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O relatório e elementos jurídicos – pinças de lucidez

A Carta Magna de 1988 considerou as crianças (até 12 anos incompletos) e adolescentes (dos 12 aos 18 anos) como titulares de direitos e deveres, sendo os jovens incluídos nesse rol com o advento da Emenda Constitucional 65/2010, passando o Artigo 227 a ter a seguinte redação:

É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à

liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de coloca-los a salvo de toda forma de negligência, discrimi- nação, exploração, violência, crueldade e opressão (Cunha Júnior; Novelino, 2013, p. 808, grifo nosso).

Mais adiante, no Artigo 228, expressa o texto constitucional que “são penalmente inimputáveis os menores de dezoito anos, sujeitos às normas da legislação especial” (Cunha Júnior; Novelino, 2013, p. 809). Assim, não é possível que a legislação ordinária impute responsabili- dade penal aos menores de 18 anos.

Quanto à possibilidade de PEC para alteração da maioridade penal, parte dos autores diz ser impossível, por se tratar de garantia individual da criança e do adolescente, invocando ainda o princípio da vedação do retrocesso ou o princípio da não reversibilidade dos direitos fundamentais sociais, de matriz europeia. Tal princípio atua como um limite material implícito à supressão de tais direitos, quando estes já atin- giram um grau de densidade normativa adequado (Fernandes, 2013). Isso significa que eles não poderão ser suprimidos nem por Emenda Constitucional, nem por legislação infraconstitucional. As garantias fundamentais são dispositivos constitucionais que não declaram direi- tos, mas visam evitar e/ou sanar uma violação de direitos (Dimoulis; Martins, 2007), impondo assim limites ao poder estatal.

Segundo os juristas Marcelo Novelino e Dirley da Cunha Júnior (2013, p. 809, grifos nossos):

como garantia individual decorrente do processo de univer- salização dos direitos humanos, a inimputabilidade penal para menores de 18 anos deve ser considerada cláusula pétrea. Seguindo critério biopsicológico, tanto o constituinte quanto o legislador ordinário entenderam que o indivíduo menor de 18 anos não tem plena capacidade de entender os seus atos, razão pela qual foi considerado penalmente inim- putável. Em harmonia com este entendimento, a Convenção

sobre os Direitos da Criança (1989) considera como tal todo ser humano menor de 18 anos de idade.

A Convenção sobre os Direitos da Criança, que entrou em vigor internacionalmente em 2 de setembro de 1990, foi ratificada pelo governo brasileiro em 24 de setembro de 1990, tendo entrado em vigor no pátrio ordenamento jurídico em 23 de outubro do mesmo ano, sendo promulgada pelo Decreto nº 99.710, de 21 de novembro de 1990. Em seu texto, o Art. 1º considera como criança “todo ser humano com menos de 18 anos de idade, a não ser que, em conformidade com a lei aplicável à criança, a maioridade seja alcançada antes”.

No Brasil, o Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA (Lei 8.069, de 13 de julho de 1990), em seu Art. 2º, considera criança a pessoa até doze anos de idade incompletos e adolescente entre doze e dezoito anos de idade, em consonância com a Constituição Federal.

Em seu relatório, emitido em maio deste ano, o deputado Luiz Couto do PT/PB recuperou não apenas o estabelecido pela Constituição Federal de 1988, pela Convenção sobre os Direitos das Crianças e o Estatuto da Criança e do Adolescente, mas também a Convenção Americana sobre os Direitos Humanos, que, juntos, perfazem todo um arcabouço jurídico que vai de encontro à redução da maioridade, posta de maneira descontextualizada e sem embasamentos sólidos na PEC supracitada.

Como se vê, tais instrumentos normativos, que tratam espe- cialmente da criança e do adolescente, bem como a Carta Magna, têm menos de 30 (trinta) anos de existência. Disso depreende-se como fala- cioso o argumento de que o Código Penal, elaborado em 1940, deve ser mudado em relação à maioridade penal porque nos dias atuais o ado- lescente de 16 anos, por exemplo, tem plena consciência de seus atos. Se assim o fosse, tais leis já teriam considerado como jovens as pessoas a partir de 16 anos completos, ou seja, caso se partisse dessa premissa falaciosa, essas normas já estariam considerando a maioridade em 16

anos, já que elas, teoricamente, emanaram dos tempos atuais e não da época da década de 1940.

Outro argumento falacioso presente na justificativa da proposta de emenda em discussão é o de que, imputando penalmente o jovem com mais de dezesseis anos, este terá a “oportunidade de discernir o que é a liberdade de conduta e a disciplinar seus limites”. Ora, como falar em liberdade de conduta com uma criança/adolescente que, bombardeada pela mídia de apelo consumista, não tem sequer acesso à educação e saúde de qualidade? Acaso a Constituição Federal não lhe conferiu a titularidade de tais direitos, bem como ao lazer, à profissionalização? Como falar em discernir o que é liberdade de conduta com crianças/ adolescentes com direitos violados, negligenciados, oprimidos, quando a própria Constituição Federal lhes garante esses direitos, mas o Poder Público não os efetiva? Usar o Direito Penal, cuja utilização só é legítima quando não há mais instrumentos nos outros ramos do Direito a serem usados para o controle ou proteção social, para combater o problema da violência por meio da redução da maioridade penal sai mais barato ao Estado do que investir em políticas públicas. Tal fenômeno é muito bem sintetizado por Loïc Wacquant (2001, p.18) em “supressão do Estado econômico, enfraquecimento do Estado Social, fortalecimento e glorifi- cação do Estado Penal”. Nesse mesmo entendimento, vale transcrever a reflexão do jurista Aury Lopes Júnior (2013, pp. 69-71, grifos do autor), onde se vê, com clareza solar, a hipocrisia do discurso da proposta de emenda em questão:

Eis os impuros, os objetos fora do lugar. O discurso da lei e da ordem conduz a que aqueles que não possuem capa- cidade para estar no jogo sejam detidos e neutralizados, preferencialmente com o menor custo possível. Na lógica da eficiência, vence o Estado-Penitência, pois é mais barato excluir e encarcerar do que restabelecer o status de consumi- dor, através de políticas públicas de inserção social. [...]

Salta aos olhos que o modelo de tolerância zero é cruel, desumano e totalmente aético. Os socialmente etiquetados sempre foram os clientes preferenciais da polícia e, com o aval dos governantes, nunca se matou, se prendeu e torturou tantos negros, pobres e latinos. A máquina estatal repressora é eficientíssima quando se trata de prender e arrebatar os hipossuficientes. Nos países da América Latina a situação é ainda mais grave.

Ainda nessa senda, pode-se invocar o princípio da proporcio- nalidade, que sustenta que o meio utilizado deve possibilitar o alcance do objetivo perseguido. Destarte, nada mais claro do que a despropor- cionalidade entre a medida que se quer adotar (redução da maioridade penal) e o objetivo que se quer alcançar (redução dos índices de crimi- nalidade praticado por adolescentes). Não há hipóteses comprovadas da existência de conexão entre a redução do índice de criminalidade e a redução da maioridade penal. Ou seja, a redução da maioridade penal não é o meio adequado para que se diminua o índice de atos infracio- nais praticados por adolescentes.

Sustenta ainda o princípio da proporcionalidade, que o meio utilizado também deve ser necessário. Explica-se: necessário será o meio utilizado se ele, além de possibilitar o alcance ao objetivo desejado, for o único possível ou o que acarrete menos danos dentre os meios adequados disponíveis. Sob a ótica da dignidade da pessoa humana, obviamente, esses danos devem referir-se à pessoa, sendo o maior dano possível, no caso em tela, a privação da liberdade do adolescente que cometeu ato infracional. Isso sem contar os danos relacionados à vivência com adultos que já se encontram expostos ao atual Sistema Penitenciário Brasileiro, com índices de reincidência dentre os maio- res do globo, em que a pena, nem de longe, cumpre suas funções pre- ventiva, retributiva e ressocializadora, atestando a “falência” da prisão. Nesse sentido, Aury Lopes Júnior (2013, p. 73) argui que “como resposta ao crime, a prisão é um instrumento ineficiente e que serve apenas para

estigmatizar e rotular o condenado, que, ao sair da cadeia, encontra-se em uma situação muito pior do que quando entrou”.