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Uma outra caracterização do conhecimento profissional é a desenvolvida por Shulman (1987). Este autor refere sete categorias para o conhecimento base do professor, mas o destaque que dá ao conhecimento do conteúdo, leva-o a efectivamente focar-se nas três categorias que associa a esse conhecimento, acabando, mais tarde, por realçar muito particularmente uma delas.

É a análise que faz relativamente à importância que na altura vinha a ser atribuída ao conhecimento do conteúdo e ao conhecimento de aspectos pedagógicos por parte do professor, que o leva a considerar a existência de uma

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forte desvalorização do conhecimento do conteúdo e a sentir a necessidade de realçar esse conhecimento e de defender a sua importância. Neste sentido, Shulman (1987) começa por se referir a sete categorias para o conhecimento base do professor. Menciona um conhecimento pedagógico geral, com especial incidência nos princípios genéricos e nas estratégias de organização e gestão de uma aula; um conhecimento dos alunos e das suas características; um conhecimento dos contextos educativos, englobando o conhecimento da turma, de aspectos de gestão e funcionamento da escola, das políticas educativas e da comunidade onde a escola está inserida; e um conhecimento dos fins, propósitos e valores da educação e da história e filosofia que lhe são subjacentes. Aponta então as três categorias que mais valoriza e que associa directamente ao conhecimento do conteúdo: o conhecimento do conteúdo propriamente dito, o conhecimento do currículo e o conhecimento pedagógico do conteúdo.

O conhecimento do conteúdo é caracterizado como um conhecimento dos temas a ensinar e abrange conhecimento dos factos centrais, conceitos, teorias e procedimentos da área disciplinar, mas não se limita a este. O conhecimento do conteúdo envolve também conhecimento da estrutura que organiza e interliga as ideias dentro da área, conhecimento das regras de prova e ainda um conhecimento da natureza da área do saber. O professor deve assim conhecer não só as verdades aceites na área do saber, mas também como explicar porque é um determinado resultado ou afirmação válido, porque vale a pena conhecê-lo e como este se relaciona com outros resultados dentro e fora da área do saber, tanto na teoria, como na prática. O professor precisa não só de saber porque algo é de determinada forma, mas também porque é assim e de que forma essa veracidade pode ser atestada. Um professor deve ainda saber que tópicos são centrais nessa área do saber e porque o são. Ou seja, o conhecimento do conteúdo envolve tanto o conhecimento substantivo, como o conhecimento sintáctico (Rowland, Huckstep, & Thwaites (2005).

O conhecimento pedagógico do conteúdo vai para além do conhecimento do conteúdo per se, constituindo-se como um conhecimento do conteúdo para ensinar. Engloba assim conhecimento da melhor forma de representar as ideias centrais da área disciplinar, bem como das melhores analogias, ilustrações,

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exemplos, explicações e demonstrações, ou seja, conhecimento da forma de representar e formular o conteúdo de forma a torná-lo compreensível para os alunos. O professor deve ainda ter conhecimento da diversidade de formas por que as diferentes ideias podem ser representadas. Deve também ter conhecimento do que torna determinado tópico acessível ou difícil para os alunos, conhecendo as concepções e preconcepções que os alunos trazem para a aprendizagem em função da sua idade e vivências. Nos casos em que existem concepções erradas, o professor deve ainda ter conhecimento das melhores estratégias para as abordar, atendendo ao percurso prévio dos alunos.

O conhecimento do currículo envolve um conhecimento dos programas designados para determinada área disciplinar e nível de escolaridade, dos materiais educativos existentes relacionados com o programa e das indicações e contra-indicações relativamente ao seu uso em determinadas circunstâncias. Envolve ainda conhecimento de materiais curriculares alternativos, bem como conhecimento do currículo das outras áreas disciplinares dos alunos e familiaridade, dentro da área disciplinar, com os assuntos já estudados pelos alunos e com os que irão ser estudados no futuro.

Mas mais do que enfatizar o conhecimento do conteúdo, Shulman (1987) defende a importância de um conhecimento que de algum modo articula o conhecimento do conteúdo com o conhecimento de aspectos pedagógicos. Fala assim no Conhecimento Pedagógico do Conteúdo – PCK (Pedagogical Content

Knowledge). Um conhecimento que engloba os aspectos distintivos do que

considera ser um conhecimento específico para ensinar e que representa uma junção do conteúdo com a pedagogia, numa compreensão de como tópicos específicos, problemas ou questões são organizados, representados e adaptados aos diversos interesses e capacidades dos alunos e ensinados. Um conhecimento que Shulman (1993) considera situar-se na intersecção entre o conhecimento do conteúdo e o conhecimento de aspectos gerais da pedagogia.

Ao longo dos anos, diversos investigadores têm dedicado a sua atenção a esta noção de conhecimento pedagógico do conteúdo (PCK). No entanto, esta parece encontrar algumas nuances na forma como é conceptualizada. Canavarro (2003) e Duarte (2012) consideram-na como um conhecimento para ensinar que

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se desenvolve com a própria actividade de ensinar, a partir do conhecimento científico e da experiência; Guerreiro (2011) refere-se-lhe como uma transformação do conteúdo, o tipo de conhecimento que resulta de uma elaboração pessoal do professor e integra as suas concepções e crenças em relação à natureza da Matemática; já Mumby, Russell e Martin (2001) falam de uma combinação de conteúdo e pedagogia sob formas compreensíveis para os alunos; enquanto An, Kulm e Wu (2004) definem-na como o conhecimento do ensino efectivo, que inclui três domínios, o conhecimento do conteúdo, o conhecimento do currículo e o conhecimento do ensino, uma caracterização que os próprios autores já consideram mais abrangente que a caracterização original.

E a investigação em torno da noção de PCK, procurando expandir e refinar a conceptualização deste conhecimento para ensinar Matemática, tem constituído um foco de interesse para vários autores (Park & Oliver, 2008). É o caso de Silverman e Thompson (2008), que consideram o PCK como um conhecimento na confluência do conhecimento do conteúdo, do conhecimento do pensamento dos alunos (da compreensão que estes trazem para uma aula e da forma como o professor pode capitalizar sobre esta) e do conhecimento da educação matemática e da pedagogia (como por exemplo, conhecimento do currículo, de conceitos particularmente difíceis para os alunos, de imagens eficientes para o ensino e de recursos de ensino adequados). É também o caso do Conhecimento Matemático para Ensinar – MKT (Mathematical Knowledge for

Teaching), uma conceptualização do conhecimento desenvolvida por Ball,

Thames e Phelps (2008) e a que darei atenção mais adiante.

Park e Oliver (2008) ponderam as diferentes interpretações ou conceptualizações e consideram que genericamente é uma transformação do conhecimento do conteúdo com a intenção de o ensinar que constitui o âmago da noção. Partindo de uma análise compreensiva das diferentes conceptualizações definem então o PCK como a compreensão e concretização do professor relativamente à forma de ajudar um grupo de alunos a compreender um tópico específico, recorrendo a múltiplas estratégias, representações e avaliações, no seio das limitações contextuais, culturais e sociais do ambiente de aprendizagem.

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A forma como o PCK continua ainda hoje, mais de duas décadas depois da sua concepção, a influenciar muitas das caracterizações do conhecimento profissional, não significa, no entanto, uma aceitação consensual e isenta de críticas relativamente a este constructo.

Meredith (1995, p. 176) entende que o PCK “não engloba visões alternativas do ensino que, por exemplo, concebam o aluno como um agente autónomo que constrói o seu próprio conhecimento do conteúdo”. Considera que a forma como Shulman caracteriza o conhecimento parece ter implícito um tipo de ensino, muito baseado no recurso a representações de conhecimento prévio e ao assumir de um papel directivo por parte do professor. Considera ainda que a noção de PCK pressupõe um conhecimento da Matemática entendido como unidimensional e estático. Segundo a autora, esta conceptualização não atende à possibilidade de os professores desenvolverem diferentes formas de conhecimento em função do conhecimento prévio e das crenças que estes trazem para o ensino. Por seu turno, Petrou e Goulding (2011) entendem ser discutível a presença no constructo desta visão do professor como um transmissor de conhecimentos, pois vêem o conhecimento de um conjunto de representações alternativas para representar a matemática, de responder às ideias dos alunos e de terem uma base rica em que se apoiarem, como igualmente importante para os professores que trabalham numa abordagem construtiva do conhecimento. Já consideram, contudo, que este parece efectivamente ter associada uma visão estática do conhecimento para ensinar.

Petrou e Goulding (2011) referem que a noção de PCK não está suficientemente desenvolvida para poder ser operacionalizada na investigação em torno do conhecimento do professor. Neste sentido, Ball, Thames e Phelps (2008) apontam a forma pouco precisa como é feita a distinção entre conhecimento do conteúdo e conhecimento pedagógico do conteúdo e Santos (2000) questiona a necessidade de distinguir entre estes dois tipos de conhecimento, referindo a opinião de McEwan e Bull (1991), que consideram essa distinção mesmo como uma complicação desnecessária. McNamara (1991) vai ainda mais longe, considerando que não há distinção entre estes conhecimentos e que, para os professores, todo o conhecimento é pedagógico. Mas Petrou e Goulding (2011)

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contrariam esta perspectiva, argumentando que considerar todo o conhecimento matemático no ensino como pedagógico não será útil para a concepção dos programas de formação inicial e contínua de professores. E lembram ainda que o trabalho de Shulman (1986) parte de um reconhecimento da falta de atenção que estava a ser dada ao conhecimento matemático e que pelo menos parte do seu impacto parece dever-se ao foco sobre esse conhecimento.

Ponte (1993) critica por seu turno o papel de tipo declarativo e proposicional do conhecimento proposto por Shulman que, apesar de envolver uma componente de ordem prática, considera ser ainda primordial. Por seu turno, Hodgen (2011) entende que o conhecimento do professor está muito mais enraizado na prática do que a noção de PCK e a literatura desenvolvida em torno desta geralmente reconhece. Valorizando igualmente as questões ligadas à prática, Fennema e Franke (1992) criticam, tal como outros autores que já referi, que o PCK não tenha em conta a natureza dinâmica do conhecimento, mas também que não atenda à forma como esse conhecimento se desenvolve, algo que ocorre frequentemente na sala de aula e através das interacções com os alunos. E os autores levam esta crítica mais longe, desenvolvendo um modelo que procura modificar o de Shulman, sugerindo que o conhecimento necessário para ensinar é interactivo e de natureza dinâmica. Neste modelo, que apresento na subsecção seguinte, merece também destaque o contexto em que o professor trabalha, um aspecto a que Hodgen (2011) dá grande atenção, defendendo a natureza situada do conhecimento e afirmando que considerá-lo sem atender ao contexto da sala de aula será tendencialmente ineficaz.