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o estofo do estilo, a dialética do reconhecimento

No documento A função pendular do educador (páginas 154-161)

2.3.5 – Discursos da Histeria e do Analista

3. O ato educ(a)tivo de Anne Sullivan

3.3 o estilo de educar, o assento do pequeno a

3.3.1 o estofo do estilo, a dialética do reconhecimento

Em psicanálise, a noção de demanda foi criada por Lacan como um elo para conciliar duas tradições, uma filosófica e outra psicanalítica, quando conceituou aquilo que Freud propôs enquanto idéia ou visão: o desejo. De um lado, havia a noção freudiana de Wunsch122, traduzida por desejo, no sentido de voto ou anseio distanciado da necessidade biológica, atribuído ao inconsciente – porque ligado a reminiscências – , que se realiza na

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Ver nota 74, p. 74.

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FREUD, Sigmund. A interpretação dos sonhos (1900). In: Edição Standard brasileira das Obras Psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1977.

reprodução simultaneamente inconsciente e alucinatória das percepções transformadas em “signos” de satisfação, cujo caráter é sempre sexual. De outro lado, havia o que Hegel123 chamou de Begierde, entendido como desejo no sentido de

(...) apetite, tendência ou concupiscência, pelas quais se expressa a relação da consciência com o eu. Se a consciência tenta conhecer o objeto, a apreensão deste não se faz por um conhecimento, mas por um re!conhecimento. Em outras palavras, a consciência reconhece o outro na medida em que se reencontra nele. A relação com o outro passa, pois, pelo desejo (Begierde): a consciência só se reconhece num outro, isto é, num objeto imaginário, na medida em que através desse reconhecimento, instaura-se esse outro como objeto de desejo(ROUDINESCO ; PLON, 1998, p. 146).

Lacan constrói a noção de demanda para poder justamente alocar o inconsciente freudiano no lugar da consciência hegeliana descrita acima e estabelecer, assim, a ligação entre o desejo do reconhecimento e o desejo da realização inconsciente, explicando portanto que, ao demandar, o sujeito endereça ao outro demanda de amor, ou seja, desejo do desejo do outro, na medida em que busca ser reconhecido em caráter absoluto por ele (cf. Idem, ibidem, p. 146).

Quando um educador se lança a falar com o aluno, mais do que sobre ele, seja um ou mais que um, metatransmite não outra coisa que a demanda. Falar ao educando, digamos, é direcionar os pseudópodos educativos, professorais, àqueles que se entregam (ou não) ao (des)prazer de ouvir e escutar a palavra do educador, seja este encarne de mestre, histérico, obsessivo, analista, capitalista, ou universitário.

Tomemos demanda na acepção de movimento em direção a um objeto que atrai. Movimento de busca por algo investido de interesse e valor, já que o desimportante ignora-se, levando-nos a perguntar até que ponto aquele que não é feito interesse, nem valor ou importância, existe realmente e torna-se “olhável”, “escutável”, “tocável” ou reconhecível pelo aparelho psíquico do sujeito?

Pensemos: por que gastar tempo com um outro que não “eu” – esse tipo de parque interno de diversões e horrores, subdividido em instâncias psíquicas que não se entendem mas “conversam” o tempo todo entre si –, se não for justamente para enviar palavras ao destinatário pequeno outro, demandando-lhe além da atenção e ouvidos, algo a mais? Caso contrário, não haveria motivo para movimentar-se para fora e deixar em segundo plano o contínuo e instigante embate intrasubjetivo pelo qual neuróticos deliciam-se e martirizam-se. Manteríamo-nos ali, a girar sem desejo, em pleno gozo – para além do princípio do prazer. Se

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desviamos parte do tempo a ser gasto com nosso próprio aparelho psíquico no endereçamento de palavras ao outro, no caso os alunos, educandos, é porque, neuróticos que somos, desejamos algo desse objeto e vamos buscá-lo – fato que não passa incólume ao sujeito que recebe a demanda, que também se angustia diante dela, indagando a si mesmo: O que quer de mim? O que em mim tanto interessa, causa?

Che vuoi?, Que queres? Forcem um pouquinho mais o

funcionamento, a entrada da chave [do que a doutrina freudiana introduz sobre a subjetividade], e terão Que quer ele de mim? (Que me veut!Il?), com a ambiguidade que o francês permite no mim (me) entre o complemento indireto ou direto. Não se trata apenas de Que quer ele comigo?, mas também de uma interrogação em suspenso que concerne diretamente ao eu: Como me quer ele?, mas Que quer ele a respeito deste lugar do eu? (LACAN, 2005, p. 14, acréscimo nosso).

O problema é que o endereçamento ao outro implica a sujeição de quem fala a, pelo menos, dois tipos estrangeiros de retorno, pois os efeitos das enunciações, para o espanto de muitos, nem sempre chegam ao previsto, ainda que exista a feliz possibilidade. É bom lembrar que aqui, ao falarmos de palavras, não nos referimos apenas àquelas sonoras saídas da boca de um sujeito em direção aos ouvidos de outro(s), originadas por multicombinações fonéticas e silábicas, agrupadas em conexões sintáticas cujas significâncias unívocas traduzem representações produzidas pelos cérebros de modo a viabilizar, através do diálogo recíproco, entendimentos racionais. Não! Aqui, a palavra tem um outro estatuto, porque além de incluir o entendimento comunicativo compartilhado pelos linguistas, inclui-se o que é da ordem do conceito de significante, conforme subverteu Lacan, de maneira a incluir nas construções deslizantes da significação da fala – ou melhor, dos atos de linguagem – o não- dito, o inter-dito, o silenciável e até mesmo o que é da ordem do indizível. Se para Saussure o signo é uma unidade indissociável constituída entre significado e significante, para Lacan esses dois elementos estão separados pela barra do inconsciente, indicando duas ordens distintas. Por interpor uma resistência à significação, a barra quebra a pretensa unidade do signo, cabendo ao encadeamento da cadeia significante, no après!coup, do tempo lógico, a produção dos significados lábeis, fazendo com que nenhum significado possa ser pensado fora de sua relação a outros significantes. Por exemplo, dizer “O rapaz olhava através do buraco” é completamente diferente de dizer “ O rapaz olhava”. O sentido da oração só aparece com o ponto de basta, ou seja, após a última palavra haver sido proferida. O ponto de capitonê.

Quando um sujeito fala a outro, seja oralmente ou na linguagem de sinais, por mímica, pela linguagem das mãos, pela pintura, música, dança, gesto, olhar ou reação fisionômica – por qualquer ato de linguagem, enfim – nada garante que o recebido será equivalente ao enviado em intenções originais, ainda que o emissor tenha se esmerado em meios e métodos. Para professores inavisados, seria bom informar, por exemplo, que as respostas a serem recebidas após uma preciosa exposição didática, ou mesmo demonstração empírica de todo “construtivista”, dificilmente se enquadrarão ipsis litteris àquelas imaginadas por ele quando do envio de sua demanda em enunciação. O desvio de rotas nos entendimentos e assimilações de conteúdos escolares, por exemplo, são fenômenos que ocorrem com grande frequência, para destempero de muitos educadores. A brincadeira do telefone sem-fio faz boa ilustração disto que ocorre na transmissão de palavras entre sujeitos: cada um muda um ponto, acrescenta uma vírgula, troca uma letra, faz uma rasura, deixa um traço, de forma que a mensagem inicial se transforma e torna-se irreconhecível, para deleite do grupo quando fica sabendo, no final da roda, a ideia lançada ao ouvido do primeiro “brincador”. Poderíamos aludir, também, à variância das notas de aproveitamento dos alunos de uma classe, porque apesar de serem expostos aos mesmos encaminhamentos pedagógicos, os alunos são capazes de processar as informações de forma singular, por vezes até non sense, do ponto de vista do professor e demais colegas. Problema de zona do desenvolvimento proximal ou das estruturas cognitivas, dirão os sócio-construtivistas, problemas de dislexia, disgrafia, déficit de atenção, hiperatividade, baixo quociente de inteligência, estrutura familiar, senão outros, dirão os atualizados para-educadores, médicos e pretensos conhecedores do funcionamento psíquico. Coisas da equilibração majorante, diremos nós...

! “Eus” universitários, senhores tudosaber nas casas dos outros...

Porém, ver o currículo chegar a um ponto não vislumbrado pelo educador não é a única possibilidade de desvio para o endereçamento da demanda educativa. Outra possibilidade se faz presente nos trâmites do educar e talvez possa ser interessante que o “adulto” se inteire dela pois, quando ocorre, é o educador que articula a pergunta: o que este não crescido quer de mim?, embora isso possa ser uma inversão de seu próprio pedido e não, necessariamente, de uma demanda que o aluno realmente lhe fez, visto que o trabalho docente está aberto à profusão de fantasias especulares de ambos os lados. Vai saber...

Por estarem afeitas aos deslizamentos de sentidos, não há como impedir que, vez em quando, palavras lançadas ao outro, repentinamente circulem o objeto buscado, deem meia-

volta e retornem em direção ao aparelho psíquico daquele que fala, feito mensagem invertida124, movimento primo ao que ocorre quando o infantil (isto que sobra dos tempos de infância e permanece vivo para o gozo das disputas intrapsíquicas) retorna do recalcado, causando mal-estar. Nesses momentos, deparamo-nos sem aviso prévio com as crianças impulsivas que não esperávamos reencontrar dentro de nós, como apontou , em 1930, o educador e psicanalista Bernfeld (cf. FILLOUX, 2002, p. 90), por julgarmos que estavam mortas e enterradas, fruto do trabalho realizado pelo amadurecimento racional do “adulto” que, agora civilizado e crescido, imagina-se livre do indomesticável. Pura ilusão – o que nas palavras de Freud em O Futuro de uma Ilusão não passa de crença alimentada por um desejo – , no caso, desejo de não ser mais habitado pelo infantil, esse estrangeiro Outro, a enviar de forma invertida as próprias mensagens recalcadas, amortecidas, subliminares.

Em suma, por melhor preparado que esteja o educador, seguindo à risca os preceitos didático-metodológicos que estudou e aprendeu em sua formação sempresempre continuada, em rol de preceitos tidos como ideais, o retorno da demanda educativa endereçada ao aluno – sempre sujeito, pero nem sempre tomado como – pode escapar repentinamente pela culatra e atingir o educador em seu íntimo, bem onde jamais esperou. A peleja que a demanda educativa lhe impõe passa exatamente por aí. Então, vale o lembrete:

Dedicar-se à infância e, ao mesmo tempo, defender-se é o destino que poderia chamar de profissional e até apaixonante das pedagogias. O risco do ofício125 é, justamente, ter de ser confrontado com essas três crianças [a real, a ideal e a recalcada], com os próprios recalques e com suas próprias pulsões infantis, soterradas no seu inconsciente. A criança real o faz retornar às duas crianças que existem nele. E essa criança que tem diante de si: ou vai encontrar o ideal, maravilhoso que imagina ter sido, ou, então, será confrontado com a criança recalcada e, então, vai contra-transferir. Ou, ainda, vai esperar que a criança real, restaure nele a criança ideal. E nessa ótica, ele próprio estará numa situação de projeção identificadora e poderá viver, de modo difícil, esta situação (FILLOUX,2002, p. 91, acréscimo nosso).

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LACAN, Jacques. (1966). “Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise”, in Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p. 238-324.

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Referência ao texto de Daniel Hameline, não traduzindo para o português, “Les risques du métier, psychanalyse de l´enseignement”, in Attention! écoles, Paris, Fleures, 1972, no qual o autor, ao retomar a temática de S. Bernfeld, avança na questão sobre o voto pedagógico, a vocação do professor. Hameline defende a ideia de que esta é uma vocação difícil, suspeita, além de fatigante e deprimente, pois por deter a capacidade latente de reativação das neuroses – fator não encontrado em grau semelhante na média das profissões – torna-se uma profissão das mais ameaçadoras psicologicamente, já que pode estar ligada também às perturbações encontradas na conduta da percepção de si mesmo, de outrem ou da vivência dos relacionamentos intersubjetivos.

Sendo assim, caso o educador não tenha feito as pazes com os desejos pulsionais da criança que um dia foi, dificilmente fará de sua atuação profissional algo diferente de um tormento para seus alunos e de gozo para si, pois o contato transferencial e contra- transferencial com estes fará ebulir toda a gama inconsciente que, por estar numa faixa etária numericamente avançada, considera-se adulto e não se priva de exigir da criança real, postada em sua frente, que encarne a criança ideal que ele mesmo não conseguiu cumprir. Em casos assim, não há metodologia de ensino que evite e suture os descompassos que irão surgir no dia a dia desse professor, e/ou educador, ainda que seus alunos estejam esperando por sua intervenção nas ditas e supostamente localizadas zonas proximais de desenvolvimento, ávidos por estímulos que impulsionem sua inteligência a galgar um nível superior nas estruturas cognitivas. Com método ou sem método, a metatransmissão entre inconscientes acontecerá, simplesmente porque é inevitável, ensina a psicanálise. Se em algumas ocasiões esse metatransmitir será aliado do professor, pela via da transferência positiva, em outras poderá em nada ajudar, dificultando ainda mais a tarefa incerta do educar, a transcorrer sempre na via de mão dupla, moebiana, do ensinar e do aprender, a partir do quê não é possível prever as formas de cada sujeito se apropriar daquilo que lhes tenta mostrar corpo e palavra do professor, corpo e palavra do aluno, também. Antecipando o próximo capítulo, a primeira ilustração do pêndulo de educar.

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função materna função paterna

Um doutor

Um doutor veio formado de São Paulo. Almofadinha. Suspensórios, colete, botina preta de presilhas.

E um trejeito no andar de pomba rolinha. No verbo diga-se de logo, usava naftalina. Por caso, era um pernóstico no falar. Pessoas simples da cidade lhe admiravam a pose de doutor. Eu só via o casco. Fomos de tarde no Bar O Ponto. Ele, meu pai e este que vos fala. Este que vos fala era um rebelde adolescente. De pronto, o Doutor falou pra meu pai: Meus parabéns Seo João, parece que seu filho agora endireitou! E meu pai: Ele nunca foi torto. Pintou um clima de urubu com mandioca entre nós. O doutor pisou no rabo, eu pensei. Ele ainda perguntou: E o comunismo dele? Tá quarando na beira do rio entre as capivaras, o pai respondeu. O doutor se levantou da mesa e saiu com seu andar de vespa magoada

Manoel de Barros

No documento A função pendular do educador (páginas 154-161)