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CAPÍTULO 2 – REPRESENTAÇÕES SOCIAIS E LINGUAGEM

2.2 Linguagem e Interação Social

2.2.1 Os gêneros do discurso

Bakhtin desenvolveu sua teoria centrada em uma concepção sócio-histórica da linguagem, constituída a partir de uma visão totalizante da realidade e que compreende o sujeito como um conjunto de relações sócio-históricas. Para Bakhtin (1992), gêneros do discurso são “tipos relativamente estáveis de enunciados”31

, elaborado por diferentes esferas de utilização da língua, e que se define, acima de tudo, por seu propósito comunicativo, isto é, sua finalidade (p. 279). Essa definição dá origem a uma série de pesquisas sobre os fenômenos da linguagem, que, por sua vez, vêm a figurar como um dos aspectos mais discutidos nos estudos

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Essa concepção é pertinente a este estudo por servir de base para a abordagem sociointeracionista sobre os gêneros do discurso.

linguísticos, atualmente.

Os estudos sobre gêneros têm percorrido um novo rumo desde a proposta de Bakhtin (1992) em considerar todos os enunciados orais ou escritos, que atendam a um propósito comunicativo, como um gênero do discurso. Assim, não só os enunciados literários são agrupados em gêneros do discurso, como todo e qualquer enunciado que apresente uma função sócio-comunicativa dentro de uma sociedade. Os gêneros estruturam a rotina social humana, uma vez que estabelecem o funcionamento da língua nas múltiplas atividades sociais. Pertencem à comunidade; o indivíduo apenas participa de um ou outro gênero, de acordo com os seus propósitos comunicativos pertinentes em determinadas comunidades discursivas. Desse modo, as concepções teóricas, nas quais este estudo está embasado, apontam para a direção de que a análise de gênero está estreitamente atrelada à noção de linguagem como ação e interação social e, por isso, ao analisar discursos é necessário compreender os contextos nos quais eles estão inseridos, pois é a necessidade de interagir em um determinado contexto que induz as pessoas a produzirem enunciados que lhes garantam a interação social.

A perspectiva de Bakhtin (1992) revela que os gêneros do discurso não são criados a cada vez pelos falantes, pois são transmitidos sócio-historicamente. Não obstante, os falantes, por sua vez, contribuem tanto de forma dinâmica para a preservação, como também para a permanente mudança e renovação dos gêneros. Tal explicação atende aos critérios de criatividade e funcionalidade no uso dos gêneros.

O início dos estudos de Bakhtin sobre os gêneros do discurso é reconhecido pela sua afirmação de que todas as atividades humanas estão relacionadas à utilização da língua e que, portanto, não é de admirar que se tenha tanta diversidade nesse uso e uma consequente variedade de gêneros que se afiguram incalculáveis. Também, conforme Bakhtin (1992, p. 279), toda essa atividade “efetua-se em forma de enunciados (orais e escritos) concretos e únicos, que emanam dos integrantes duma ou outra esfera da atividade humana”. Os enunciados são produtos da atividade humana e estão articulados às necessidades, aos interesses e às formações sociais em que são produzidos. Por isso, sua afirmação de que há uma diversidade muito grande de gêneros que atendem a diferentes propósitos na esfera social é extremamente pertinente.

que as práticas da linguagem das crianças e, mais tarde, dos adultos, consistem em essência, na prática de distintos gêneros do discurso em uso nas formações sociais, nas quais o indivíduo se insere.

Bakhtin (1992, p. 301) compara a aquisição de gêneros do discurso à aquisição da língua materna no sentido de que as pessoas usam com segurança vários gêneros do amplo repertório de gêneros do discurso disponíveis na sociedade. As pessoas dominam a língua materna em sua composição lexical e em sua estrutura gramatical, antes mesmo de estudá-la nos bancos escolares, nos dicionários e nos livros didáticos. As pessoas adquirem a gramática mediante enunciados concretos que ouvem e reproduzem durante a comunicação verbal que se efetua com os indivíduos que as rodeiam. As formas da língua e as formas típicas de enunciados, ou os gêneros do discurso, introduzem-se, juntamente, na experiência e na consciência dos usuários. As pessoas aprendem a moldar sua fala às formas do gênero.

Se não existissem os gêneros do discurso e se não os dominássemos, se tivéssemos de criá-los pela primeira vez no processo de fala, se tivéssemos de construir cada um de nossos enunciados, a comunicação verbal seria quase impossível (BAKHTIN, 1992, p. 302).

Na abordagem não há uma clara distinção entre os conceitos de texto, discurso e enunciado. Quando se referia à unidade verbal de base, Bakhtin (1992) mencionava as propriedades relativamente estáveis dos enunciados, por isso surgiram várias sub-áreas da Linguística, como a Linguística Textual, Análise do Discurso, Análise Crítica do Discurso, Linguística da Enunciação, entre outras.

A discussão sobre texto na perspectiva de gêneros do discurso se torna cada vez mais incontestável à medida que se aprofundam as reflexões e as argumentações sobre os conceitos delineados preliminarmente por Bakhtin. Sua aplicabilidade é nítida a qualquer natureza de produto da atividade humana organizada pela linguagem que se tome como referência.

Cada esfera da atividade humana conhece seus gêneros apropriados a sua especificidade, aos quais correspondem determinados estilos. Uma dada

função (científica, técnica, ideológica, oficial, cotidiana) e dadas condições específicas para cada uma das esferas da comunicação verbal geram um dado gênero, um dado tipo de enunciado, relativamente estável do ponto de vista temático, composicional e estilístico32 (BAKHTIN, 1992, p. 284).

Os gêneros do discurso são resultados de um uso comunicativo da língua na sua realização dialógica, de forma que os indivíduos, quando se comunicam, não trocam orações nem palavras, porém trocam enunciados que se constituem com os recursos formais da língua, isto é, com a gramática e com o léxico.

A língua escrita corresponde ao conjunto dinâmico e complexo constituído pelos estilos da língua, cujo peso e correlação, dentro do sistema de língua escrita, se encontram em um estado de contínua mudança. O estilo é indissoluvelmente vinculado às unidades temáticas determinadas e, o que é particularmente importante, às unidades composicionais, como tipo de estruturação e de conclusão de um todo, tipo de relação entre o locutor e os outros parceiros da comunicação verbal.

Nessa perspectiva, considera-se também o estilo do enunciado, que pode ser linguístico ou funcional.

O estilo está indissoluvelmente ligado ao enunciado e a formas típicas de enunciados, isto é, aos gêneros do discurso. O enunciado – oral e escrito, primário e secundário, em qualquer esfera da comunicação verbal – é individual, e por isso pode refletir a individualidade de quem fala (ou escreve). Em outras palavras, possui um estilo individual. Mas, nem todos os gêneros são igualmente aptos para refletir a individualidade na língua do enunciado, ou seja, nem todos são propícios ao estilo individual. [...] As condições menos favoráveis para refletir a individualidade na língua são as oferecidas pelos gêneros do discurso que requerem uma forma padronizada, tais como a formulação do documento oficial, da ordem militar [...] (BAKHTIN, 1992, p. 282-283).

À maioria dos gêneros do discurso, o estilo individual não corrobora, exclusivamente, com as finalidades do enunciado. Assim, em gêneros discursivos do meio legal e judiciário, como documentos normativos e enunciados decorrentes de ações comunicativas judiciárias é bastante comum identificar uma linguagem peculiar a diferentes exemplares do mesmo gênero, a individualidade – no que se refere à personalidade - do enunciador pode se manter oculta no estilo linguístico e

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funcional de um gênero específico de uma determinada esfera de atividade social. Entretanto, no que concerne ao estilo linguístico e funcional, cada gênero possui características próprias, distintas das ações comunicativas realizadas por outros gêneros, que lhe garantem a funcionalidade no seu contexto de uso.

O estilo entra como elemento na unidade de gênero de um enunciado, no entanto, afirma Bakhtin (1992), isso não significa dizer que o estilo linguístico não pode ser objeto de estudo específico, especializado. Uma estilística da língua concebida como uma descrição autônoma é possível e necessária. Porém, para ser correto e produtivo, esse estudo deve partir do fato de que os estilos da língua pertencem por natureza ao gênero e, portanto, deve basear-se no estudo prévio dos gêneros e sua diversidade. As mudanças históricas dos estilos da língua são indissociáveis das mudanças que se efetuam nos gêneros do discurso.

A ampliação da língua escrita incorpora diversas camadas da língua popular e ocasiona, em todos os gêneros, a aplicação de um novo procedimento na organização e na conclusão do todo verbal e uma modificação do lugar que será reservado ao ouvinte, o que leva a uma maior ou menor reestruturação dos gêneros do discurso, esclarece Bakhtin (1992).

Na gênese de sua reflexão acerca das produções de linguagem a partir da configuração dos gêneros discursivos, Bakhtin (1992) advertiu para a riqueza e variedade dos gêneros e, consequentemente, para a problemática sobre como sistematizá-los ou defini-los de forma estanque. Isso é uma decorrência do fato de a variedade virtual da atividade humana ser inesgotável.

A heterogeneidade dos gêneros do discurso, tanto orais quanto escritos, inclui desde a curta réplica do diálogo cotidiano, com a sua diversidade apresentada conforme os temas, as situações e a composição dos seus protagonistas, o relato familiar, as ordens, os documentos oficiais, normalmente padronizados, as formas de exposição científica, e os modelos literários.

Nessa concepção, os gêneros são os responsáveis pela comunicação humana, pois as pessoas não se comunicam por meio de orações ou palavras, mas sim por meio de gêneros. Desse modo, os gêneros são os responsáveis pela interação do homem em sociedade, através de suas formações sociodiscursivas.