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O ensino arquitetônico no âmbito do modelo oficinal

PROFISSÃO DE ARQUITETO

4.2 O ENSINO ARQUITETÔNICO NO BRASIL COLONIAL

4.2.3 O ensino arquitetônico no âmbito do modelo oficinal

O sistema de Corporações de Ofício existiu no Brasil desde fins do primeiro século do período colonial, vindo de Portugal onde começou a funcionar no final do Quatrocentos. Pois, “[...] ao contrário do que ocorreu por toda a Europa, as ‘corporações’ em Portugal são muito tardias”, sendo o primeiro registro de uma delas apenas de 1489. (FONTES, 2011).

Mas foi somente no início do século XVII que surgiriam várias confrarias de ofícios mecânicos104 nas principais cidades brasileiras da época. Teriam

[...] sido os padres da Companhia de Jesus os fundadores das Confrarias dos Oficiais Mecânicos – em Olinda e em Salvador em 1614, e no Rio de Janeiro em 1615 –, confrarias que funcionavam junto a seus colégios, nas quais um padre da Companhia exercia o cargo de Prefeito da Confraria. (TELLES, 1988, p. 04).

Nas oficinas existentes nos colégios jesuítas “[...] os irmãos-oficiais exerciam e ensinavam ofícios ligados a atividades de carpintaria, ferraria e de construção de edifícios.” (SCHLEE, 2010, p. 32).

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A confraria era um tipo particular de corporação organizada sob a bandeira de um santo, que seria o seu padroeiro – Bandeira do Bem aventurado San José, dos officiaiz dos carpinteiros e pedreiros

desta Cidade de Lisboa; Bandeira do Gloriozo S. Joze e sua Confraria erecta na See Cathedral da Cide. da Bahia; Meza dos Officios de Pedreiros e Carpinteiros da Bandeira do Patriarcha San José do

Rio de Janeiro, entre outras. “As confrarias representavam a associação de pessoas do mesmo

ofício. Os confrades permaneciam sob a ‘proteção’ de um santo especialmente escolhido. Os trabalhadores da construção ficavam sob a bandeira de São José.” (SCLHEE, 2010, p. 32). Caracterizavam-se, particularmente pela obrigação que tinham de sair em procissões nos dias de celebração aos santos e outras datas festivas, quando ostentavam os estandartes e insígnias de seus padroeiros. (TELLES, 1988). Teria sido em torno dessas bandeiras que os ofícios mecânicos se organizaram ao longo do século XVII e do XVIII, tanto na Metrópole como na colônia. Os ofícios mecânicos (ou arte mecânicas) eram aqueles de caráter estritamente técnico e utilitário e se relacionam às atividades manuais – pedreiros, canteiros, montadores, carpinteiros, entalhadores etc. Se opõem às artes liberais, que eram aquelas consideradas de nível intelectual. Para maiores detalhes ver Seção 2 desta tese.

Ainda que a função principal das corporações de ofícios fosse controlar a prática das atividades mecânicas, a formação profissional também ocupava um lugar de destaque em seus regimentos.105

Nestes regimentos toda a atividade profissional estava, por vezes, minuciosamente regulamentada. A formação profissional ocupava neles um lugar central, fixando-se desde as condições para a admissão dos aprendizes, o número dos que podiam trabalhar em cada tenda, o modo em que se efetuaria a ascensão destes a oficiais, e destes últimos a mestres, assim como as condições que teriam que respeitar para poderem abrir novas tendas ou oficinas. Nada de significativo para a atividade profissional era deixada ao acaso. (FONTES, 2011).

A formação desses profissionais no âmbito das corporações – frequentemente associada à estrutura familiar, onde pais ensinavam a filhos, tios a sobrinhos etc. (GUTIERREZ, 1992) – invariavelmente obedecia a um rito, constituído de três etapas básicas e bem distintas: a aprendizagem, a passagem a oficial e a obtenção do grau de mestre.

A duração da aprendizagem variava em função da especialidade desejada, da idade – geralmente em torno dos treze ou catorze anos – em que o aprendiz iniciava seus estudos e, eventualmente, de sua experiência prévia. (SCHLEE, 2010). O aprendizado era completamente empírico, realizado na oficina do mestre ou no canteiro, e voltado muito mais à realização concreta de obras do que à especulação teórica. Era também absolutamente personalista, onde o mestre transmitia aquilo de que tinha experiência, o que estava comprovado através do sistema de ensaio-erro-conexão, havendo pouco espaço para a inovação.

Concluída a aprendizagem, isto deveria ser comunicado aos representantes da corporação, onde o aprendiz estaria apto a tomar assento como oficial não examinado. (TELLES, 1988). Este deveria permanecer nesta categoria, ainda trabalhando junto a um mestre do ofício, mas já na condição de oficial, por um período de tempo – seis anos ou mais – após o que poderia solicitar o seu exame.

Os exames eram práticos e não especulativos, geralmente consistindo em elaborar tarefas através das quais o candidato pudesse demonstrar perante os juízes sua habilitação para atuar como mestre do ofício em questão, devendo, às

105 “Em 1572, D. Sebastião ordenou a Reforma dos diversos Regimentos dos ofícios mecânicos,

cabendo a tarefa ao licenciado Duarte Nunes Leão, que neste ano publica o Livro dos Regimentos dos Officiaes Mecanicos da Mui Excelente e sempre Leal Cidade de Lisboa” (FONTES, 2011), que desde então passou a ser a base para todos os novos regimentos, e cujos dispositivos seriam obrigatórios tanto em Portugal como nas colônias.

vezes, também responder a um questionário versando sobre assuntos ligados à profissão.106Sendo considerado apto, o oficial fazia jus a uma “carta de exame” que,

registrada na Câmara correspondente, valeria como “licença” para o trabalho profissional e, nesta condição, o faria passar à condição de mestre, podendo exercer o ofício por conta própria e ter seus próprios aprendizes. Pelo regimento, o número de aprendizes estaria limitado a dois, ao mesmo tempo. Entretanto, nem sempre esta regra foi respeitada, tendo havido casos de mestres terem sido multados por terem cinco, seis ou até mais aprendizes. Deste aprendizado e da prática profissional posterior, era comum no Brasil – como também o era em Portugal – que alguns mestres de ofício se destacassem pela sua capacidade de elaborar projetos (“riscos”) e, por esta via, muitos foram reconhecidos como escultores e arquitetos.

As corporações não chegaram a ter no Brasil o mesmo desenvolvimento que tiveram em Portugal, em grande medida devido à presença do trabalho de escravos, que não tinham os mesmos direitos dos artesãos livres. Inclusive era vetado aos negros, pardos ou índios atingirem a condição de mestres, proibição esta que nem sempre foi levada em consideração, visto que alguns cidadãos de origem africana, pelo prestígio alcançado a partir do reconhecimento de seu trabalho, vieram a atingir o mais alto nível da hierarquia corporativa, entre estes o mestre Antonio Francisco Lisboa (o Aleijadinho), o Mestre Valentim e o mestre Manuel da Cunha. (SCHLEE, 2010).

Existem, ainda, registros de que, nos principais canteiros de obras do Brasil colonial, lições práticas de Arquitetura – como também era conhecida essa forma de aprendizagem – foram realizadas informalmente pelos empreiteiros encarregados da execução das mesmas. Entre estas merecem especial referência as ministradas por um mestre de origem negra chamado Manuel Francisco Lisboa (tido como o pai do Aleijadinho), em Vila Rica, durante boa parte do Setecentos. Citem-se igualmente as lições ministradas a partir das obras projetadas e executadas por José Fernandes Pinto Alpoim, também em Vila Rica, mais ou menos neste mesmo período. (BUENO, 2003).

Este sistema se desenvolveu durante todo o século XVII e boa parte do XVIII, mas nas últimas décadas deste último começou a declinar. Era um sistema

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No caso das atividades ligadas à construção, “[...] os obreiros, durante o exame, geralmente apresentavam para análise e crítica uma obra já executada ou uma maquete de um projeto não edificado (o trabalho era então denominado obra prima).” (SCHLEE, 2010, p. 32).

muito avesso à inovação, afeito a privilégios para os seus mestres e que sempre dificultava a expansão da atividade e a instalação de novos profissionais.

Por esta razão, o sistema corporativo se mostrou incompatível com as novas demandas advindas do processo de industrialização e urbanização, já bastante avançado nas décadas finais do Setecentos. Nessa nova realidade, fazia- se necessário um novo modelo, voltado para o aumento da escala da produção, para a inovação técnico-científica do processo produtivo e para o aumento da produtividade do trabalho. Neste contexto, as reformas liberais no último quartel do século XVIII e no primeiro do XIX, extinguiram as corporações de ofício tanto no continente europeu como no americano.

No Brasil elas foram extintas pela Constituição Imperial de 1824, que pôs fim a duzentos e cinquenta anos de história dessas corporações em território nacional. Seguiram-se cerca de três décadas sem que houvesse qualquer forma regular de treinamento desses profissionais no país, durante o qual o aprendizado dos mesmos foi totalmente informal e fora de qualquer controle oficial, até o surgimento dos liceus de artes e ofícios na segunda metade do Oitocentos.