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O contexto da administração municipal de Montreal

4. AGRICULTURA URBANA EM MONTREAL

4.2 O contexto da administração municipal de Montreal

A gestão pública da cidade de Montreal é caracterizada pela descentralização territorial, onde cada distrito (arrondissement) possui autonomia para governar e legislar. A organização do município de Montreal passou por diferentes reformas administrativas que resultaram em um sistema complexo que envolve a integração de duas estruturas administrativas: a Comunidade Metropolitana de Montreal e o município de Montreal, organizado a partir de três esferas políticas: a câmara municipal, 19 câmaras distritais (conseils d’arrondissement) e uma câmara de aglomeração que não está acima da câmara municipal, mas opera no mesmo nível político que as outras duas instâncias (Queiros, 2010).

A ilha de Montreal é formada por 15 municípios, incluindo o município de Montreal. Esse, por sua vez é formado por 19 distritos autônomos, com processos legislativos e políticos próprios. Os distritos são responsáveis pela gestão de assuntos locais relacionados aos assuntos sociais, de cultura, esportes, lazer e parques. Outros serviços como transporte, segurança pública, gestão de recursos hídricos e questões relacionadas ao desenvolvimento econômico são de responsabilidade comum à aglomeração de Montreal, composta por 15 municípios e 19 distritos149. O município possui 1,65 milhões de habitantes e a ilha de Montreal possui aproximadamente 1,9 milhões de habitantes.

A organização administrativa do município de Montreal favorece a ação das organizações comunitárias e de ONGs no nível local de seus distritos. Por um lado, a gestão pública de Montreal favorece as dinâmicas territoriais que implica na aproximação entre cidadãs e cidadãos, organizações sociais e governo local, e por outro lado, há uma maior aproximação dos distritos com a província de Quebec. “De fato, no campo do desenvolvimento social, por exemplo, a administração provincial está cada vez mais orientada para os distritos, de modo a gerir as demandas dos grupos comunitários150” (...) (Jouve, 2006, p. 87).

149 Informações disponíveis no site da prefeitura de Montreal: http://ville.montreal.qc.ca/portal/page?_pageid=5798,85493596&_dad=portal&_schema=PORTAL

150 Tradução livre do trecho original: En effet, dans le domaine du développement social par exemple, l’administrations provinciale se tourne de plus en plus vers les arrondissements pour gérer les attentes de groupes communautaires (...) (Jouve, 2006, p. 87).

No campo da Agricultura Urbana, o entrevistado Éric Duchemin, professor da Universidade de Quebec de Montreal, afirma que há duas questões envolvidas na dinâmica de gestão pública desse campo. A primeira é que diante da autonomia dos distritos de Montreal, as mudanças legislativas e políticas relacionadas à Agricultura Urbana devem ser negociadas com cada um dos 19 distritos, o que dificulta os processos de transformação institucional no nível do município. A segunda é que ao contrário de outras províncias do Canadá, que descentralizaram a política e o orçamento de saúde para os municípios, a província de Quebec não o fez. Tendo em vista que no Canadá muitos municípios estruturaram as políticas urbanas de alimentação, por meio dos Conselhos de Segurança Alimentar do setor da saúde (Mendes, 2008), um município que não tem essa estrutura institucional pode ser prejudicado.

O argumento de Éric Duchemin, é de que com essa estrutura administrativa, a província de Quebec trata a agricultura como uma questão prioritariamente rural. Assim, com a defasagem de orçamento e autonomia para construir uma política urbana de segurança alimentar no município de Montreal foi prejudicado no que diz respeito aos aparatos estatais para a consolidação do campo da AU. Mas, ainda assim, o entrevistado Éric Duchemin acredita que essa configuração deu espaço para a inovação e a consolidação da AU com muito mais enraizamento comunitário. De fato, durante a pesquisa de campo, foi possível identificar que a dinâmica da AU no município de Montreal segue as dinâmicas territoriais de cada distrito, embora haja redes de ações e de organizações que permeiam esses territórios. A principal característica da ação pública de AU é a ação em rede e a articulação entre diferentes grupos e organizações comunitárias e privadas, conforme será identificado ao longo da apresentação subsequente.

4.3 Histórico e gestão da Agricultura Urbana

A agricultura em Montreal remete à origem de sua constituição como cidade, quando essa prática era integrada ao modo de vida urbano, na época da constituição da Nova-França. Com o período de industrialização, as práticas agrícolas passaram a ser cada vez mais raras, e o sistema alimentar de Montreal passou a ser caracterizado

como grande receptor de alimentos (Leduc, 2014). Todavia, as comunidades portuguesas e italianas que migraram para Montreal durante o período da Segunda Guerra Mundial e, principalmente, após a década de 1970, trouxeram consigo a cultura do cultivo de alimentos em pequenas hortas nos jardins de suas casas.

Foi também na década de 1970 que ocorreu o primeiro apoio institucional do poder público à prática de hortas (Wegmuller & Duchemin, 2010). Devido a ocorrência de um incêndio em um dos bairros de Montreal, durante uma greve dos bombeiros, o poder público demandou à população como o incidente poderia ser reparado. A população, por sua vez, solicitou o acesso a espaços para a realização de hortas, e o poder público municipal atendeu a demanda popular institucionalizando o acesso a terrenos públicos para a agricultura por meio da gestão do Jardim Botânico.

Em seguida, diferentes bairros adotaram essa iniciativa e houve um aumento expressivo de iniciativas de hortas comunitárias. Assim, o município expandiu o Programa de Hortas Comunitárias (Programme des Jardins Communautaires) para todos os bairros de Montreal por meio da então Divisão de Esportes, Lazer e Desenvolvimento Social de cada distrito e Montreal passa a ser referência internacional pelo fato de ter sido uma das cidades pioneiras na gestão desse tipo de programa. A cidade também se tornou modelo pelo fato do Programa ter alcançado uma grande capilaridade sendo um dos maiores programas de hortas comunitárias do mundo (Leduc, 2014; Wegmuller & Duchemin, 2010; Pednault & Grenier, 1996).

Ao longo dos anos ocorreram algumas mudanças de gestão. Na década de 1990, o número de hortas comunitárias diminuiu devido à especulação imobiliária, cortes no orçamento e insegurança da população resultante de problemas de contaminação do solo (Wegmuller & Duchemin, 2010). Em 2002, a cidade passou por alterações administrativas e estabeleceu um processo de descentralização. Nesse processo, cada distrito passou a ter autonomia jurídica, política e administrativa. Assim, o Programa de Hortas Comunitárias também seguiu esse processo de descentralização e sua gestão passou a ser uma responsabilidade de cada distrito em parceria com o Comitê Gestor de Hortas Comunitárias, estabelecido por cada horta. Dessa forma, o poder público se responsabilizou pela gestão do acesso aos terrenos e à agua, e o Comitê Gestor, formado por pelo menos três participantes da horta, se

responsabilizou pela gestão da horta promovendo acesso aos insumos, reparações diversas, organização de eventos comunitários e oficinas educativas151.

Nos anos 2000, também surgiu um outro tipo de agricultura urbana, as hortas coletivas. Segundo entrevista com Éric Duchemin, especialista em agricultura urbana e professor na Université du Québec à Montréal, enquanto o acesso às hortas comunitárias se estabelece através de uma facilitação da prefeitura, as hortas coletivas não necessariamente recebem apoio municipal, e elas ocorrem através da ação de ONGs que estabelecem parcerias com instituições diversas que disponibilizam espaços verdes inutilizados para a criação de hortas, como igrejas, escolas, restaurantes, etc. Apesar dessas hortas se comprometerem com a luta pela justiça social, há maior instabilidade para seus projetos, pois não há recursos públicos específicos para essas hortas e as parcerias de acesso aos terrenos depende do consentimento da instituição parceira. Dessa forma, as hortas coletivas ficam muito suscetíveis ao rompimento dessas parcerias, o que apresenta certa instabilidade aos projetos.

Nos últimos 5 anos, outros fenômenos também tiveram destaque na agricultura urbana de Montreal: o surgimento de hortas compartilhadas, com base na filosofia e movimento Incredible Edible que nasceu na cidade de Todmorden na Inglaterra; a explosão da apicultura, que passou de 10 a 400 colmeias em cinco anos; o surgimento do cultivo de lúpulo na cidade e a expansão de múltiplos tipos de empreendimentos sociais relacionados à agricultura urbana. Além disso, outro fenômeno marcante foi a entrada de jovens profissionais na agricultura.

Montreal é marcada por uma tradição cultural de práticas de agricultura. Da população total de 1,65 milhões de pessoas, cerca de 800 mil pessoas declaram praticar algum tipo de agricultura urbana, o que representa 42% da população da cidade (Montreal, 2012). Atualmente, existem 97 hortas comunitárias na cidade de Montreal, o que representa 1700 canteiros, e a participação de 8500 pessoas nesse tipo de agricultura urbana. Em relação às hortas coletivas, a prefeitura registrou a existência de 75 projetos, mas não há estimativa do número de pessoas envolvidas (Montreal, 2012). Finalmente, a Zona Agrícola representa 58% da Região Metropolitana de Montreal e 3% do território da cidade de Montreal (Montreal,

151 Informações fornecidas durante entrevista com Michael Hind, presidente da Horta Comunitária La

2012). Além disso, as hortas comunitárias são reconhecidas pelo município como Zona de Parque (Montreal, 2005). É possível observar que historicamente, o que marca a agricultura urbana de Montreal são as hortas individuais e as hortas em espaços públicos, sejam comunitárias ou coletivas. Mas, nos últimos anos, há um crescente interesse dos jovens pela agricultura ecológica e a importância da zona agrícola da cidade tem tido grande destaque, seja pela atuação de sítios produtivos, ou pelo surgimento de novos projetos de empreendedorismo social nessa área.