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O trabalho em redes: um novo paradigma no atendimento socioeducativo

O atendimento ao adolescente autor de ato infracional é reali- zado por vários atores sociais, de diversas instâncias, que fazem parte de um sistema que mantêm relações de interdependência. Esse sistema de atendimento é nomeado, muitas vezes, de forma aleatória como “rede de atendimento”, terminologia que sinaliza para a necessidade de promover a análise e o aprofundamento do conceito de redes. A partir desse contexto, entende-se que a política de atendimento ao adolescente autor de ato infracional tem interfaces com diferentes sistemas e políti- cas, e exige uma atuação diferenciada, que coadune responsabilização e satisfação de direitos dos vários atores envolvidos.

A articulação das diferentes áreas da política de atendimento e a incompletude institucional constituem princípios fundamentais e nor- teadores de todo o direito da adolescência que devem permear a prá- tica dos programas socioeducativos e da rede de serviços. Esse contexto demanda uma articulação efetiva com a participação dos sistemas e das políticas para a efetivação da proteção integral de que são destinatários todos os adolescentes.

Se o problema do adolescente autor de ato infracional é definido como principalmente um problema de segurança pública ou se como um problema eminentemente, digamos de educação e socialização, as políticas serão de natureza distinta no conteúdo e olhar sobre o público, atores diferen- tes serão protagonistas da política e, por último, mas, não menos importante, os recursos materiais, humanos e institu- cionais terão destinos diferentes (COSTA, 2004, p. 36).

A problemática do adolescente privado de liberdade não pode ser compreendida e abordada adequadamente em uma perspectiva unissetorial, sendo necessário considerar que para a produção desse fenômeno convergem fatores socioeconômicos, culturais, familiares, individuais e institucionais, conformando trajetórias distintas e deman- dando ações públicas de natureza, abrangência e objetivos diversos. Nesse sentido, fica evidenciada a necessidade de promover intervenções pautadas na perspectiva da integralidade das diversas ações e atores envolvidos no atendimento e na constituição de uma rede de políticas.

O conceito de rede de política está presente no ECA e no Sinase e ao novo paradigma de política social, que apresenta a perspectiva de construção de “redes” enquanto meio capaz de articular atores aptos a produzir conhecimentos e a intervir em realidades complexas, como é o caso dessa política.

Em uma abordagem mais pertinente às políticas públicas, Farah (2001) afirma que a inclusão de novos atores no processo de formula- ção e implementação de políticas públicas têm significado a ruptura no modelo baseado na centralização das decisões em uma única agência estatal, sustentado pela atuação setorial. Na promoção de programas e políticas, o que se tem é o crescente envolvimento de múltiplos atores, governamentais ou não, e de instituições estatais de diferentes níveis de governo. Algumas iniciativas implementadas pelas esferas do governo configuram verdadeiras redes de atores e de entidades, mobilizados em torno de um ou mais problemas de interesse público, cujo enfrenta- mento ultrapassa a capacidade da ação isolada do Estado.

Conforme Farah (2001), a constituição de redes para garantir a sustentabilidade, a horizontalidade e a articulação das ações consti- tui uma tendência em curso em programas sociais de diversas áreas no país, principalmente nas políticas da assistência social, que são produ- zidas, em grande parte, a partir de parcerias que envolvem um grande conjunto de atores governamentais e não governamentais em diversos níveis de governo.

É importante enfatizar que o conceito de rede tem sido utilizado indiscriminadamente. Efetivamente, o conceito de rede varia conforme o instrumental analítico e as bases teóricas de cada área. Dessa forma, é necessário estabelecer um conceito de rede com contornos mais preci- sos, enfatizando sua prática mais democrática, aberta e emancipatória.

A imagem metafórica da rede como entidade que une elemen- tos, transcendendo cada um de seus componentes para assegurar a conexão e manter o relacionamento, não é uma configuração nova para as ciências sociais. A antropologia compreende a rede como as relações desenvolvidas entre os indivíduos a partir de conexões preexistentes, como de vizinhanças, parentescos, trabalho e amizade. Na sociologia, a rede é compreendida como uma conexão de elos de relacionamen- tos que formam um tecido social comunitário ou geograficamente mais amplo, cuja articulação dá-se com base na interação entre os atores, que são indivíduos, famílias e organizações. É a partir dessa compreensão da sociologia que o conceito de rede social é introduzido.

Comum a praticamente vários autores que estudam o tema, o conceito de rede está ligado a um conjunto de atores, sem a manifesta- ção de um poder hierárquico, mas com espaço de poder compartilhado à articulação de saberes e práticas de organizações individuais ou de grupos envolvidos.

Mafort e Fleury (2007) relatam que a gestão em rede implica a gestão das interdependências, o que exige o desenvolvimento de formas de coordenação e controle. As autoras apontam que no estado da inter- dependência cada organização depende da outra, sem que isso implique

relação de subordinação entre elas. Nesse estado, o comportamento de cada parte não pode ser visto isoladamente dos demais, o que aumenta o grau de incerteza e conflitos. Dessa maneira, torna-se necessário rea- lizar a coordenação das interdependências, que consiste no estabele- cimento de processos contínuos e estáveis. Os instrumentos de gestão da rede que favorecem essa coordenação podem ser de natureza regu- ladora, financeira ou comunicacional. Manuel Castells (1999), em seu livro A sociedade em rede, afirma:

A presença da rede ou a ausência dela e a dinâmica de cada rede em relação às outras são fonte cruciais de denomina- ção e transformação de nossa sociedade; uma sociedade que podemos apropriadamente chamar de sociedade em rede, caracterizada pela primazia de morfologia social sobre a ação social (CASTELLS, 2007, p. 497).

A promoção de uma gestão em rede de atendimento requer mudança de paradigma de ação. Ações isoladas precisam dar lugar a redes horizontais de cooperação que possibilitem mais intercâmbio, efi- cácia na implementação de projetos e política pública na área social.

Considerações finais

A partir do contexto apresentado, infere-se que somente com a combinação de ações entre as políticas intersetoriais e intergoverna- mentais e a articulação entre agentes sociais pode-se potencializar o desempenho da política pública e arrancar cada ação do seu isolamento, para assegurar uma intervenção agregadora, totalizante e inclusiva.

Segundo Ude (2009), o mapeamento das redes institucionais representa uma importante metodologia para avaliar os vínculos da ins- tituição internamente e externamente. Esse processo permite avaliar o trabalho e visualizar o que precisa ser implementado, fortalecido e cria- dos com o objetivo de buscar construir redes sociais em prol do público atendido.

O mapeamento da rede interna (do centro socioeducativo) tem por objetivo diagnosticar como os setores da instituição estão intera- gindo entre si. O mapeamento da rede externa procura avaliar a rela- ção da instituição com as demais existentes, como elas se relacionam entre si. É importante conhecer quem está ao entorno do centro socio- educativo ou da comunidade do adolescente e articular ações de forma a evitar a sobreposição de atividades. Nesse sentido, o mapeamento das redes sociais constitui um desafio para executar uma proposta de socioeducação.

Os desafios internos têm estreita relação com a terminologia incompletude profissional essa terminologia deve ser um dos princípios organizativo do centro socioeducativo, a partir dele é possível ampliar e aprofundar a instituição, com foco nas equipes de trabalho internas. As ações desenvolvidas pela equipe multiprofissional são diferencia- das, entretanto não devem gerar hierarquia de saberes. As informa- ções devem ser socializadas a partir de uma dinâmica institucional que possibilite o compartilhamento das informações e a divisão de responsabilidades.

Outro desafio interno importante para a efetivação de ações socioeducativas é garantir a oferta de todos os eixos da medida apre- sentados anteriormente. A dinâmica institucional deve ser estabelecida desde o despertar dos adolescentes até a previsão do horário de dormir à noite, deve ser executado um quadro de atividades que garanta a escola- rização, oficinas, atendimentos técnicos, profissionalização, tempo livre do adolescente, banho de sol, visita familiar, esporte, cultura e lazer e outros. A rotina do adolescente durante o cumprimento da medida deve ser permeada pelos direitos e deveres. O cumprimento da rotina deve ser um compromisso assumido por todos os profissionais, de forma har- mônica entre as equipes. As normas e regras institucionais devem ser escritas em regimento ou regulamento disciplinar, que deve ser ampla- mente divulgado na instituição, pois, as normas institucionais têm que ser conhecidas por todos adolescentes e profissionais. Destacamos que

nenhuma norma institucional pode ferir um direito previsto no ECA ou na Declaração Universal de Direitos Humanos.

Os desafios externos aproximam do conceito de “incompletude institucional” e esse conceito deve ser também um princípio organiza- tivo do trabalho. Essa ação implica a integração permanente do centro socioeducativo com outras políticas sociais básicas, políticas interseto- riais e organizações sociais afins. O Centro Socioeducativo é responsável pela custódia do adolescente durante o tempo da sua medida socioedu- cativa e deve de forma articulada ofertar os demais atendimentos aos adolescentes pela rede de atendimento. A permissão para que o adoles- cente, em regime de privação de liberdade, realize atividades externas, salvo expressa determinação judicial em contrário, conforme previsto no Art. 121, §1º concretiza o princípio da incompletude institucional em detrimento de práticas de institucionalização total dos adolescentes como na era menorista.

É mister afirmar que a sustentação de uma proposta socioedu- cativa depende do compromisso assumido pela “rede de atendimento” e pela equipe de profissionais dos centros de atendimento ao adolescente autor de ato infracional a fim de sustentar as práticas socioeducativas. A finalidade da ação socioeducativa consiste na responsabilização do adolescente frente ao ato infracional e na sua preparação para o con- vívio social, por isso cabe a Unidade Socioeducativa ampliar a visão de mundo e oportunizar aos adolescentes vivências diferenciadas na tenta- tiva de romper com a prática de atos infracionais.

Conclui-se que a proposta do ECA para a questão do adoles- cente em conflito com a lei, que se alinha com a proposta da gestão em rede e com a interface entre as políticas, é complexa e desafiadora, principalmente porque exige, além da reforma da gestão e das insti- tuições, a reforma do pensamento: “Não se pode reformar instituições sem reformar mentes, mas não se pode reformar mentes sem refor- mar instituições” (Morin, 2000, p. 99). É necessário estar consciente do problema relacionado ao rompimento de um paradigma associado

ao conhecimento fragmentado, que, por tornar invisíveis as interações entre o todo e suas partes, anula o complexo.

Referências

Brasil (1990). Estatuto da criança e do adolescente, lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990.

Brasil (2012). Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo. Lei Federal n. 12.594 de janeiro de 2012.

Brasil (1996). Lei de Diretrizes e Bases da Educação, lei nº 9394 de 20 de dezembro de 1996.

Castells, Manuel (2007). A sociedade em rede. A era da informação: economia, sociedade e cultura.v. 1. São Paulo: Paz e Terra.

Costa, Antonio Carlos Gomes da. (1999). Aventura Pedagógica: caminhos e descaminhos de uma ação educativa. Belo Horizonte: Modus Faciendi. Costa, Antonio Carlos Gomes da (2000). Protagonismo Juvenil: adolescência,

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Costa, Antônio Carlos Gomes da (2006). Natureza e essência da ação socioeducativa. In Justiça, Adolescente e Ato Infracional. Socioeducação e Responsabilização. Ilanud, ABMP, SEDS (MJ), UNSPA (Org.) São Paulo: Ilanud.

Costa, Bruno L. D. (2004) Políticas, Instituições e estratégias de implementação. Elementos para análise de políticas e projetos sociais. In C. B. L. Carneiro; B. L. D. Costa (Org.). Gestão Social: O que há de novo? v. 2. Belo Horizonte: FJP E BNDS.

Farah, Marta Ferreira dos Santos (2001). Parcerias, novos arranjos institucionais e políticas públicas no governo local. Rio de Janeiro: Revista de Administração Pública.

Mafort, Assis & Fleury, Sonia Maria (2007). Gestão de redes: estratégia de regionalização da política de saúde. Rio de Janeiro: Editora FGV, 1996. Morin, Edgar (2000). A cabeça bem feita reformar a reforma, reforçar o pensamento.

Rio de Janeiro: Bertrand Brasil.

Ude, Walter (2009). Escola, violência e redes sociais. Belo Horizonte: UFMG. Volpi, Mário (Org.). (1997). O adolescente e o ato infracional. São Paulo: Cortez.

e obediência como resquícios