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Percebe-se, então, que recorrentemente voltamos ao foco do endurecimento punitivo para os atos infracionais cometidos pelos ado- lescentes. Assistimos diariamente a um bombardeio midiático sobre a violência, fazendo coro junto à campanha legislativa a favor da redu- ção da maioridade penal. Os programas policiais reforçam o imaginário social que coloca os adolescentes como responsáveis pelos crimes mais bárbaros, e a sua “impunidade” como única causa do aumento da vio- lência urbana no país. A população, assustada, sem informação e refle- xão sobre o tema, em uma reação imediata ao apelo televisivo, passa a exigir penas mais duras e severas para os adolescentes. Certamente, os argumentos difundidos a favor da redução e as propostas de emen- das, como vimos, carecem de maior aprofundamento e embasamento. Enfim, há muito alarde sobre o tema, mas o que é mito e o que é verdade nesse debate?

É preciso dizer que, ao contrário do que vem difundindo a grande mídia empresarial e os parlamentares autores das propostas de emendas referidas, a maioria dos especialistas e das organizações que conhecem profundamente a realidade do Sistema Socioeducativo – e dos adolescentes que cumprem medidas socioeducativas – posiciona- -se contra a redução da maioridade penal (Naves, 2013) fundamenta- dos na legislação apontada alhures, assim como nos aspectos históricos, sociais e psicológicos que envolvem a vivência desses adolescentes em atos infracionais.

Um ponto de discussão fundamental diz respeito às críti- cas à execução da política criminal que se relacionam com o Sistema Socioeducativo, situando-a em uma sociedade de classes (Adorno, 1994; Baratta, 2002; Batista, 2003). Dentre as críticas, a seletividade da justiça merece destaque, devendo-se desmistificar o princípio de igualdade,

segundo o qual todos e todas seriam iguais perante a lei (Paiva; Cruz no prelo).

É extremamente perverso culpabilizar e criminalizar apenas os adolescentes pobres, negros, residentes dos bairros mais periféricos das grandes cidades, pois esse é o perfil dos adolescentes que se encontram no sistema socioeducativo, privados de liberdade. O Sistema Prisional e o sistema socioeducativo têm classe e cor. Segundo pesquisa realizada pelo Conselho Nacional de Justiça – CNJ (2012), a maioria dos ado- lescentes privados de liberdade no Brasil tem idade entre 15 e 17 anos (47,5%); são negros (mais de 60%); não frequentavam a escola antes de ingressar na unidade (57%); não trabalhavam (49%); e foram criados apenas pela mãe (43%). Em média, os adolescentes que declararam ter parado de estudar entre oito e 16 anos interromperam seus estudos aos 14 anos; faziam uso de drogas ilícitas (75%); e os atos infracionais cor- respondentes a crimes contra o patrimônio (roubo, furto etc.) foram os mais praticados, sendo que o roubo obteve os mais altos percentuais. Ou seja, o sistema de justiça juvenil tem sido implacável com um perfil de adolescentes que, no contexto da prática do ato infracional, conviviam com uma série de vulnerabilidades, como defasagem escolar, falta de referências familiares, uso de drogas, pobreza extrema etc.

Fica claro, então, que existem os “menores” de um lado e os adolescentes de outro. A menorização da infância e adolescência pobres pode ser compreendida como expressão da “questão social”1 e deveria

ser colocada como prioridade junto aos desafios societários do país, assegurando-lhe a visibilidade devida (Sales, 2007).

Outro ponto relevante diz respeito às consequências estigmati- zantes da medida socioeducativa de privação de liberdade. As noções de criminoso, personalidade perigosa e propensa ao crime, que foram difundidas, principalmente, a partir das ideias de Lombroso e Ferri,

1 A expressão “questão social” é entendida aqui como o reconhecimento, por parte do Estado capitalista, da necessidade de enfrentamento das diversas mazelas sociais. Ver Netto (2001).

condenam a pessoa, deixando de considerar o contexto em que os atos foram praticados (Paiva; Cruz, 2014).

Ainda há um forte reflexo dessas ideias, centradas numa pers- pectiva individual e patologizante da violência. Frequentemente, os motivos que levam os adolescentes a cometerem atos infracionais são explicados pela sua (má) índole, periculosidade, e a crença bastante difundida que “pau que nasce torto, morre torto”, colocando-se, mais uma vez, o endurecimento punitivo como única possibilidade. Isso fica claro na proposta de emenda constitucional apresentada neste ensaio. Vale salientar que, de acordo com a concepção sócio-histórica de desen- volvimento humano, os processos psicológicos superiores têm origem social e cultural: na ausência do outro, o homem não se constrói homem (Vygotsky, 1978; 1981). Nossos componentes biológicos/inatos estão em constante processo de mudança, a partir dessas mediações, e os sujeitos que constituem essas interações estão historicamente situados. Logo, falar em índole ou natureza perversa, imutável, é algo bastante controverso. O desenvolvimento – e as mudanças em decorrência dele – acompanha todo o ciclo vital, e é atravessado por todas as mediações sociais, históricas e culturais no decorrer da vida.

Dessa forma, como disse Luiz Eduardo Soares (2011, p. 62),

[...] a experiência e um pouquinho de reflexão demonstram que ninguém é, necessariamente, para sempre e em essência, aquilo que foi ao agir de certo modo, alguma vez ou várias vezes, em etapas passadas da sua vida. Somos distintos de nossos atos e eles só ficam colados a nós pela memória e atribuições sociais de responsabilidade (políticas, jurídicas e morais). Mudanças existem. São um fato.

Há uma complexa teia de fatores que levam o adolescente ao cometimento de atos infracionais. É preciso analisar a questão de forma apropriada e desmistificar a ideia de periculosidade da juventude pobre, que tem levado ao seu encarceramento e extermínio.

Os dados do Mapa da Violência (Waiselfisz, 2013) vêm demons- trando claramente esse extermínio, desvelando índices assustadores de “mortes matadas” por armas de fogo. Entre os jovens de 15 a 29 anos, houve um significativo aumento das vítimas de homicídio: de 4.415 óbitos em 1980, para 22.694 em 2010, um crescimento de 414%. O per- fil segue inalterado nos últimos anos: jovens homens (93,9%), negros (morrem proporcionalmente vítimas de arma de fogo 133% mais negros que brancos), moradores das periferias urbanas, muito embora esteja crescendo o fenômeno da interiorização da violência.

Em contrapartida, analisando os últimos números acerca da prática de ato infracional no Brasil, verificamos que frente ao universo de 25 milhões de brasileiros entre 12 e 18 anos, somente 0,2% (pouco mais de 39 mil adolescentes) estavam no Sistema Socioeducativo. Além disso, os dados apontam que menos de 1% dos crimes de latrocínio e homicídio é cometido por adolescentes. Enfim, não se justifica o alarde sobre o tema, especialmente no endurecimento do sistema penal juve- nil vigente, apontando para uma falsa necessidade de redução da idade penal para 16 anos.

O debate sobre a redução da maioridade penal, como dissemos, não se apoia senão no resgate de práticas classistas, racistas e punitivas da época do Código de Menores, com vistas à limpeza social e ao con- trole dos mais pobres.

Enquanto o discurso se propaga e se fortalece, duas entre cada três vítimas fatais das armas de fogo no país foi um jovem (Waiselfisz, 2013). São os matáveis e, por isso, não há clamor por justiça ou indigna- ção diante das suas mortes.