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O lugar do escravo e da família patriarcal na formulação da subjetividade e da

sustentação do poder no Brasil

Destinado a manter o poder das elites políticas, preexistentes à independência, o Estado brasileiro se institui de modo eminentemente patriarcal. É uma extensão do espaço doméstico2 em que o pater é

2 Para Boaventura de Sousa Santos, Estados como o português e o brasileiro, por não terem passado por rupturas profundas de cunho político-ideológico (ainda que essas possam maquiar valores socialmente disseminados, vale frisar) expressam uma hi- pertrofia do espaço doméstico, sendo esse composto “pelas relações sociais (os direi- tos e deveres mútuos) entre os membros da família, nomeadamente entre o homem e a mulher e entre ambos (ou qualquer deles) e os filhos. Neste espaço, a unidade de prática social são os sexos e as gerações, a forma institucional é o casamento, a famí- lia e o parentesco, o mecanismo do poder é o patriarcado, a forma de juridicidade é o direito doméstico (as normas partilhadas ou impostas que regulam as relações

senhor e protetor da família (filhos e mulher) e dos bens, entre os quais se incluíam os escravos e as escravas (Holanda, 2009; Malerba, 1994; Góes Junior, 2007; 2008).

Como dito em O que ofuscam as luzes da Modernidade: o con- trole disciplinar e a formação de grupos vulneráveis no Brasil, é da retifica- ção das pessoas negras que se reforçam na classe dominante, sobretudo na figura dos senhores, as concepções de superioridade e de controle da diferença. “É o discurso da inferiorização dos negros ao patamar de coisa a fonte sugestiva nos senhores de seu poder sobre as pessoas e sobre a sociedade que, em larga escala, aceitava e se valia, direta e indiretamente, da mão de obra escrava” (Góes Junior, 2007, p. 92). Na expansão desse modo de ver a escravidão, também estava a garantia de inquestionabilidade dos senhores, em consequência do próprio poder político que, à semelhança do espaço doméstico, estava pautado na pes- soalidade, na passionalidade e no dever de obediência. Portanto, na hie- rarquia e na desigualdade.

Como não havia valorização do trabalho, todo poder econô- mico era a fonte do poder político das elites brasileiras e, reciproca- mente, essa é a origem das riquezas dos conglomerados dominantes. A existência do primeiro depende dos mecanismos e das possibilidades que cria o segundo, e vice-versa (Adorno, 1988). Isso porque o trabalho estava diretamente relacionado à condição de escravo. Não era admi- tido como virtude ou elemento de dignificação humana. Não era gera- dor de riqueza ou das relações de solidariedade de interesses próprias da organização racional da sociedade, como afirma Sérgio Buarque de Holanda (2009). Nesse ambiente de repulsa ao trabalho, herdado dos povos ibéricos e constituído com o auxílio dos padres da Companhia de Jesus, são as relações pessoais que prevalecem e é a obediência a virtude suprema entre todas as outras. É o princípio da disciplina pela obediên- cia que gera a excessiva centralização do poder e retroalimenta a forma

quotidianas no seio da família) e o modo de racionalidade é a maximização do afeto.” (Sousa Santos, 2000, p. 126).

estabelecida de geração de riqueza pela inserção no mundo da política ou no mundo da ordem.

Ambos, poder político e poder econômico, porém, para atua- rem livremente nesta relação, necessitam de sustentáculos ideológicos que ensejem certa forma de pensar e de agir, como mencionado alhu- res. Estes pilares são o discurso e a prática de menosprezo da negritude. Pois, como não havia indústrias naquele instante, não havia, de igual modo, a necessidade de adestramento de mão de obra. As demonstra- ções de força, o modo como se tratavam os escravos, o poder de vida e de morte sobre seu “patrimônio” é o que permite que se construam, no espaço público, a obediência e a hierarquia, em síntese, a superioridade, dos senhores (Góes Junior, 2007; 2008).

Com a independência e, posteriormente, com a República,

A ordenação da nova sociedade segundo o ideal da classe dominante seria incumbência da elite dos bacharéis recru- tados nessa mesma classe. [...] aqueles bacharéis a quem incumbiria construir a ordem, a quem a formação europeia dava todo um verniz liberal, eram os expoentes de uma classe que se sustentou – pelo menos até 1888 – à base do açoite, no controle cotidiano dos escravos negros, sobre os quais recaía todo o trabalho que movia o país, fosse no eito ou nas cidades. Realmente, o viés ilustrado dessa elite assen- tava-se em sua postura inegavelmente pragmática em rela- ção à realidade – haja vista o pendor com que os intelectuais se empenharam na obra de construção da nação. Porém, jamais estiveram dispostos a abrir mão, em nome das “luzes”, de sua posição aristocrática (Malerba, 1994, p. 13).

Portanto, guardadas as peculiaridades locais, do mesmo modo como ocorreu na Europa pós-revolucionária, os cidadãos brasileiros3,

3 Tanto quanto na Europa pós-revolucionária do século XVIII, as mulheres não tive- ram o seu reconhecimento como cidadãs na imediata formação do Estado.

de acordo com a estrutura patriarcal de Estado, foram divididos em cidadãos ativos e cidadãos não ativos.

Como afirma Malerba:

Aos cidadãos ativos incumbia impor uma ordem àquele conjunto heterogêneo de elementos: definir regras para si próprios na sua relação com as outras classes e, sobretudo, estabelecer os limites de ação destas últimas: o seu dever ser. Constituíam, portanto, o mundo do governo. Num mesmo sentido não parece impróprio falar em mundo da ordem, do qual participavam os senhores, como rulers, e seu contrá- rio complementar, os escravos, a quem competia obedecer. Formava estes últimos o mundo do trabalho (1994, p. 30-31).

De forma clara, essas circunstâncias de formulação de uma sub- jetividade brasileira baseada na violência em face da população negra e escravizada guardam relação imediata com o que Sérgio Buarque de Holanda intitula “moral das senzalas”. Esta forma de pensar estabele- cida pela brutalidade das relações passionais e irracionais de mando/ obediência, pela negação das virtudes sociais, que neutralizava as ações produtivas de uma realidade nova, foi introjetada na Administração Pública, na economia, a partir de sua assimilação inquestionada nas ações cotidianas das pessoas (Holanda, 2009). Desse modo, a “moral das senzalas”, que alimenta a forma e se alimenta da forma como se constrói o poder no espaço doméstico e de como esse se projeta para o mundo externo a casa-grande, inspirando as relações entre senhores (simétricas e/ou assimétricas, de confronto, subserviência e/ou de coordenação), ou entre eles e as pessoas não detentoras de escravos e/ou não investidas de qualquer poder (sempre de subordinação), contribuiu para naturalizar os papéis, os mecanismos e os lugares de mando que se estabeleceram no espaço social brasileiro.

Mais uma vez, são os escravos (talvez seja mais preciso dizer, a possibilidade de se estabelecer propriedade sobre pessoas e de determi- nar os rumos de sua existência) que ajudam a dilatar o espaço ocupado

pela família, por conseguinte, que ampliam interna e externamente a autoridade da figura paterna (Holanda, 2009).

Por um lado, no âmbito intrafamiliar, o poder do pai/senhor (ilimitado, sem lugar para pressões ou questionamentos) se reafirma sobre a mulher, os filhos e os agregados, que embora fossem considera- dos livres, estavam totalmente subordinadas àquele (para ver cumpridas as suas determinações, o pater não se furtava em fazer uso da violência e da tirania). Por outro, no âmbito externo, “a autoridade do proprietário de terras não sofria réplica. Tudo se fazia consoante a sua vontade capri- chosa e despótica” (Holanda, 2009, p. 80)4.

O quadro familiar torna-se, assim, tão poderoso e exigente, que sua sombra persegue os indivíduos mesmo fora do recinto doméstico. A entidade privada precede sempre, neles, a entidade pública. A nostalgia dessa organização compacta, única e intransferível, onde prevalecem necessariamente as preferências fundadas em laços afetivos, não podia dei- xar de marcar nossa sociedade, nossa vida pública, todas as nossas atividades. Representando [...] o único setor onde o princípio da autoridade é indisputado, a família colonial fornecia a ideia mais normal de poder, da respeitabilidade, da obediência e da coesão entre os homens. O resultado era predominarem, em toda a vida social, sentimentos próprios à comunidade doméstica, naturalmente particularista e anti- política, uma invasão do público pelo privado, do Estado pela família (Holanda, 2009, p. 82).

Isso se daria também nos momentos posteriores da história brasileira. Afinal, sem que houvesse qualquer ruptura significativa com

4 Importante para exemplificar a maneira como se exercia o poder do senhor no es- paço que circulava do âmbito interno para o externo e vice-versa da família é o caso relatado por Sérgio Buarque de Holanda em Raízes do Brasil (2009, p. 82). Segundo ele, Bernardo Vieira de Melo, ao suspeitar de que sua nora tinha cometido adultério, condenou-a a morte sem qualquer interferência da justiça.

os momentos precedentes, o universo cultural brasileiro foi se consti- tuindo (também durante o Império e a República) como um reposi- tório de experiências que se reproduziam e se reeditavam a partir do aporte de novas vivências dentro de novos contextos, sem que perdesse, todavia, seus traços políticos mais marcantes, gestados ainda no seio da família rural centrada no poder do pai.

Não nega essa perspectiva o surgimento das cidades como extensão do ambiente rural, ou seja, como um satélite das condições materiais e culturais que se elaboravam em torno da relação entre a casa-grande e a senzala, especificamente porque o ambiente urbano era ocupado por uma burguesia de hábitos rurais que nascia forçosamente pela necessidade de exercer os cargos públicos, de organizar, de produ- zir normatividade e de fazer valer o Estado também nascente. Como também, entre outros exemplos possíveis, são capazes de reafirmar a “moral das senzalas” os modos de autoridade e de subjetividade que se perpetuaram durante a República com o revezamento de grupos oligár- quicos no poder; o surgimento da indústria a partir do capital excedente da comercialização do café; e, as ditaduras apoiadas por fortes conglo- merados políticos do mundo rural.

Mais explicitamente, foi o poder doméstico que determinou o formato e as concepções empregadas nas políticas públicas e as prefe- rências para o orçamento do Estado; que, a partir de sua moral, impôs o lugar social a ser ocupado por certos grupos humanos. Em muitos momentos, senão quase sempre, no contato com o espaço público, usou a condição de produtor de legalidade, bem assim da decisão judicial, para realizar a combinação de ética católica, liberalismo, escravidão, práticas de favorecimento, corrupção e paternalismo como meio de perpetuar-se.

Não sem propósito, portanto, que a vida política brasileira guarda as marcas da pessoalidade, da centralização, da passionalidade e da violência. Conforme Boaventura de Sousa Santos (2000), é a maxi- mização da afetividade o que ocorre, trazendo para o Estado a forma e

o trato próprio do espaço familiar, de reforço/punição, de distribuição e troca de privilégios, por um lado; e repressão, por outro, como forma de estimular ou mesmo de impedir que se propaguem certas condutas. No caso específico da punição, é comum que ela se dê em formato de castigo, mecanismo pessoal (nada científico) e passional de formatação de comportamento e subjetividade própria do espaço familiar, fazendo- -se reproduzir, ainda, o método correcional-repressor então utilizado em face dos escravos, das escravas e da prole como elemento educacio- nal de crianças e adolescentes, sobretudo nos centros de internação de adolescentes em conflito com a Lei. Afinal, à semelhança do que ocorria na casa-grande, persiste a suposição de que prevenir e reprimir os des- vios em pessoas em desenvolvimento é garantia da ordem, da moral e dos bons costumes. Com efeito, de continuidade do sistema de coisas, principalmente, porque projetar e responsabilizar a criança pela realiza- ção do estereótipo do adulto ideal é também uma forma de estabelecer o maior controle sobre a infância, sobre a família e sobre certos grupos humanos.

Centro de internação de adolescentes em conflito com