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O ortodoxo e obsessivo

No documento A função pendular do educador (páginas 50-56)

2. O assento do discurso pedagógico

2.1. O ortodoxo e obsessivo

No trabalho anterior, de passagem havíamos adjetivado a pedagogia ortodoxa como “obsessiva” sem nos darmos conta que seria possível e até desejável aprofundar a intuição, o que fez abrir e permanecer retornando um novo incômodo: havíamos incorrido em exagero? Então buscamos conhecer um pouco mais sobre essa entidade, ou melhor, sobre as especificidades de funcionamento dessa estrutura psíquica, a fim de verificar a pertinência de tal representação. Devido a entendermos o fazer educativo das diretrizes metodológicas de ensino como uma forma discursiva49, tal qual ocorre no império do discurso psicopedagógico, não nos causaria espanto que ambas discursividades, da ortodoxia e da obsessão, no fundo a mesma, acabassem dando provas da lógica da referida neurose. No campo escolar, tal matriz responderia por transpor ao fazer pedagógico o funcionamento de um discurso assentado em enunciados legitimados pela tecnociência, trabalhando pela supressão da enunciação do sujeito em prol disto que nos parece um modo duro de praticar o ensino, produzindo espécie de maquinar pedagógico semelhante à prática do beato ortodoxo que decora e repete textos sagrados. A título de curiosidade, faço saber, que o termo ortodoxo usado por nós para adjetivar a pedagogia costumeira não precipitou em pensamentos em outra ocasião senão durante uma reportagem televisiva sobre os costumes da Igreja Católica Apostólica Ortodoxa.

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O resultado deste estudo foi intitulado “ ‘Ladainha de professor’, qual o assento desse discurso?” e serviu para avaliação final da disciplina de pós-graduação “A Psicanálise, o Discurso Pedagógico e a Contemporaneidade”, ministrada por Rinaldo Voltolini . Disponível em :

:http://www.proceedings.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=MSC0000000032008000100014&lng=es& nrm=iso&tlng=pt, acesso em 5/11/2010.

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Discurso no sentido de “raciocínio que se realiza pela sequência e que vai de uma formulação conceitual a outra, segundo um encadeamento lógico e ordenado” (Cf. Dicionário Houaiss), mas também como “(...) determinado grupo de fala decantado e sedimentado pela história: é a realização individual de todo o social que há na língua” (PEREIRA, 2008, p. 127).

- Sim, a pedagogia costumeira parece uma religião, cuja bíblia é re!escrita em forma de preceitos didático!metodológicos50.

Não por acaso, a ortodoxia e a obsessão se encaixavam em nossas suposições, o que só viemos a saber quando encontramos em Freud a comparação entre o exercício religioso e o ritual obsessivo, assimilando este último a “uma religião privada”. Mas de que maneira isso se daria no campo pedagógico? Vejamos como funciona a estrutura dessa neurose.

Durante uma de suas conferências realizadas na Escola Lacaniana de Psicanálise do Rio de Janeiro sobre a neurose obsessiva, em 2001, Charles Melman, a certa altura, pergunta à plateia que verdade é essa de que a psicanálise tanto fala51. É a que está do lado do sujeito – responde –, aquela à procura do conceito ou do sentido que seria adequado para responder a uma ausência, a um furo, à falha radical que constitui sua existência. Em seguida, passa a contar sobre a ambição de Lacan, no final de sua vida, a respeito de tentar dar uma ordem, uma estrutura, uma organização científica à Psicanálise:

(...) ele disse algo que me perturbou muito; ele disse em um Seminário: “tudo o que fiz, o fiz com uma pequena parte do meu inconsciente”. Ele nunca disse: eu tenho a mestria, eu sabia tudo o que estava para fazer. Ele dizia: “eu fiz tudo isso sendo inconsciente e sem saber o que estava fazendo”. Mas, é claro que fazia para tentar responder ao que foi para ele a falha, o sintoma – o que foi para ele o mais importante, seu próprio sintoma. E o que foi para ele seu sintoma foi o fracasso da relação sexual. Ele não dizia que seu sintoma seria o mesmo para todos; e quando escutava seus alunos elaborarem seus trabalhos, tentava compreendê-los como sendo algo que vinha do sintoma do aluno. Ele fez uma conferência numa universidade americana, já velho, em 1975, em que disse: “vou lhes dizer porque eu vim para a psicanálise. Por qual sintoma eu vim para a psicanálise. Eu vim para a psicanálise porque não há relação sexual. E vocês, por que vieram para a psicanálise?” Sem resposta... Mas, com isso, mostrava que uma elaboração teórica, quer dizer, os enunciados, encontram sua verdade nisto que é a dor de existir do sujeito. E é aí, na dor de existir do sujeito, que se encontra a verdade dos enunciados. E quando o obsessivo quer suprimir esta existência do sujeito e substituir as enunciações unicamente por enunciados, ele duvida de tudo, não está mais seguro de nada, não tem mais certeza de nada (MELMAN, 2004, p. 47-48, negrito nosso).

O obsessivo é aquele que pretende todo saber, que se apraz com os comandos e cálculos, de preferência exatos pois, se pudesse funcionaria como uma máquina regulada e

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Na graduação em Pedagogia, não é raro que o aluno seja levado a reiterar em trabalhos e provas de diferentes disciplinas isto que toma ares de jargões: “ O professor deve respeitar o nível cognitivo do aluno”, “O professor deve diagnosticar os conhecimentos prévios dos alunos”, “O professor deve propor atividades propostas compatíveis com a zona proximal de desenvolvimento da criança”, entre outros. Aconteceu conosco.

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Verdade: “Dimensão essencial da experiência psicanalítica, à medida que esta não tem, no sentido que lhe dá Lacan, outro fundamento senão a fala.” In: CHEMAMA ; VANDERMERSCH, 2007, p. 385. Sobre “eu, a verdade, falo”, ler “A coisa freudiana”. In: Escritos, Lacan , 1998.

precisa. Diferente da histérica que é dada a espetáculos encenados através do próprio corpo, esse outro neurótico é aquele que se esforça por não aparecer, por ser discreto, falar pouco, de preferência baixo, evitando singularidades, estratégia que formata para manter-se anônimo, escondido, misterioso, feito ali não ocorresse sujeito, especialmente o que falha durante a enunciação. Enquanto histéricas gozam a céu aberto, estampando seu destempero, esse outro personagem goza em reserva, na solidão. Agrada-se de levar na aparência o equilíbrio, a sensatez, o grande senso moral. Pudico e escrupuloso, em geral, é cultivador da religião e da racionalidade, motivo pelo qual, não raro, chega a ser bastante culto. A certeza de que esteja tudo nos seus conformes, tranquiliza-o, acenando-lhe a possibilidade ilusória do domínio de si e das coisas do mundo que, no caso específico em questão, equivaleria ao domínio sobre o processo de ensino-aprendizagem. O pedagogo obsessivo é o que acredita nos rituais metodológicos como lastro de sua ação. Seu bem ensinar deve estar para um exato aprender. Se algo sai a contratempo, não há de ter sido por seu descuido, ou responsabilidade, não!. O déficit deve ser acrescentado na conta do aluno, que não faz a contento o que é da sua parte.

Entretanto, assim como o obsessivo não consegue se livrar da delícia e tortura que são suas fantasias obscenas, violentas, injuriosas, escatológicas e até mesmo criminosas a penetrar-lhe a vida psíquica – de preferência em situações que exigem respeito, devoção, submissão – , também o pedagogo ortodoxo não consegue se livrar do que fracassa no ensinar e no aprender, ainda que se acerque dos últimos e mais científicos materiais e prescrições didático-psicopedagógicos. Obsessivo e ortodoxo, cada a qual a sua maneira, esforçam-se pelo controle interno e externo na evitação do inesperado. Contudo, num átimo de segundo, postados estão a lidar com o real, esgoto mal cheiroso de pruridos e agressividade, que civilidade e religiosidade alguma são capazes de encobrir. Perfeccionistas, senhores dos mínimos detalhes e ordens, houvesse meios suturariam aquela ferida primordial, a marca da castração que puderam, nos primórdios de uma infância, saber da mãe e do consequente ódio que enviou ao pai. - Pudesse matava!o... Hão! Jamais, nunca pensei uma coisa dessas!... Castração que, em última instância, serviu de corte por onde entreabriu a fenda para escapar, em parte, da célula narcísica, confrontando- se com o não de um pai, com o falo, com o significante da falta; o mesmo corte, primeiro, que denegam e forcluem, forcluindo o real – categoria que se opõe a todo fechamento –, foraclusão52 que

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Foraclusão: “Conceito forjado por Lacan para designar um mecanismo específico da psicose, através do qual se produz a rejeição de um significante fundamental para fora do universo simbólico do sujeito. Quando essa rejeição se produz, o significante é foracluído. Não é integrado no inconsciente, como no recalque, e retorna sob

não só explica o horror a tudo que lhe escapa, como torna inteligível o mais!de!gozar53 que desfrutam pelas ideias totalitarizantes.

Assentar o fazer pedagógico em prescrições assertivas de ensino, a exemplo, configura aos professores um discurso totalitarizante. Entretanto, como nem tudo é ainda ensino à distância, nem os procedimentos todos informatizados, o professor presencial ainda se lança à fala com seus alunos e o inevitável craquelamento da formatação pedagógica ortodoxa acontece.

Mas como e por que desconfiar de personagem tão austero, que se esforça tanto para não pecar, evitando ferir ou traumatizar o outro/a criança/o aluno, sacrificando o desejo que lhe é próprio, em nome do bem estar alheio?

(...) Tem uma alma de funcionário público, mas também na família; ele é o funcionário do pai. Ele faz tudo o que é preciso, ele trabalha, se sacrifica para o bem-estar de sua família e sacrifica seu próprio prazer em função dos seus. (...) Então, talvez vocês reconheçam na minha descrição que o obsessivo é o melhor entre nós. Em todo caso, é o que quer ser o melhor. E então, como podemos ousar fazer uma imagem patológica daquele que quer ser o melhor entre nós? (...) Primeiro porque, em um certo número de casos, eles sofrem terrivelmente. E, quanto mais tentam ser melhores, mais eles sofrem. Quanto mais tentam ser morais, tanto mais são parasitados por pensamentos obscenos e escondem sempre sua doença. A histérica mostra doenças que não existem; o obsessivo tem um sofrimento verdadeiro que ele tenta sempre esconder, dissimular. Por quê? Podemos dar logo uma primeira resposta. Porque isto seria mostrar que há uma falha nesta espécie de felicidade perfeita que ele quer mostrar. E nós analistas sabemos que se trata de uma figura da patologia porque se trata de um sujeito que trata de se defender contra isso que os psicanalistas chamam de castração. E que a defesa contra aquilo que chamamos castração tem sempre consequências patológicas (Idem, ibidem, p. 14-5).

Eis uma estrutura que faz habitar no sujeito a culpa pelo desejo de morte do outro sem, contudo, reconhecê-la. Seriam os “santos”, não fosse o inevitável e mal!dito retorno do recalcado, impondo-lhes o encontro com o que causa horror, a produção inconsciente, o real. Pero em que medida tudo isso nos interessa, uma vez que o foco é a função do educador?

Quando o endereçamento pedagógico se efetiva discursivamente numa matriz semelhante, não em nome próprio, mas em nome do que prega o discurso da tecnociência

forma alucinatória no real do sujeito. No Brasil também se usam “forclusão”, “repúdio”, “rejeição” e “preclusão” ” (ROUDINESCO ; PLON, 1998, p. 245). Segundo Lacan, “[a forclusão do Home!do!Pai é a ] falha que dá à psicose sua condição essencial, com a estrutura que a separa da neurose” (Pascale Dégrange. In: CHEMAMA ; VANDERMERSCH, 2007, p. 156, acréscimo nosso).

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psicopedagógica – como veremos à frente na teoria dos discursos em Lacan – , não é de espantar que os efeitos distem dos alvos pré-estabelecidos e a ortopedia do reforço escolar , ou da medicalização psiquiátrica sejam chamadas em cena, forçando mais uma vez o aluno à aprendizagem que não tatuou, porque não fez diferença. Muito do fracasso no aprender – inferimos a partir da clínica do aprender – talvez não seja mais do que reflexo e forma de defesa do alunado posicionado em lugar de objeto para validação teórica, como bem alertou Maud Mannoni, na recusa de algo que não foi fabricado para ser endereçado exatamente a ele, educando, mas ao próprio educador na tentativa de evitar a angústia da castração frente ao impossível da profissão, numa lógica semelhante à que se encontra em “Carta Roubada”54, de Edgar Allan Poe. A propósito, o trecho de Educação Impossível que versa sobre isso é importante que ser lembrado:

A educação [perversa] está subordinada à imagem de um ideal estabelecido logo de entrada pelo pedagogo [ortodoxo] e que, simultaneamente, proíbe toda e qualquer contestação desse ideal, ou seja, do desejo que serve de suporte à sua opção pedagógica; pede à criança que venha ilustrar o fundamento de uma doutrina. Tal opção tem suas raízes no imaginário (do educador) e participa de todas as divagações referentes a um mundo melhor (...). Uma pesquisa pedagógica que estabelece desde o início o ideal a atingir só pode desconhecer o que diz respeito à verdade do desejo (da criança e do adulto). Expulsa do sistema pedagógico, essa verdade retorna sob a forma de sintoma e se exprimirá na delinquência, na loucura e nas diversas formas de inadaptação. (...) Efetuar uma verdadeira reflexão sobre a educação implica o esforço de constituir uma doutrina científica e de se livrar da falta de pontos de referência que caracteriza o imaginário. E é aí que a psicanálise pode entrar com sua contribuição; ao superar a dualidade natureza-sociedade, ela sublinha a relação de ambas com a linguagem, relação apreendida no estudo do nascimento do desejo nesse indivíduo humano, o qual, antes mesmo de estar apto a usar a palavra, fez a experiência de pertencer ao mundo da linguagem e apercebeu-se de que esta constitui um de seus polos; e por conseguinte, que o Outro pode- lhe responder sim ou não. Assim, a doutrina psicanalítica tem por efeito marcar essa entrada na cadeia significantes que converte a criança em sujeito; ao destacar-se aquilo que a ação analítica foi chamada a perturbar na relação entre o sujeito e o significante, indica-se simultaneamente o que separa essa prática de toda ação social, religiosa, pedagógica ou política (MANNONI, 1957, p. 44-45, acréscimos nossos).

! Isto que me enfiam pela boca, não posso mais digerir. Fechando!me, encontro meios de dizer “não”, seja com a anorexia escolar, seja com um tipo de bulimia intelectual pela qual engulo conteúdos e depois vomito toda forma de idiotias em respostas onde não se encontram os sentidos. Ao menos assim dificulto a sorvedura de minha alma, embora não evite o gozo que desfrutam com os diagnósticos encomendados sobre mim.

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A fim de ilustrar as hipóteses que conjecturamos, e mais precisamente de que a função do educador funciona como um pêndulo entre o Desejo e o Nome, trazemos no próximo subitem recortes da história de Helen Keller e Anne Sullivan, resgatada como exemplo contrastante do que, em geral, é pregado como ideal para a prática educativa contemporânea, numa educação que se deu não pelo viés discursivo obsessivo, muito menos ortodoxo, mas a partir de outro assento, com tentaremos demonstrar enquanto evocamos a presença de ambas.

Fazemos saber que utilizamos as seguintes fontes: The miracle worker, filme inspirador desta dissertação; A história de minha vida (1903)55, primeiro dentre os doze livros publicados por Keller, Lutando contra as Trevas: minha professora Anne Sullivan Macy56, escrito em homenagem, editado em 1957, 21 anos após o falecimento da mestra; e Minha vida de mulher (1929)57. A escolha justifica-se por entendermos que ao material possa ser atribuído o que está na ordem de uma enunciação, da palavra plena58. Tanto filme, quanto os livros, embora não sejam fontes rigorosamente acadêmicas, não deixam de ser documentos fabricados com o consentimento e assinatura de ambas – Sullivan e Keller. Tentaremos, assim, mostrar sua singularidade, marcada pela autenticidade informal comum a diários e cartas produzidos sem maiores pretensões, muitas vezes para si mesmas, amigos ou familiares, ora como desabafos, ora como pedidos, exercícios de escrita, de pensamento, correspondência do dia a dia em época que ainda não havia “e-mails”, nem sequer telefone fixo.59

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3ª. Edição brasileira, 1943.

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Primeira edição brasileira, 1959.

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Primeira edição brasileira, 1953.

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Palavra plena: Lacan, no seminário 1 sobre os Escritos Técnicos de Freud afirma “a palavra plena é aquela que visa, que forma a verdade tal como ela se estabelece no reconhecimento de um pelo outro. A palavra plena é a palavra que faz ato. Um dos sujeitos se encontra, depois, outro que não o que era antes. É por isso que essa dimensão não pode ser eludida na experiência analítica”. Lacan, 1990, p. 129.

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A invenção do telefone fixo foi devidamente registrada – ou patenteada – em 1876, por Alexander Graham Bell, um escocês que, na verdade, estava pesquisando aparelhos para deficientes auditivos, pois sua mãe não escutava bem. Assim, Bell acabou inventando um meio de comunicação para fazer as pessoas conversarem a distância. Não por acaso, foi ele quem indicou aos pais de Helen Keller os caminhos que permitiram chegar a Anne Sullivan, a quem Keller se referia, sempre, como “A professora”.

Mais ainda à frente, Miguilim e o menino de Infância de Graciliano Ramos serão chamados para quando tratarmos das funções materna e paterna e seus desdobramentos conceituais do Desejo da mãe e do Home do Pai, naquele que deverá ser o último capítulo.

No documento A função pendular do educador (páginas 50-56)