física no ambiente doméstico foi provocado por este ou por aquele golpe, nem mesmo assegurar quem iniciou uma discussão, se o homem ou a mulher.

A veracidade no BO deve se dar pelos fatos. Porém, a maneira como esses fatos são apresentados nesse documento não pode deixar margem para discussões. Se os argumentos forem baseados em fatos rigorosamente observáveis e que incidam em sua comprovação, poderão conduzir à certeza absoluta. A partir de premissas verdadeiras, chega-se a uma conclusão, a uma verdade incontestável. É o chamado raciocínio dedutivo (VOLPI NETO, 2004).

Um BO bem elaborado é aquele que narra, no histórico, os acontecimentos de maneira ordenada, coerente, clara, concisa, precisa, objetiva e que resguarda as ações e providências adotadas pelos policiais, explicitando os fundamentos de fato e de direito e estabelecendo uma lógica entre eles (TRISTÃO, 2007).

Em muitos estados, o BO é lavrado pela Polícia Militar e, em outros, é a Polícia Civil ou Judiciária que costuma registrar esse documento. O BO também é chamado de Registro de Ocorrência (RO).

Em muitos casos é tão difícil registrar um BO que a vítima prefere não gastar tempo, o que contribui para aumentar a cifra negra dos crimes não registrados. Muitos fatos são comunicados pelo número telefônico de emergência, o 190, para a Polícia Militar, pelo 197, para a Polícia Civil, e, pelo 181, para o Disque Denúncia. Nesses casos, nem sempre as queixas são registradas em forma de BO. O ligue

18041, da Central de Atendimento à Mulher, não disponibiliza a lavratura do BO, apenas orienta a vítima a procurar a Delegacia, especializada ou não, para efetuar o registro da ocorrência.

As mulheres que sofrem violência doméstica e familiar, mesmo com uma lei que tem o caráter específico de oferecer medidas protetivas às vítimas de violência contra a mulher, em um sentido geral, ainda apresentam resistência para prestar queixa do crime. A maioria teme o que pode acontecer após a denúncia e, em virtude disso, não registra a ocorrência.

Uma iniciativa que tem auxiliado e agilizado bastante o registro das queixas- crime é a do BO Eletrônico. Em São Paulo, o site da Delegacia de Polícia foi disponibilizado há dez anos e já permitiu em torno de três milhões de Ocorrências Policiais registradas pela internet (MELO, 2010).

Assim, de acordo com as informações disponíveis no Portal da Delegacia Online RS (www.dol.rs.gov.br)42, o BO Eletrônico reduz custo e tempo tanto da polícia, como dos cidadãos, uma vez que um policial chega despender quarenta minutos para lavrar uma ocorrência e a pessoa perde horas em órgãos policiais para ser atendida (MELO, 2010). Entretanto, os registros que podem ser efetuados nesse sistema são os de perda ou furto de documentos, de veículos, de celulares, de placas de carro e de desparecimento de pessoas.

Esse tipo de registro possui o mesmo valor que o do BO tradicional, pois se trata de um documento oficial, emitido pela Polícia Civil do Estado e assinado por uma autoridade policial. As pessoas que solicitam a lavratura de um BO Eletrônico têm o direito de receber um número como senha para acompanhar o andamento do documento pela internet.

O BO on-line não está disponível às pessoas que querem denunciar violência doméstica e familiar. Essa indisponibilidade para casos específicos como os desse tipo reflete a preocupação das autoridades para que as denúncias sejam realizadas de forma consciente. O BO on-line facilitaria a tomada de decisão de muitas mulheres para denunciarem a agressão sofrida, mas, de outro modo, facilitaria e ampliaria as denúncias seguidas de arrependimento, que são muito comuns quando se trata de violência do homem contra a mulher no contexto do lar.

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O ligue 180 já foi mencionado no Capítulo 1, inclusive com o levantamento dos atendimentos prestados por esse serviço.

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No caso de uma pessoa mentir, ao efetivar uma queixa de qualquer tipo, inclusive de violência doméstica e familiar, cometerá crime e deverá ser indiciada e responder por isso, correndo o risco de cumprir pena.

Após uma vítima registrar uma ocorrência e, com isso, denunciar um ato ilícito, a função da Polícia Civil ou Judiciária consistirá em apurar as infrações penais e a sua autoria, investigar os fatos suspeitos, receber os avisos, as notícias, formar os corpos de delitos para comprovar a existência dos atos criminosos, sequestrar os instrumentos dos crimes, coligir todos os indícios e provas que puder conseguir, rastrear os delinquentes, capturá-los nos termos da lei e entregá-los à Justiça Criminal, juntamente com a investigação feita, para que a Justiça examine e julgue o processo.

O Superior Tribunal de Justiça (STJ) permite que o registro policial de violência contra a mulher seja suficiente para abrir uma ação judicial contra o acusado. No entender da Justiça, o simples registro do BO policial pela mulher significa que ela deseja que a ação seja movida, mas muitas mulheres não dão sequência aos procedimentos e não representam judicialmente contra o agressor.

De acordo com a decisão do STF, a mulher que sofre violência doméstica e comparece à delegacia para denunciar o agressor já está manifestando o desejo de que ele seja punido. Entretanto, algumas sentenças judiciais interpretam que apenas o registro de um BO não é suficiente: a vítima deve entrar com uma representação no Ministério Público para a abertura de Ação Penal contra o agressor.

Brandão (2006), em estudo realizado em uma Delegacia da Mulher, observou que o BO serve, às vezes, como um reforço da lógica de gênero social, em que as mulheres não questionam o princípio da dominação masculina, apenas procuram contrapor-se a um homem violento recorrendo a outra figura percebida como masculina, que tem, simbolicamente, mais poder que o seu agressor. Por meio do BO, as mulheres querem solicitar um limite ao exercício da dominação masculina, através da interferência de uma ordem superior – a polícia.

Uma das mulheres entrevistadas por Brandão (2006, p. 215-216) afirma que efetivou o registro de ocorrência por acreditar que o companheiro não seria tão macho diante da polícia e que mudaria seu comportamento diante da possibilidade de responder a um inquérito policial. Isso remete a uma delicada realidade enfrentada pelas Delegacias e Cartórios da Mulher: a vítima denuncia porque quer assustar o agressor e a partir daí ela acredita que terá uma vida mais tranquila e

sofrerá menos violência, pois o homem estará temeroso de que ocorram novos registros e ele precise pagar pelo delito na forma da lei.