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Síntese da abordagem acerca da estrutura argumental no modelo de interfaces Defendemos que o mecanismo de formação dos deverbais não é argumental Ou

Quadro teórico de concepção de genolexia: proposta do modelo de RFPs em interfaces

4. A estrutura argumental: delimitação do seu papel na construção do deverbal

4.3 Síntese da abordagem acerca da estrutura argumental no modelo de interfaces Defendemos que o mecanismo de formação dos deverbais não é argumental Ou

seja, não se trata de haver projecção/incorporação/herança de um argumento do verbo, que seria inerente ao sufixo, no caso dos deverbais de indivíduo, ou de toda a estrutura argumental, no caso dos deverbais de evento.

O processo de construção dos deverbais toma como matéria-prima dimensões semânticas que designamos por “traços” e que se agregam uns aos outros através do princípio da coindexação e/ou projecção. Neste nível, podem intervir traços provenientes da estrutura léxico-conceptual do verbo base, mas não formatados como argumentos, dado não estar em jogo a fiada da estrutura argumental da base.

De acordo com a congregação de traços obtida no semantismo construído, activar- se-á a interface do nível semântico do produto com o nível da estrutura argumental também do produto.

O grau da adequabilidade entre traços determina a tendência para haver posterior ligação à estrutura argumental. Se ocorrer adequabilidade congregacional em direcção a um argumento, o argumento vai corresponder àquele que obedecer a maior número de condicionantes de tipo semântico. Por exemplo, o semantismo locativo de corredor não apresenta ligação com a estrutura argumental, visto a congregação de traços deste semantismo não obedecer ao princípio máximo de condicionantes para “agente”.83

Por fim, se a estrutura argumental num substantivo fosse de origem derivacional directa, não haveria estrutura argumental em substantivos não-construídos, como

concepção. Ainda que se possa contra-argumentar apelando ao carácter deverbal histórico

ou à relação paradigmática entre conceber/concepção, a segunda relação não é derivacional e a primeira não é mentalmente direccional. Defesa, ofensa mostram que a estrutura argumental não é activada directamente por herança derivacional entre verbo e substantivo. Tem de haver estruturas semânticas dentro do substantivo que possibilitem estrutura argumental.

Exemplos como proximidade, amizade, vergonha, sendo o segundo e o terceiro não-construídos, indiciam o mesmo. Exemplos com o lexema afinidade, não-deverbal, mostram que a estrutura argumental não é herdada da categoria verbo:

«A afinidade das proteínas pelos iões»

dequim.ist.utl.pt/bbio/67/pdf/Cromatografia%20de%20Afinidade%20com%20metal%20imo bilizado.pdf

«Sempre tive certa afinidade com o aeroporto»

devaneiosconstantes.blogs.sapo.pt/arquivo/793914.html

«os antipsicóticos típicos são os que têm elevada afinidade para os receptores D2 e produzem frequentemente efeitos extrapiramidais graves»

www.infarmed.pt/prontuario/ navegavalores.php?id=56&flag=0

83 A activação da estrutura argumental deverá estar dependente de circunstâncias e mecanismos relacionados

com a hierarquia temática (cf. e.g. Belletti & Rizzi 1988; Fillmore 1968; Jackendoff 1990, entre outros estudos sobre a hierarquia temática). Contudo, encontra-se fora do escopo deste trabalho o estudo desses fenómenos.

«tirar partido da afinidade dessas moléculas para os diversos estados do canal

... na sua afinidade para o estado inactivado da molécula do canal.»

www.fcm.unl.pt/departamentos/ fisiologia/actividadecientifica.htm

«A afinidade para o octanol é uma indicação da afinidade do composto para as ... enquanto que a afinidade para a água serve de modelo para a afinidade da ...» www.ff.ul.pt/paginas/constant/ tl/tecnicas/kdaspirina.htm

Inclusivamente substantivos básicos (ânsia/orgulho/alergia) e adjectivos básicos (ávido/apto/fácil/próximo) ostentam estrutura argumental. Estes exemplos demonstram que esta estrutura não é exclusiva de verbos, nem existe noutras categorias por herança deverbal (ou deadjectival, se quiséssemos equacionar adjectivo com o traço [+V] e assim simetrizar uma suposta, mas não atestada, inerência de estrutura argumental às categorias [+ V]). 5. O mecanismo de redobro da estrutura léxico-conceptual

A secção anterior desenha uma solução teórica para os problemas revelados empiricamente e suscitados por abordagens que condicionam a geração de deverbais de indivíduo à formatação argumental. Esses problemas são ilustrados por:

a) semantismos em produtos com determinado afixo que fogem ao rótulo temático de um argumento verbal prototípico desses produtos (o caso dos produtos em -dor que não enformam um agente/ causa, mas um paciente, como sofredor, carecedor);

b) produtos não deverbais gerados através de afixos comummente deverbalizadores, como o sufixo do inglês -er em formas como Londoner, que, apesar de não deverbais, mantêm semantismo de agentividade;

c) semantismos em produtos com determinado afixo que, para além de não se coadunarem com o rótulo temático de um argumento verbal prototípico desses produtos, não coincidem com nenhum papel-temático correspondente a um argumento do verbo (e.g.

bramadeiro que designa ‘local’);

d) a assimetria de funcionamento entre a capacidade argumental de produtos como

vindimador, colonizador, devorador e a incapacidade argumental de produtos como vindimadeiro, aguçadoura, face à simetria semântica de ‘agente’ que todos partilham;84

84 Cf. *O vindimadeiro de touriga nacional vs. O Vindimador de touriga nacional; *Uma aguçadoura de

e) a assimetria de funcionamento entre a in-/capacidade argumental de produtos com o mesmo afixo como arrumador, colonizador, vindimador “agente” e aparador,

toucador, corredor ‘local’.

Todas estas situações em que não existe estrutura argumental demonstram que o produto que foge à caracterização argumental bem como à capacidade de exercer essa estrutura não é um caso marginal no âmbito da formação dos deverbais. Pelo contrário, estes são casos comuns, o que corrobora o estipulado na secção anterior em relação à não intervenção directa da estrutura argumental na construção semântica dos produtos.

Os casos sistematizados de a) a e) constituem situações em que um componente da estrutura argumental falta no produto, face à estipulação de um argumento prototípico de cada afixação. Os casos que observaremos nesta secção jogam, pelo contrário, com a existência de um semantismo do produto coincidente com uma posição argumental que, no entanto, está ausente da base verbal.

Em ambos os casos estamos perante a não coincidência do semantismo do produto com um argumento do verbo ou com o argumento que prototipicamente emerge nesses produtos.

Esta não coincidência pode desenvolver-se de acordo com dois mecanismos. Um deles prevê a simples coindexação do traço do sufixo com um traço colhido de fonte extra,85 sempre que esse traço não for inserível na estrutura léxico-conceptual em lugar hierarquicamente superior.86 Trata-se do mecanismo que está na base das situações c) acima descritas.87

A segunda situação prevê um mecanismo posterior a este primeiro, que designaremos por “redobro da estrutura léxico-conceptual da base” e que definiremos nesta secção. Este mecanismo insere o traço colhido de fonte extra em lugar hierarquicamente superior da estrutura léxico-conceptual da base. Este mecanismo que joga com a estrutura

aguçadoura é de lápis, em que de lápis não corresponde a argumento, mas a modificador. Cf. Grimshaw

(1990: 91-97) acerca da oposição entre argumentos e modificadores dos substantivos.

85 A noção de “fonte extra”, explicitada no cap. V, § 2.2., refere-se a um domínio semântico exterior aos

domínios semânticos do afixo e da base.

86 Não focaremos as várias propostas existentes acerca da hierarquia temática. Vejam-se Levin & Rappaport

Hovav (2005: 154-185) e Newmeyer (2002) para uma visão crítica acerca das mesmas. Em todo o caso, em todas elas é unânime a colocação do Agente/Actor em posição superior (cf. por exemplo Fillmore 1968; Belletti & Rizzi 1988; Grimshaw 1990; Jackendoff 1990).

87 O deverbal bramadeiro designa ‘local’. Ora, a base verbal bramar não apresenta nenhum argumento que

corresponda a um papel-temático Locativo. No nosso modelo, prevemos que o traço ‘local’ que enforma a significação final de bramadeiro seja proveniente de um domínio semântico exterior ao da base e ao do afixo em jogo. Dado que o ‘local’ não representa um papel-temático que domine a hierarquia temática, não dá origem ao mecanismo de redobro da estrutura léxico-conceptual sob análise.

léxico-conceptual da base é posterior à coindexação entre traços semânticos que já descrevemos (§ 2 deste cap.).

Esta segunda situação, que já foi sendo anunciada no § anterior, é descrita como aquela em que um argumento parece ser excedente no produto em relação aos argumentos da estrutura argumental da base verbal. Ilustramos esta situação com o produto deflagrador. Este é um caso muito interessante e de especial relevo para o nosso modelo teórico, na medida em que, aparentemente, anula o nosso modelo, mas, afinal, corrobora-o.

A base de deflagrador é um verbo inacusativo, ou seja, sem argumento externo. O argumento interno do verbo coincide com um Proto-Paciente, se quisermos utilizar o esquema de Dowty (1991), que sofre o evento descrito pelo verbo sem que haja intervenção de uma causa externa (Levin & Rappaport Hovav 1995). A ausência de causa externa reflecte-se na não transitivização do verbo, que apresenta apenas versão inacusativa. O sujeito de deflagrar corresponde, assim, em termos semânticos a uma causa interna cujas propriedades intrínsecas são o motivo do desencadear do evento (Levin & Rappaport Hovav 1995).

O interesse do produto deflagrador reside no facto de ostentar a significação de ‘causa’, coincidente com a causa externa de um evento formatado transitivamente. Para além disso, o produto apresenta capacidade argumental, como verificável em

«Aguardamos que a Fundação Prefeito Faria Lima- CEPAM, cumpra o papel de

deflagrador desse processo no âmbito municipal.»

www.fd.unl.pt/web/Anexos/Downloads/216.pdf.

Ora, este produto vem reintroduzir a questão da estrutura argumental e, aparentemente, poderá favorecer a posição que defende que o afixo deverbalizador carrega uma função argumental. Tal argumento decorreria do seguinte raciocínio:

a) o verbo base deflagrar não possui argumento externo;

b) o deverbal deflagrador possui internamente argumento externo; logo,

c) é o sufixo -dor que carrega a função de argumento externo.

Este raciocínio, contudo, revela-se omisso em relação a todas as situações de omissão argumental focadas acima. Se o afixo -dor carregasse função argumental de argumento externo, não haveria produtos com este sufixo a partir de verbos inacusativos e

que não desenvolveram significação de causa/agente e, em suma, todos os produtos com este afixo teriam essa função argumental.

Assim, o caso de deflagrador corrobora, em vez de contradizer, que a função argumental é posterior à formação semântica do produto e não é carregada intrinsecamente pelo afixo interveniente. No fundo, o afixo transporta carga semântica e não carga argumental.

Como se explicam, então, casos como o de deflagrador?

O nosso modelo recorre a um mecanismo que designamos por ‘redobro da estrutura léxico-conceptual’. Este mecanismo é concebido como uma operação mental que opera ao nível da estrutura léxico-conceptual proveniente do verbo base e não ao nível da estrutura argumental deste. Vários argumentos favorecem a localização do mecanismo ao nível da primeira e não da segunda estruturas.

Em primeiro lugar, a localização do redobro ao nível da estrutura argumental da base verbal acarretaria que o próprio verbo apresentasse possibilidade de alternância transitiva, o que não se verifica. Essa alternância transitiva teria efeitos visíveis ao nível da sintaxe, na medida em que a estrutura argumental é uma interface com a sintaxe. Ora, na verdade, essa transitivização do verbo não se realiza.

Em segundo lugar, o redobro de que falamos nem sempre acarreta consequente capacidade argumental, como demonstrável pelo produto chovedor ‘qualquer coisa que faz chover’. Repare-se que o problema não se prende com o carácter supletivo do argumento externo de chover, mas com a estruturação de uma ‘causa externa’ não conciliável com esse argumento externo supletivo.88 O produto chovedor desenvolve uma significação de ‘causa’ não coincidente com o argumento externo da base, mas não desenvolve consequente capacidade argumental. Essa capacidade argumental era esperável, na medida em que uma causa externa ocorre sempre em eventos transitivos com relação com um objecto, enquanto um evento intransitivo, seja inacusativo ou inergativo, apresenta causa interna no lugar de sujeito (Levin & Rappaport Hovav 1995). Ou seja, se são possíveis enunciados como

deflagrador de incêndios, deflagrador de paixões, não são gramaticais *chovedor de chuva ácida, *chovedor de aguaceiros.

Em terceiro lugar, se é ao nível da estrutura semântica que agem os mecanismos genolexicais de agregação afixal, não poderíamos localizar em níveis posteriores a sua

88 O argumento externo supletivo da base verbal seria preenchido por uma causa interna, enquanto o

ocorrência. Estipulamos, assim, que em termos semânticos ocorre, apenas para efeitos genolexicais específicos de geração de deflagrador (entre outros exemplos) e não para todos os produtos em -dor, um redobro da estrutura léxico-conceptual disponibilizada pela base verbal, operada mentalmente. Nesse redobro, verifica-se a estruturação semântica de uma causa externa responsável pelo desencadear do evento. Na análise empírica dos dados, essa ‘causa’ será rotulada de ‘fonte extra’, por provir de um domínio semântico que não pertence nem ao afixo, nem à base, e como ‘não-argumental’. Oberve-se que o rótulo ‘não- argumental’ não significa que os restantes sejam argumentais, no sentido de advirem da estrutura argumental, mas apenas que são coincidentes com componentes léxico- conceptuais que serão ligados a argumentos na estrutura do verbo base. Ou seja, esses traços do produto apresentam correspondência com componentes que têm realização argumental no verbo, mas não provêm desse nível argumental.

O facto de defendermos que o mecanismo de redobro focado opera em produtos específicos e não nos conjuntos de produtos do mesmo afixo deve-se à constatação de que muitos produtos em -dor mantêm correspondência com a inacusatividade da base verbal e não se apresentam como produtos do desenvolvimento do redobro da estrutura léxico- conceptual (e.g. migrador. Cf. § 1.1 do cap. VII).

Para além de explicar a ocorrência de dados como deflagrador ou chovedor, o mecanismo de redobro da estrutura léxico-conceptual, acarreta consequências de carácter teórico: prova que a coindexação se dá entre fiadas semânticas e que o desenvolvimento de estrutura argumental é posterior.

Não existe contradição na concepção do mecanismo de redobro da estrutura léxico- conceptual da base, em casos como deflagrador, face ao postulado de que a matéria-prima da genolexia é semântica e não argumental. Tal contradição apenas se verificaria se tivéssemos concebido o mecanismo de redobro ao nível da estrutura argumental. Localizando o redobro na estrutura léxico-conceptual estamos a explicar o acrescentamento semântico de um participante correspondente a uma causa externa e, em simultâneo, a ressalvarmos a imiscuição argumental da base verbal do processo. Em paralelo, abrimos lugar para a interface com a organização argumental interna ao produto. Assim, o facto de alguns destes produtos, cujo semantismo de ‘causa’ é gerado através de um mecanismo de redobro da estrutura léxico-conceptual, ostentarem capacidade argumental e outros não não

é devido ao nível argumental da base, mas à organização da ligação da estrutura léxico- conceptual do produto com o seu eventual nível argumental.

O mecanismo descrito é pertinente na medida em que permite distinguir casos em que, apesar de os traços serem igualmente de fonte extra, ou seja, não provenientes nem do afixo, nem da base, não são inseríveis em posições da estrutura léxico-conceptual hierarquicamente superiores, como são os locativos.

Não nos deteremos mais neste mecanismo, visto os dados empíricos que fundamentaram a sua teorização serem dele esclarecedores nos capítulos V e VII.89