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O discurso do mestre, discurso inconsciente

No documento A função pendular do educador (páginas 86-89)

2. O assento do discurso pedagógico

2.3 Os discursos em Lacan e em Anne Sullivan

2.3.2 O discurso do mestre, discurso inconsciente

Em O avesso da psicanálise, ao introduzir o ensino dos “esqueminhas quadrípodes giratórios, (...) esse aparelho de quatro patas, com quatro posições, [que] pode servir para definir quatro discursos radicais” (1991, p. 19), Lacan afirma, por razões históricas, que devia começar pelo discurso do mestre, o que em nosso caso vem a calhar, porque remete à discursividade que poderia ser atribuida em grande parte ao endereçamento de Sullivan aos Keller, mas especificamente a Helen.

O primeiro laço social é instaurado por um mestre: não por um mestre de escola, mas por aquele ou aquela que tem autoridade, isto é, que enuncia um significante-mestre no imperativo, de modo que o outro se ponha em marcha. É a primeira experiência humana uma vez que nascemos crianças e não adultos. A mãe, o pai e muitos outros em posição de agente instauram um laço dominante-dominado através da linguagem. Assim, certos significantes fundamentais constituem o inconsciente do outro, na medida mesma em que a linguagem e não o instinto é a condição do inconsciente. A palavra de ordem, o comando no imperativo faz andar o corpo da criança, do adolescente, do adulto. (...) o “faça isto!” é recebido completado do “...para ser isto!”. É esta a identificação segundo a sequência dos S1: identificação a tal einziger Zug, diz Freud, traço unário do Ichideal: educação, modelização, colonização, transmissão de geração em geração, de acordo com um ideal de domínio sobre si mesmo e sobre o outro (é a mesma!) (JULIEN, 2004, p. 184-185).

S1 S2 Discurso do Mestre

S a

No discurso do mestre, na posição do sujeito agente, encontra-se S1, significante mestre que opera sobre o outro, fazendo funcionar o registro avesso ao da psicanálise85. Na posição de mestre, o sujeito fala como se tivesse a certeza de quem sabe sobre o outro, embora tenha sob a barra do recalque o inconsciente na posição da verdade, ou seja, o mal- estar inquieto do sujeito castrado.

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“Para a psicanálise o sujeito está implicado em todo ato que diz respeito a si, embora aqueles que a consultem nem sempre saibam disso. Por esse motivo e desde o início, a análise visa criar condições para o sujeito se interrogar sobre as causas dos episódios que o incomodam. Entregando-se à elaboração de uma teoria sobre seus sintomas, é ele quem deve reconstruir – e não o analista – um saber ainda não sabido sobre o processo de determinação singular dos acontecimentos “pessoais”, ainda que tal saber guarde todo seu poder de efeitos subjetivos enquanto estiver sendo operado por aquele que o produz, ou seja, o próprio analisante, pois na mão de terceiros, revela-se ineficaz” (cf. LAJONQUIÈRE, 1996, p. 28). Esse seria o avesso proposto pela psicanálise, ou seja, não ditar a verdade, porque não a tem. Se alguém a carrega, é o analisante, único a poder tentar dizê-la.

Quando aquele que fala toma a posição de S1, a verdade meio-dita86 do agente, pretensamente um enunciado – em verdade-(re)velada: enunciação –, transparece como verdade absoluta a qual, além de saber sobre o Outro, pode indicar o caminho para se produzir, ou encontrar o objeto perdido para mais gozar. Ainda que o dito do mestre esteja ancorado nas próprias experiências subjetivas de um sujeito recalcado, é ele quem enuncia, como senhor, uma ordem: o mestre não pede, manda. O imperativo que impõe com todo seu poder de persuasão e convencimento o desejo do mestre ao outro, embora surja da verdade recalcada do sujeito, visa nada menos que submissão e obediência do outro objetalizado.

Há de fato uma pergunta a ser feita. O senhor que opera essa operação de deslocamento, de transferência bancária, do saber do escravo, será que ele tem vontade de saber?(...) Um verdadeiro senhor não deseja saber absolutamente nada – ele deseja que as coisas andem. E por que haveria ele de querer saber? Há coisas mais divertidas. Como terá chegado o filósofo a inspirar o desejo de saber ao senhor?(LACAN, 1991, p. 22-23).

11 de março de 1887. Estou morando sozinha com Helen, numa casa pequenina de campo, de propriedade da família. Sempre achei que não poderia fazer nada com minha discípula em companhia de sua gente, que a deixa fazer tudo o que quer. Ela se habituou a trazer todo mundo sujeito a sua vontade: pai, mãe e os negrinhos87 (sic) que brincam com ela. Qualquer desejo seu contrariado resulta numa tremenda gritaria e má-criação, difícil de conter. Helen não cedia um só ponto a minha vontade. Para fazê-la pentear o cabelo, lavar as mãos ou abotoar os sapatos, eu tinha sempre que empregar força e brigar com ela. A família inteira acudia pressurosa, especialmente seu pai, que não podia vê-la chorar. Preferiam ceder aos caprichos dela para deixá-la em paz, mostrando-se contrários a minha insistência em obter que a menina me obedecesse. Sem essa obediência eu não poderia ensinar-lhe coisa alguma. Como já lhe disse, pensei que pudesse ir aos poucos conquistando a amizade de minha discípula, como se faz com as crianças que ouvem e vêem. Compreendo agora, porém, que ela não sente a minha simpatia. Aceita como obrigação o que lhe faço e recusa-se a receber minhas carícias. Parece impossível despertar nela a ternura e a afeição de criança. Eis, minha boa

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Para Lacan, a verdade nunca será dita por completo, será sempre semi-dita, porque barrada pela linguagem e pelo saber-não-sabido do inconsciente, relembra Alberti (2000) a respeito da verdade do sintoma – verdade sempre velada, embora seja ela, no fundo, o que sustenta não apenas o sintoma, mas também o discurso, ainda que através do semblante – exceto no discurso do analista – pois “o discurso impõe a necessidade ao homem de a ele se submeter pelo semblante, faz-de-conta que tem valor de verdade”. Segundo Maurano (2007), como a verdade passa pela linguagem e a linguagem tem uma estrutura de ficção, por conseguinte, aquela só pode ser semi-dita, porque essa é a lei interna de toda enunciação sobre a verdade e é o que faz com que, no final das contas, a “besteirada” e a verdade sejam idênticas (sic).

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Embora a abolição da escravidão no EUA tenha ocorrido em 1863, o preconceito racial de Sullivan nesta passagem fica estampado.

amiga, para o que a gente estuda e se forma. No momento de aplicar as teorias, tudo falha. Temos é de confiar nessas capacidades inatas que só descobrimos em nós quando chega a hora de pô-las em ação (Anne Sullivan, in KELLER, 2001, p. 194-5).

! Música atonal para os ouvidos! Ho momento de aplicar as teorias, tudo falha, diz a mestra!, Ió! Ió! Baco, Ióóóó!..Evoé!!!

Anne Sullivan, sem dúvida, desejava que as coisas “andassem” e, nesse aspecto, posicionava-se com virilidade, discursando a partir do lugar de mestre, pondo sua discípula a trabalhar em nome de um desejo possivelmente enlaçado aos fantasmas de seu romance familiar americano-irlandês. Não raro, encontramos em seus escritos passagens que descrevem as ações educativas nas quais atos aconteciam. No filme, cenas são construídas para ilustrar como a educadora, a todo custo, procurava sustentar sua posição utilizando estratégias diversas. Ora teimava em ensinar o alfabeto à menina que se punha a fugir; ora tinha que se esquivar das reações físicas violentas de Helen; ora dava explicações aos familiares sobre o porquê de seus procedimentos. E nem por isso, sozinha em seu quarto, à noite, com seus cadernos, cartas e pesadelos, não se deixava perder em pensamentos de insegurança, pedidos de ajuda a Deus, choros, principalmente após momentos críticos de embate e impasse. Nisso, também, apontamos o registro do mestre, que endereça ordens e certezas, mas na verdade, mantém-se ouvindo os ecos de um sujeito cindido, faltoso, assentado sob o recalque. Esse era um dos assentos discursivos de Anne Sullivan, que à diferença de Itard, não se reconhecia como toda. Anne girava nos discursos, pois dava-se a liberdade de, nem sempre, professar enquanto mestre... mulher de idiossincrasias ... estamos tentando demonstrar.

22 de maio de 1887. Helen é uma criatura tão original e tão desejosa de aprender que meu trabalho se torna cada vez mais interessante. Apesar de ainda não fazer três meses que aprendeu a primeira palavra, ela já sabe mais de trezentas, além de muitas frases correntes. Que grande privilégio o meu, ver desabrochar e fortalecer-se o espírito dessa criança invulgar! Sinto-me já impotente para a tarefa. Tenho a cabeça cheia de planos, mas não sei pô-los em ordem. Se alguém pudesse ajudar-me! Preciso de professor, quase tanto quanto Helen. Estou certa de que a educação de tal menina será o orgulho de minha vida, caso eu tenha forças para levá-la adiante. Preciso ensinar Helen a fazer uso dos livros: você poderia arranjar-me a Psicologia de Perez e a de Sully com o Sr. Anagnos?

(Anne Sullivan, in KELLER, 2001, p. 204).

Assim, o discurso do mestre estabelece laço social entre aquele que manda e aquele que trabalha ao articular o desejo do agente ao desejo do outro (escravo/aluno), vida e morte,

trabalho e casa, objeto e gozo, ainda que o saber transformador – que é o trabalho – esteja do lado do outro objetalizado, sutileza que faz a diferença.

O discurso do mestre é o laço civilizador que exige a renúncia pulsional, promovendo rechaço do gozo que retorna sob a forma do supereu, do qual o sentimento de culpa do sujeito é o índice que se manifesta através do olhar que vigia e da voz que critica. O discurso do mestre produz os dejetos da civilização – o que escapa à simbolização – sob a forma de mais-de-gozar

(QUINET, 2001).

Contra-mão ao discurso do capitalista, o discurso do mestre, mesmo se autoritário, não é sem Lei, nem trabalha a favor da foraclusão da castração, muito pelo contrário, nos dá mostras dela: não fosse o escravo, o mestre desapareceria, perderia a razão de ser, ou melhor, perderia a mestria, já que do trabalho do escravo depende o mestre, escancarando que este não é mesmo todo. Que o discurso do mestre seja regulador, não resta dúvida, porém segregador de jeito algum, função ocupada pelo capitalista. Seria o discurso do mestre, então, o que põe a andar uma educação na palavra plena do educador? Parece-nos que sim... mas não só... não todo...

A partir do discurso do mestre, retroagindo os quatro elementos em um quarto de giro, três vezes, dão-se outros três discursos: da Universidade, do Analista e da Histeria, embora haja ainda o Discurso do Capitalista, este que configura uma mutação perversa do discurso do mestre, cujo funcionamento subverte a ordem da estrutura proposta por Lacan.

No documento A função pendular do educador (páginas 86-89)