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O conceito de extrafiscalidade no sistema jurídico tributário

Capítulo 4. A seletividade e a extrafiscalidade

4.1. O conceito de extrafiscalidade no sistema jurídico tributário

Nas últimas décadas, constatamos uma atuação crescente do Estado na vida econômica e social dos administrados por meio da tributação. Isso se justifica devido às transformações das funções e deveres do Estado, em que passou a intervir em quase todos os setores (civil, social, econômico e político).

O tributo passou também a ser utilizado como instrumento de intervenção e regulamentação de atividades, tornando-se a extrafiscalidade mais uma ferramenta na função pública.

Em regra, os tributos são utilizados como instrumentos ou meios de arrecadação do Estado. No caso do IPI, ICMS e IPTU, encontramos elementos adicionais decorrentes de objetivos não-fiscais ou arrecadatórios, quais sejam, regular a vida econômica e buscar a justiça social.

Extrafiscalidade é elemento típico do Direito Tributário, entendido como “tributação com outros fins que não a obtenção de receita, constituindo um recurso técnico muito usado pelo governo como instrumento de intervenção do Estado no meio social e na economia”.209

Trata-se de instrumento jurídico-tributário de que se vale o Estado para atingir metas que não sejam meramente arrecadatórias, apontando objetivos que buscam outras finalidades, não apenas engrossar os cofres públicos.

Os objetivos extrafiscais traduzidos em regras jurídicas devem prevalecer sobre as finalidades arrecadatórias, diante da sua importância e previsibilidade constitucional.

ALFREDO BECKER fez interessantes observações sobre a existência do finalismo fiscal e extrafiscal dos tributos: “Porém, se na construção de todos e de cada tributo coexistir sempre o finalismo extrafiscal e o fiscal (prevalecendo aquele sobre este, ou vice-versa,

209 Conceito dado por Geraldo Ataliba, citado por Maria Helena Diniz. Dicionário jurídico. Vol. II, 1998, p. 491-

segundo os critérios de racional oportunidade Política), então, a Receita não será um peso- morto na balança, mas agirá (ela Receita, por si mesma) em harmonia com a ação da Despesa e cada ano reduzir-se-á o desequilíbrio econômico-social, até completar-se o ciclo. Naquela ocasião, ter-se-á alcançado o equilíbrio econômico-social previsto no orçamento cíclico”.210

Entende esse renomado autor que os tributos acabaram revolucionando a sociedade no lugar da força das armas, sem deixar de lado a função típica que é financiar essa reconstrução social disciplinada pelos outros ramos do Direito. Observa-se, nas palavras de BECKER, que os tributos contemplam o binômio fiscal e extrafiscal, com fim específico de atender ao financiamento público e ao equilíbrio econômico-social.

Não se pode afirmar que haja entidade tributária que possui apenas a fiscalidade ou a extrafiscalidade. Esses dois adjetivos convivem em harmonia no mesmo instituto, prevalecendo em determinados casos um sobre o outro.

Para ROQUE CARRAZZA, a “extrafiscalidade é o emprego dos meios tributários para fins não-fiscais, mas ordinatórios (isto é, para disciplinar comportamentos de virtuais administrados, induzindo-os a fazer ou a deixar de fazer alguma coisa)”.211

CECÍLIA MARCONDES comenta os aspectos arrecadatório e extrafiscal dos tributos: “O poder tributário, por sua vez, visa, em um momento, angariar recursos para fazer frente aos gastos públicos, e em outro, intervir no setor econômico, com o intuito de prestigiar ou desestimular determinada atividade econômica, daí a criação de tributos para pagamento dos gastos públicos, ou para a interferência na atividade de iniciativa privada, podendo até acontecer de um tributo servir para as duas finalidades”.212

PAULO DE BARROS CARVALHO dissertou também sobre a extrafiscalidade:

210 Teoria geral do direito tributário. 3ª ed. São Paulo: Lejus, 2002, p. 219-220. 211 ICMS, p. 314.

212 A capacidade contributiva. Tese de doutorado apresentada à banca examinadora da PUC/SP. São Paulo:

“A experiência jurídica nos mostra, porém, que vezes sem conta a compostura da legislação de um tributo vem pontilhada de inequívocas providências no sentido de prestigiar certas situações, tidas como social, política ou economicamente valiosas, às quais o legislador dispensa tratamento mais confortável ou menos gravoso. A essa forma de manejar elementos jurídicos usados na configuração dos tributos, perseguindo objetivos alheios aos meramente arrecadatórios, dá-se o nome de extrafiscalidade”. 213

Em breve estudo sobre a extrafiscalidade, LUIZA NAGIB tratou da matéria em complemento ao estudo sobre a competência tributária e a capacidade tributária ativa, considerando que a extrafiscalidade é fruto da atividade legislativa, que poderá, mediante lei, estimular ou desestimular determinado comportamento social, de acordo com seus interesses, dando ênfase a questões sociais, políticas e econômicas consideradas relevantes para o ente político.214

Desestimular dado comportamento não implica penalidade ou sanção por ato ilícito, vez que o art. 3º do Código Tributário Nacional215 expressa que o tributo não se confunde com multa. Com isso, o comportamento desestimulado não é ilícito, só não atende aos objetivos econômico-sociais do Estado naquele momento.216

Daí a classificação criada por YONNE DOLÁCIO DE OLIVEIRA quanto à extrafiscalidade, sendo favorecedora quando estimula ou torna mais freqüente certas condutas, e repressora quando desestimula algum comportamento.217

213 Curso de direito tributário, p. 230-231.

214 NAGIB, Luiza. O sistema tributário brasileiro e o imposto sobre a importação. Dissertação de mestrado

apresentada à banca examinadora da PUC/SP. São Paulo: PUC/SP, 1998, p. 112.

215 CTN, Art. 3º. “Tributo é toda prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cujo valor nela se possa

exprimir, que não constitui sanção de ato ilícito, instituída em lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada”.

216 Veja, nesse sentido, as lições de Denise Fabretti. Extrafiscalidade favorecedora do imposto predial e

territorial urbano e o princípio da função social da propriedade. Tese de doutorado apresentada à banca

examinadora da PUC/SP. São Paulo: PUC/SP, 2003, p. 54.

217 OLIVEIRA, Yonne Dolácio de. A tipicidade no direito tributário brasileiro. São Paulo: Saraiva, 1980. p.

Portanto, as alíquotas dos tributos podem ser criadas tanto para estimular, quanto para desestimular determinados fatos jurídico-tributários.

A majoração da alíquota de tributos incidentes sobre a importação de produtos e serviços, como exemplo, tem cunho protecionista das empresas nacionais.

A redução de alíquotas ou base de cálculo dos tributos também é vista como elemento que não busca a arrecadação, quando a concessão de incentivos fiscais a determinados produtos e serviços, industrializados ou comercializados em determinados locais ou regiões do país (Amazônia, Centro-Oeste, Nordeste do Brasil), fundamenta-se na busca do equilíbrio do desenvolvimento socioeconômico entre as regiões do país.

Muitos tributos foram criados não só para financiar os cofres públicos, mas para intervir cada vez mais no meio social e na economia privada, muitas vezes objetivando atender aos anseios sociais de consumo, desenvolvimento de determinado setor da economia ou região do país. Esses diferenciais têm amparo na extrafiscalidade.

Não se aplica a extrafiscalidade sem exigir sua previsibilidade em regra jurídica. As regras jurídicas válidas não intervêm diretamente na realidade social; ao contrário, ela prescreve como devem ser as condutas, ficando os comportamentos interpessoais sujeitos ou não ao atendimento do previsto na regra. Há um intervalo entre aquilo que a regra jurídica prescreve e a realidade social.

Nesse sentido, PAULO DE BARROS CARVALHO entende que “a mensagem deôntica, emitida em linguagem prescritiva de condutas, não chega a tocar, diretamente os comportamentos interpessoais, já que partimos da premissa de que não se transita livremente do mundo do dever-ser para o ser. Interpõe-se entre esses dois universos a vontade livre da pessoa do destinatário, influindo decisivamente na orientação de sua conduta perante a regra do Direito”.218

218 CARVALHO, Paulo de Barros. Erro de fato e erro de direito na teoria do lançamento tributário. Revista de

Com isso, é necessário que as regras de direito, produzidas por pessoa competente e por um procedimento adequado previsto pelo próprio direito, mediante linguagem técnica, contemplem critérios não-jurídicos que aproximem a regra jurídica do sistema econômico ou político, mas guardem formas autônomas. Na hipótese de a autonomia do sistema jurídico vir a ser “corrompida” por elementos econômicos e políticos, pela falta do processo seletivo de filtragem existente no interior do próprio sistema jurídico, haverá a quebra do sistema jurídico pelos outros sistemas.

Daí a necessidade de a extrafiscalidade ter previsibilidade jurídica, possibilitando sua aplicação no sistema jurídico sem o rompimento do equilíbrio entre os sistemas.219