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2. Revisão da Literatura

2.2. O Contexto Brasileiro

2.2.3. O Estatuto da Cidade

Antes de passar ao escrutínio de qualquer questão relacionada ao Estatuto da Cidade é importante entender o seu significado. Há um consenso em torno de que é um marco legal, uma norma geral. Contudo, essa resposta jurídica serve prioritariamente para definir o alcance e a limitação desse instrumento, mas não exprime seu significado. Há uma questão anterior mais essencial que a precede.

O Estatuto da Cidade, antes de qualquer coisa, é uma conquista da sociedade brasileira. Especialmente, uma novidade que se deve ao movimento pela reforma urbana, uma frente formada por profissionais da área de planejamento urbano e uma série de movimentos populares ligados às questões urbanas (RIBEIRO e CARDOSO, 2003). Essa frente obteve uma vitória significativa ao inserir o capítulo da reforma urbana (artigo 182 e183) na Constituição Federal de 1988. Esse capítulo diz que a cidade e a propriedade devem cumprir sua função social, bem como obriga a regularização fundiária. Como conseqüência de sua ação, doze anos mais tarde o capítulo da reforma urbana acabou por ser regularizado pela lei conhecida como Estatuto da Cidade, Lei 10.257 (BRASIL, 2001). Portanto, o Estatuto da Cidade é um marco legal que representa um movimento político-técnico que busca uma alternativa ao modelo de urbanização segregador tradicional brasileiro.

Ao se observar atentamente esse arrazoado é possível perceber os indícios de uma visão de mundo pós-iluminista. Em primeiro lugar o processo de elaboração do Estatuto da Cidade foi um ato democrático com participação direta envolvendo atores, antes excluídos do processo de urbanização, e planejadores urbanos que não compartilhavam da concepção corrente no planejamento urbano tradicionalmente empregado no país. Houve um ato político expresso por essa tomada de decisão coletiva contra a urbanização tradicional excludente. Isso significa dizer que a própria natureza política da criação do Estatuto da Cidade é intrinsecamente uma forma de ruptura em relação à visão de mundo iluminista e aos modelos de planejamento urbano associados. Decorre daí um segundo aspecto digno de nota: a natureza da urbanização proposta não poderia estar vinculada a este modelo tradicional, ela nasce inclusiva e participativa. Esses são valores pós-iluministas.

A vinculação entre a visão de mundo pós-iluminista e o Estatuto da Cidade fica ainda mais evidente ao se explorar as implicações da inclusão de atores no processo desde a concepção do Estatuto da Cidade até os valores inclusivo e participativo que o ele propõe para urbanização.

Vêem-se aqui diversas vozes que compõem os movimentos sociais em busca de legitimação, processo consistente com o pós-iluminismo, onde se vê a narrativa científica e seu jogo de linguagem descritivo deixando de ser hegemônicos frente às pequenas narrativas que surgem e confrontam esse discurso. Assim, a participação política desses grupos tende a sair de uma condição marginal e se legitima na disputa pelos espaços urbanos. Com isso, há um aumento da ambigüidade e complexidade envolvida nesse processo, como descreve Boaventura de Souza Santos (2006) acerca dos fenômenos contemporâneos.

Rittel (1972) já percebe o aumento de complexidade na compreensão da natureza do planejamento urbano, algo que descreve com seus problemas maliciosos. Agora haveria uma incerteza que advém da complexidade, desse vir a ser, que não permite uma prescrição segura, como uma solução única em um futuro determinado. Enfim, essa complexidade é uma espécie de indicador de uma nova percepção de como seriam essas realidades contemporâneas em que se vive, onde a política e a participação pública nas decisões têm um papel central. Assim, não parece incorreto admitir que essa visão de mundo, cuja ontologia descreve a realidade como complexa, conduza a uma modalidade de planejamento urbano essencialmente político, participativo, inclusivo, em que as pequenas narrativas em busca de legitimação têm espaço para manifestar-se. Essa complexidade é precisamente o que o Estatuto da Cidade traz para o planejamento urbano brasileiro, já em seu processo de criação que envolve narrativas diversas.

Há outro tipo de análise a ser desenvolvida: a do texto da Lei. Essa análise resulta em meio mais sistemático de confirmar se há uma visão de mundo complexo que orienta uma modalidade de teoria política do planejamento urbano. O texto da Lei está dividido em cinco capítulos (BRASIL, 2001), são eles: Diretrizes Gerais, Dos Instrumentos da Política Urbana, Do Plano Diretor, Da Gestão Democrática e Disposições Gerais.

Caso se detenha nas diretrizes (capítulo 1), pode-se afirmar que a função social da cidade e da propriedade é o objetivo geral da política urbana. Para exemplificar como as diretrizes tornam menos abstrato o que se entende por função social, basta verificar as duas primeiras diretrizes, das dezesseis que o Estatuto possui: o direito a cidades sustentáveis e a gestão democrática (BRASIL, 2001). Essas duas diretrizes orientam a democratização do acesso à cidade e participação in totem da sociedade em processos que afetem a sua vida cotidiana ou futura (outras diretrizes seguem reforçando a tônica do interesse coletivo acima do individual). Todas essas diretrizes apontam para a necessidade de mediações que visem equilibrar as chances de acesso a terra urbanizada da cidade e suas amenidades às populações segregadas.

Há uma visão no Estatuto que tende a privilegiar as diferenças, no sentido de que traz voz aos diversos grupos que compõem a sociedade, além de incentivar a negociação equilibrada entre os atores. Parece haver evidências suficientes para afirmar que o discurso descritivo da ciência iluminista, bem como suas soluções generalizáveis a todos, não é suficiente para atender a essas condições. Além disso, é possível entender um pouco mais o que significa a realidade complexa com a qual se está lidando. Ela é construída socialmente por meio de mecanismos de participação que são focados nos fins a que o planejamento urbano se propõe atingir: é um planejamento urbano em essência relacional e político.

Outra novidade do Estatuto são os instrumentos e o papel que passam a ter os planos diretores (capítulos 1 e 2). O Estatuto da Cidade traz meios para atingir aos fins que se propõe. Isso é um tanto paradoxal por se tratar de uma norma geral ao mesmo tempo em que deve deixar espaço para as características locais em sua aplicação. A solução do dilema está na vinculação dos instrumentos à elaboração de planos diretores participativos no âmbito da esfera municipal. De qualquer forma, isso revela algo relevante. O Estatuto da Cidade poderia ser apenas uma carta de princípios ou de diretrizes segundo os moldes das cartas iluministas. No entanto, busca com seus instrumentos aplicar suas diretrizes de modo flexível e ajustável às municipalidades. Portanto, leva em consideração o contexto local e, ao fazer isso, demonstra uma preocupação com a implantação ou com a prática do planejamento urbano. Como conseqüência prepara a gestão do planejamento urbano. Isso não significa que seja capaz de atender a toda a gama de situações existentes em um país tão diverso como o Brasil, mas revela uma preocupação inédita no planejamento urbano brasileiro em fazê-lo.

Os dois últimos capítulos são os de Gestão Democrática e a Disposições Gerais e não são assunto direto do escopo desta tese9. Mesmo assim, vale lembrar que a Gestão Democrática é agora um processo contínuo que envolve o ato de planejar ao criar as condições para que esse se efetive, procedendo, quando necessário, a ajustes.

Esse arrazoado não esgota o assunto, mas serve para apresentar alguns dos valores importantes contidos no entendimento do que deva ser o planejamento urbano político, ou seja, deve ser: participativo na definição de todas as etapas do planejamento, especialmente dos fins do plano diretor participativo, entendido como dando voz a todos os envolvidos; promover um ambiente sustentável; orientar a prática do planejamento, dando condições para sua gestão democrática.

9

Aqui se vale da distinção feita por Souza (2003) na qual há uma diferenciação entre planejamento e gestão. Grosso modo, caberia ao primeiro organizar uma situação futura ou apontar uma direção e ao segundo garantir no dia-a-dia os passos que levam a esse futuro ou direção.