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O direito do menor e a situação irregular

A

partir de meados do século XIX, o avanço da ciência, a con-

formação do movimento higienista e as ideias eugênicas somaram-se ao questionamento e às proposições para o fim da assis- tência caritativa e filantrópica observada no Brasil desde os tempos do Império. A noção de eugenia, formulada por Francis Galton1, se voltava

para os efeitos físicos e culturais da miscigenação das raças, ensejando uma preocupação com a constituição étnica do povo brasileiro. A dege- nerescência, como entendida por Morel2, em face da preocupação com

a transmissão dos “desvios patológicos do tipo normal da humanidade”, resultou na preocupação médica com a família e com a “delinquência infantil” (Rizzini, 1993).

1 No ano de 1884, no University College, de Londres, Galton criou um laboratório de psicometria em que eram estudadas as diferenças individuais entre escolares, atra- vés da mensuração das faculdades mentais. Seus estudos, na medida que buscavam identificar “os mais capazes”, se encontravam a serviço do aprimoramento da espécie humana (Correia; Campos, 2000).

2 Bénédict-Augustin Morel acreditava que “ao lado do fato exclusivo da hereditarie- dade [...] há influências do clima, do solo e da higiene dos pais que [podem] criar nas crianças [...] um estado orgânico especial ou definitivamente transmissível até a expiração da raça” (Morel, 1997, p. 178-179).

Os postulados “científicos” da eugenia e da degenerescência facilmente se associaram à noção de puericultura – orientação para o cuidado das crianças – e à técnica do esquadrinhamento, de análise da população e dos espaços por ela ocupados, possibilitando aos médicos um maior controle e disciplina especialmente da infância. De acordo com Irma Rizzini (1993, p. 36), “A infância, objeto de estudo e de inter- venção privilegiada da filantropia ‘científica’, sofrerá antes de tudo, um processo detalhado de classificação, que implicará na sua subdivisão em categorias bem mais específicas, criando novos alvos para a assistência e novas necessidades sociais”.

Esse período da nossa história foi marcado por importantes acontecimentos políticos, econômicos e sociais, determinantes da feição que assumiria a sociedade brasileira no início do século XX. Já em 1888 a abolição dos escravos implicou a reforma da estrutura jurídica do Estado brasileiro, que passou a adotar o modelo burguês, o qual revolu- cionou as relações de trabalho e possibilitou grande transformação na estrutura urbana e na composição do tecido social. A Proclamação da República, no ano seguinte, e a promulgação da primeira Constituição republicana, em 1892, consolidaram a nova ordem. O fortalecimento do capitalismo resultou em supervalorização do trabalho, na esteira do que se disseminou a crença de que por meio dele se atingiria a disciplina e a moral – que as instituições em funcionamento eram acusadas de não observar (Campos; Alverga, 2001). Em decorrência, registrou-se a criação de internatos, institutos de formação profissional para “meno- res” etc., que travestidos de uma feição assistencial tanto serviram ao objetivo de disseminar a nova ideologia e efetuar o controle social dos jovens quanto atenderam aos interesses capitalistas de organização de um mercado de trabalho para a indústria em ascensão.

Os juristas, assim como os médicos, desenvolveram ferramen- tas para o controle do imenso exército de reserva que se formara, e que se aglomerava em favelas, em cortiços, no meio das ruas. Diziam-se preocupados com o significativo contingente de crianças e adolescen- tes abandonados, perambulando pelas ruas, esmolando, vivendo em

famílias em que imperava a promiscuidade, os maus-tratos, os vícios etc., ou simplesmente sem famílias, praticando as mais diversas trans- gressões sociais: “crianças em perigo e perigosas”. Em decorrência, propuseram uma legislação voltada para a “proteção ao menor”, para “proteger a criança abandonada” e atacar a problemática do “adoles- cente infrator”, que “começava a perturbar a sociedade”. Sob essa pers- pectiva, médicos e juristas se integravam ao projeto das elites do país, de normalização da sociedade (Marcilio, 2001; Rizzini, 1993).

Curiosamente, as leis ditas de “proteção” resultaram duplamente danosas para aqueles a quem se destinavam. Primeiro, consagraram um sistema dual de atendimento, imputando a condição de “menor” àque- las crianças cujas famílias eram ausentes ou não tinham condições de prover o essencial para a vida, e considerando “crianças” aquelas cujo proceder das famílias era social e legalmente aceito. E depois, se não bastasse o estereótipo de “menor”, o tratamento destinado a elas tinha caráter essencialmente punitivo e segregacionista, seja nos estabeleci- mentos ditos correcionais, seja nos institutos de formação profissio- nal. O Código Civil Brasileiro, criado em 1916 e ainda em vigor – com reformulações –, que legisla sobre os direitos individuais, de proprie- dade e da família, define como responsabilidades dos pais frente aos filhos até 21 anos alimentar, educar, emprestar seu nome etc., de modo que a presença do Estado só é requisitada se faltarem os cuidados da família, como alimento, educação etc. Nesse caso, a pessoa se designava “menor” e era regulada pelo Código de Menores, instituído pela pri- meira vez em 1927. A tutela desse Código recaiu, assim, sobre os órfãos, os abandonados e os de pais ausentes – cujo pátrio poder fora subtraído.

A definição da família como referência para a atenção do Estado, a institucionalização da figura do “menor”, distinta da figura da criança, e o Código de Menores, articulado ao Código Civil e ao Código Penal, repercutiram de forma significativa no meio jurídico. Primeiro, no sentido de consolidar uma nova especialidade das ciências jurídicas, e segundo, ao orientar o surgimento de instâncias como o Juízo Privativo de Menores (Lei n° 2.059/25), o Conselho de Assistência e Proteção

do Menor (Decreto 3.228/25), o Serviço Social de Menores (1938), o Serviço de Colocação Familiar (Lei n° 560/49), as figuras do Juiz de Menores e do Comissariado de Menores, o Serviço de Assistência ao Menor. O aparato legal que ensejou a criação de tantos órgãos da magis- tratura brasileira denominou-se Doutrina do Direito do Menor (Silva, 2000).

Naquele contexto, particularmente a partir de 1937, a polí- tica pública do setor era efetivada pelas entidades que compunham o “Sistema Nacional de Atendimento ao Menor”, coordenadas por órgãos como o Conselho Nacional de Serviço Social (CNSS), criado em 1938, o Departamento Nacional da Criança (DNCr), criado em 1940, o Serviço Nacional de Assistência a Menores (SAM), criado em 1941, e a Legião Brasileira de Assistência (LBA), criada em 1942. Cabia ao CNSS e à LBA a coordenação das ações assistenciais, inclusive de suporte financeiro às entidades privadas, e ao DNCr e ao SAM a atenção com as questões de ordem social. O primeiro, na ótica da preservação da raça, articulava serviços médicos e assistência privada, valendo-se da orientação higie- nista para “campanhas educativas, inquéritos médico-sociais, formação de puericultores, orientação sobre funcionamento de creches, organiza- ção do atendimento pré-escolar [...]” (Faleiros, 1995, p. 69-70). O SAM providenciava e fiscalizava os internatos para os “menores”, notada- mente os abandonados e os “delinquentes”, atuando junto com o juizado e com as delegacias via de regra por meio da repressão.

No país, os problemas econômicos observados até os anos 1960 e a desagregação social daí decorrente resultaram em significativo cres- cimento da demanda pelos serviços prestados nos internatos, fazendo também aumentar a atenção sobre tais instituições. Foi então que se revelou a sua baixa qualidade, patente na falta de higiene, de projeto pedagógico etc., bem como inadequações de toda ordem na sua rela- ção com as instituições privadas – atraso de repasses, desvio de verbas etc. As críticas ao SAM que se seguiram a tais constatações, oriundas de importantes setores da sociedade, levaram, em 20 de novembro de 1964, à aprovação no Congresso da criação da Fundação Nacional do

Bem Estar do Menor (FUNABEM), expressão da Política Nacional do Bem-Estar do Menor – PNaBEM –, que estava sendo implementada pelo governo militar (Silva, 2000).

Logo, é importante destacar que o Código de 1927 vigeu até 1964, quando o país passou a viver sob a Doutrina da Segurança Nacional, ainda que somente em 1979 tenha sido substituído por novo Código de Menores, oficializando a substituição da Doutrina do Direito do Menor pela da Situação Irregular. O novo Código integrou, sob a denominação de “situação irregular”, as diferentes condições em que a inserção da criança na família demandava intervenção do Estado – e por isso era destituída da condição de criança e acusada de ser “menor”3. A

PNaBEM, portanto, muito embora instituída em 1964, representou o que de essencial veio a ser consolidado com o Código de 1979.

Formulada sob a ótica da corrente “menorista” do judiciário brasileiro, que desconsiderava as orientações das diversas Declarações, Pactos etc. internacionais que pugnavam por direitos da criança e proteção à família, a Política recebeu influência direta do Instituto Interamericano Del Niño, da Organização dos Estados Americanos (OEA), cuja orientação era de que a criança não seria merecedora de atenção diferenciada, a não ser quando se encontrasse em “situação irre- gular” junto à família (Silva, 2000). Essencialmente, a Política tratava da internação das crianças carentes e abandonadas até 18 anos, bem como do encarceramento e tratamento policial daquelas consideradas delin- quentes. Foi a Doutrina da Situação Irregular e sua política discricioná- ria e repressora, portanto, que marcou presença no Brasil desde 1964 e se estendeu até a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente,

3 São consideradas em situação irregular, de acordo com o Código de Menores de 1979, “as crianças privadas das condições essenciais de sobrevivência, mesmo que even- tuais, as vítimas de maus tratos e castigos imoderados, as que se encontrassem em perigo moral, entendidas como as que viviam em ambientes contrários aos bons cos- tumes e as vítimas de exploração por parte de terceiros, as privadas de representação legal pela ausência dos pais, mesmo que eventual, as que apresentassem desvios de conduta e as autoras de atos infracionais” (Silva, 2000, p. 3-4).

em 1990, sob a ótica da Doutrina da Proteção Integral (Campos, Sousa; Sousa, 2004).