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O conceito de “coindexação” no modelo de RFPs em interfaces

Quadro teórico de concepção de genolexia: proposta do modelo de RFPs em interfaces

1. RFPs e operadores afixais

2.2 O conceito de “coindexação” no modelo de RFPs em interfaces

Ao propormos a coindexação entre traços semânticos e não entre argumentos, estamos em simultâneo a resolver a questão da hierarquização argumental. Esta seria aparentemente violada quando o mesmo afixo disponibiliza produtos cujas significações partiriam de argumentos em posições hierárquicas distintas.

A coindexação semântica baseia-se no grau de conciliação e aproximação semântica entre os traços do afixo e os traços da base ou ainda de fonte extra chamados à intervenção genolexical. Dado que o conceito de “coindexação” terá aplicação nos capítulos V, VI e VII, nesta secção, dedicada à ancoragem teórica do conceito, limitamo-nos a exemplificá- lo.

Como veremos nos capítulos V, § 2.1 e VI, § 1.4, o afixo -ção é caracterizado pelo traço de [efectuação]. Esse traço possui maior conciliabilidade com traços de fonte eventiva do que com traços de fonte léxico-conceptual.52 Como tal, a significação com maior representatividade nos produtos deste afixo é a de ‘evento’. Dentro dos traços de fonte eventiva, a análise dos produtos revela que é o traço [télico] que sofre coindexação com o traço [efectuação] do sufixo -ção. Dessa coindexação advém uma significação de “efectuação do evento” localizável na fiada semântica da estrutura de moldagem eventiva (cf. § 7 do presente capítulo).

Já um afixo com o traço [que tem a função de], como é o sufixo -dor, apresenta maior conciliabilidade com o traço [causa], pelo que a significação maioral nos seus produtos é de “causa”, com as várias extensões que esta possibilita (cf. § 1.1 do cap. VII). A presença de outras significações que não a de “agente” nos produtos de -dor permite compreender que a coindexação do traço do sufixo não se faz em relação a um argumento da estrutura argumental do verbo, mas a um traço ou conglomeração de traços semânticos da base conciliáveis com o semantismo do traço do sufixo.

Dois últimos exemplos, desta vez com os afixos -ão e -douro, ilustrarão a intervenção semântica da coindexação. O afixo -ão apresenta um traço semântico que tanto é conciliável com fonte eventiva, como com fonte léxico-conceptual. Trata-se do traço

52 Os conceitos de “fonte eventiva”, “fonte léxico-conceptual”, bem como de “fonte extra” são explicitados no

[intenso], que tanto se coaduna com a enformação de um evento, quanto de um indivíduo. Contudo, não se encontrou nenhum produto “locativo” a partir deste sufixo, devido à não- conciliabilidade semântica entre [locativo] e [intenso]. Já no que diz respeito ao sufixo -

douro, cujo traço semântico será definido como [propício a/próprio para], sobressai a

ocorrência de produtos com semantismos “locativos”, devido a ser o traço do sufixo conciliável com o traço [locativo].53

É necessário neste momento fazer compreender que o facto de responsabilizarmos os componentes das estruturas semânticas pela coindexação e de desviarmos dessa tarefa os componentes argumentais não equivale a negar estrutura argumental aos produtos que a possuem. Todavia, é intrigante que alguns produtos tenham estrutura argumental e outros não, mesmo partilhando os mesmos semantismos.

Não nos referimos à comparação das polissemias do mesmo produto, que apresenta um semantismo com estrutura argumental e outro sem estrutura argumental (e.g.

administração “evento” e administração “locativo”). Referimo-nos sim à comparação entre

produtos de afixos distintos, que as visões process-oriented consideram como homónimos funcionais. Por exemplo, os produtos de “agente” do afixo -dor podem ostentar estrutura argumental, enquanto os produtos de “agente” do sufixo -ão não apresentam essa capacidade. Mesmo nos produtos de evento se verifica essa discrepância. Os produtos em -

ção ostentam capacidade argumental, enquanto nos produtos em -ão, mais uma vez, não se

observa essa estrutura.

Tais discrepâncias de funcionamento entre afixos actuantes na mesma RFP e, logo, produtores do mesmo tipo genérico de semantismo apontam para duas constatações com efeitos teóricos:

a) a operação de promoção dos semantismos nos produtos não está a cargo da intervenção de componentes argumentais, mas de componentes semânticos;

b) os afixos não são meros instrumentos de mutação fonológica das RFPs, mas possuem identidade própria. Se fossem meros instrumentos de mutação fonológica, todos os produtos de todos os afixos actuantes na mesma RFP possuiriam as mesmas significações e, em simultâneo, a mesma capacidade ou incapacidade argumental, o que não se verifica.

53 À intervenção dos diferentes traços das várias fontes, bem como à actuação do mecanismo de coindexação

na produção dos vários semantismos finais serão dedicados os cap. V, VI e VII, pelo que neste momento os exemplos procuram somente ilustrar um conceito teórico e não explicar o seu funcionamento na abordagem dos dados empíricos.

Parte do funcionamento genolexical fica dilucidado ao desprovermos os componentes argumentais de responsabilidade de geração semântica dos produtos. Contudo, esta solução abre outras questões concernentes aos produtos e à estrutura argumental. Por que motivo uns afixos promovem a estrutura argumental nos seus produtos e outros não? Se produtos da mesma RFP unidos sob a mesma significação genérica apresentam discrepância quanto à capacidade argumental, parece situar-se em fase posterior a montagem da estrutura argumental no produto. Pelo menos é lícito afirmarmos que construção do semantismo e montagem da estrutura argumental são dois processos distintos que não se encontram em fase. Dizer que não estão em fase não equivale, necessariamente, a responsabilizar outros componentes pela agregação da capacidade argumental. Os mesmos componentes podem ser responsabilizados por montagens em módulos diferentes. Assim, por um lado, responsabilizamos o traço semântico dos afixos pela obtenção do semantismo do produto, em conciliação com os traços da base. Mas o mesmo traço poderá ser um dos elementos chamados a intervir na activação da estrutura argumental.

A desfasagem entre as duas operações não é impedimento para que ambas partam da mesma fonte, visto que se trata de estruturas diferentes. Quer isto dizer que o facto de accionarmos o afixo para provimento semântico do semantismo final do produto não implica que toda e qualquer acção do afixo fique completada e por isso fechada após a operação semântica. Dado que a capacidade argumental é independente da carga semântica, a fiada argumental pode ser chamada a intervir em momento não-coincidente com a intervenção semântica. É aqui que reside a versatilidade de um modelo que preveja a estruturação em diferentes fiadas dos diferentes componentes linguísticos, bem como a activação de interfaces entre aquelas.

Em suma, defendemos que o processo de coindexação é apenas semântico. A proximidade semântica entre produtos da mesma RFP, por exemplo de agentivos, deve-se a um mecanismo em comum que possibilita variações semânticas nos produtos. O mecanismo em acção não opera ao nível da coindexação entre argumentos. Consequentemente, esses semantismos variáveis dos produtos não correspondem a argumentos da base verbal. São antes explicáveis pela conciliabilidade entre traços semânticos das diferentes fontes.

a) na não coincidência entre semantismos e argumentos disponibilizados pelas bases (e.g. semantismos de “instrumento”, “locativo” emergem em produtos cujas bases não dispõem de argumentos correspondentes);

b) na disformidade dos semantismos face à hierarquia argumental;

c) no facto de nem todos os produtos deverbais da mesma RFP possuírem capacidade argumental.

O factor enunciado em c) deverá ser tido separadamente de a) e b) na medida em que retrata a capacidade de o produto exercer estrutura argumental e não a intervenção de um argumento da base na obtenção do semantismo do produto. Contudo, tal como a) e b), c) faz compreender que a estrutura argumental há-de ter implicação numa fase distinta daquela que é geradora directa do semantismo em si mesmo do produto. Retomaremos a questão da estrutura argumental no § 4 deste capítulo.

Estabelecer que a coindexação é operada entre traços semânticos não é implicar que as formas lexicais possam coindexar livremente. Se a coindexação entre argumentos parecia prover o mecanismo genolexical de um carácter regulado, a coindexação entre traços semânticos não faz perder esse carácter. Assim, a coindexação entre traços semânticos não equivale a abrir lugar para a sobregeração de formas através da multiplicação infinita de coindexações entre traços. O carácter pouco sistemático de que se provêem muitas vezes as descrições semânticas é devido, mais uma vez, à dificuldade que o linguista tem em aceder explicitamente a uma estrutura implícita e não estruturada exclusivamente de modo linguístico. Não é devido, pois, a uma assistematicidade inerente da estrutura.

A coindexação semântica não é equivalente a situarmos uma infinitude de traços na mente-f que livremente coindexam uns com os outros de modo desregulado. A produtividade das coindexações está dependente de um conjunto de constrangimentos localizáveis nas várias estruturas. É necessário não esquecer que um item lexical é uma interface (Jackendoff 2002) e que para a construção de um produto lexical concorrem constrangimentos localizados entre as várias estruturas em interface. Assim, apesar de a coindexação ser semântica, este não é o único componente a intervir na construção de um produto.

Para além disso, a coindexação, decorrendo da conciliabilidade entre traços, pode dar-se sob a forma de simetria perfeita ou, mais comummente, de simetria imperfeita.

Tratar-se-á de simetria perfeita se o traço do afixo coincidir em absoluto com o traço da fonte da base. Tratar-se-á de simetria imperfeita se apenas um componente do traço do afixo coindexar com um componente do traço disponibilizado pela base.

Para a simetria imperfeita concorre o facto de os traços semânticos não serem primitivos, mas arquitecturas decomponíveis. Essa decomponibilidade acarreta a versatilidade do afixo a dois níveis:

i) ao nível da geração de diferentes semantismos na mesma RFP, de acordo com a consonância respeitante aos semantismos peculiares de cada base verbal;

ii) ao nível da operação em interface em diferentes RFPs, através da agregação a bases que ostentam categorias sintácticas distintas e formatação semântica genérica também distinta.

A actuação em interface do sufixo faz que a variedade das bases a que se agrega possa convergir num ponto semântico homogéneo situável na identidade semântica do traço do sufixo. É em consonância com a variação semântica das bases que os produtos deverbais construídos a partir do mesmo afixo apresentam variação semântica.

3. Projecção

O conceito de coindexação não é suficiente, no entanto, para a compreensão cabal da construção de todos os semantismos mostrados pelos produtos em análise. A observação destes revela que existem semantismos que não se enquadram na generalidade semântica dos produtos de um determinado afixo. Quer isto dizer que esses semantismos não são entendíveis à luz da coindexação do traço semântico do afixo com traços das restantes fontes.

Encontram-se nesta situação semantismos de evento como chiadeira, choradeira,

fungadeira, ganideira, gritadeira, entre outros e entre outras afixações. No caso do afixo - deira, determinaremos que o seu traço é [que tem a funcionalidade de]. Ora, as

significações de evento emergentes dos lexemas elencados não resultam da coindexação do traço [que tem a funcionalidade de]. Contudo, é necessário ter em consideração que as significações de evento aí dispostas armazenam uma carga semântica de “evento frequente/intenso/contínuo”. Essa carga semântica não é explicável pela significação de “evento” em si mesma. É que os semantismos de evento primários, como os que ocorrem

de afixos prototipicamente de evento como -ção e -mento, etc., não apresentam o mesmo tipo de formatação do evento.

De onde advém a formatação do evento como “frequente/intenso/contínuo” se não pode vir do semantismo genérico de “evento”? Não pode ser proveniente da base, já que

fungar, gritar, ganir, etc. não integram obrigatoriamente essas especificações para os seus

eventos. Todavia, também não poderá provir do traço do afixo unitariamente desenhado, ou seja, enquanto especificado como [que tem a funcionalidade de].

Uma abordagem mais fina dos componentes que constroem os traços dos afixos permite uma explicação regular destes semantismos.

É pois necessário compreender que o facto de os traços não serem monoblocos possibilita que a construção dos semantismos dos produtos lexicais não parta somente do traço unitariamente indicado para cada afixo. É que os traços são arquitecturas de outros traços, eles mesmos arquitecturas de outros traços, até ao infinito. Isto significa que a construção dos semantismos pode em alguns casos decorrer não directamente do traço do sufixo, mas de constituintes desse traço que determinam este de forma mais marcada.

No caso do afixo -deira, a análise dos semantismos de indivíduo (cf. § 1.4 do cap. VII) permite compreender que o traço [que tem a funcionalidade de] é constituído pelo componente semântico de [frequente].54 Essa determinação é conseguida comparativamente com outros produtos de outros afixos, como explicitado nos capítulos V, VI e VII, para os quais remetemos.

Ora, na análise dos semantismos de evento de chiadeira, choradeira, fungadeira,

ganideira, gritadeira, etc. questionávamos qual seria o componente genolexical

responsável pela formatação de “frequente” desses eventos. A resposta aponta para o traço do sufixo, não enquanto monobloco, mas enquanto estrutura decomposicional, já que é este que contém o componente semântico [frequente]. Dado que o componente [frequente] resulta da decomponibilidade do traço [que tem a funcionalidade de], o traço [frequente] não se encontra disponível, no sufixo -deira, para coindexação, mas antes para projecção. A projecção opera, assim, com um constituinte semântico do traço directamente disponível para coindexação ([que tem a funcionalidade de]). Trata-se de um componente semanticamente visível directamente nos semantismos em que intervém sem

54 De modo mais fino caracterizamos alguns componentes dos vários traços afixais, bem como a sua

interacção, nas secções dedicadas a cada afixo especificamente, nos caps. VII e VIII. Nesta secção procuramos apenas explicitar conceitos teóricos. Com o uso de produtos lexicais, neste capítulo, pretendemos apenas ilustrar esses conceitos e não explicar esses produtos cabalmente.

enquadramento no traço maior [que tem a funcionalidade de] - os semantismos de ‘evento’. Nos semantismos em que intervém como enquadrado nesse traço maior - os semantismos de ‘indivíduo’ - o componente é acessível indirectamente. Concebemos que esse componente é alvo de uma projecção a partir da arquitectura do traço que o contém para a agregação a um traço da base verbal com que seja conciliável directamente, neste caso de fonte eventiva.

Em resumo, designamos por “projecção” um mecanismo semântico de geração de semantismos nos produtos lexicais que parte da decomposicionalidade da arquitectura do traço do afixo e, tomando um componente inerente ao traço, o projecta para fora dessa arquitectura que o engloba e o agrega a traço(s) de fonte verbal.

A determinação do traço projectado não é aleatória. Está antes dependente de um trabalho rigoroso de análise de decomposição do traço do afixo, através de métodos comparativos dos semantismos proporcionados pelo mesmo afixo ao longo dos seus produtos, assim como dos semantismos mostrados em produtos de outros afixos. Só assim é possível determinar com um grau satisfatório de rigor e exactidão o traço de cada afixo e os componentes desse traço, nomeadamente aqueles que contribuem em si mesmos, por projecção, para a construção de outros semantismos que não aqueles que advêm da coindexação do traço do afixo como bloco.

Em última instância, o fenómeno de projecção comprova

a) a decomposicionalidade dos traços em constituintes semanticamente autónomos; b) a não-linearidade dos mecanismos semânticos envolvidos na genolexia;

c) a versatilidade gerativa da activação de zonas de interface operada semanticamente a partir de subcomponentes não acessíveis de modo directo.