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O Estatuto da Criança e do Adolescente e a prática infracional

(IM)POSSIBILIDADE DA AÇÃO

7. INFRAÇÃO – O ATO NA (IM)POSSIBILIDADE DA AÇÃO

9.1. O Estatuto da Criança e do Adolescente e a prática infracional

O Estatuto dispõe sobre adolescentes que são acusados de cometerem atos infracionais. No Livro II, Título III – Da Prática de Ato Infracional, afirma o que considera como ato infracional e regula a idade penal:

Art. 103. Considera-se ato infracional a conduta descrita como crime ou contravenção penal.

Por esse artigo percebe-se que o estatuto se baseia no código penal descrito para a população acima dos 18 anos. Classifica, portanto, o ato adolescente como o faz com os adultos. Mas adverte que adolescente não pratica crimes e sim ato infracional.

Art. 104. São penalmente inimputáveis os menores de dezoito anos, sujeitos às medidas previstas nesta Lei.

Parágrafo único. Para os efeitos desta Lei, deve ser considerada a idade do adolescente à data do fato.

Esse artigo apresenta um fato importante: apesar de não considerar crime o ato praticado por aqueles que possuem menos de 18 anos, considera que aquele que pratica uma infração deve ser responsabilizado.

Art. 105. Ao ato infracional praticado por criança corresponderão as medidas previstas no art. 101 (medidas de proteção).

Nos artigos 106 a 111, prevê os direitos individuais e as garantias processuais dos adolescentes acusados de autoria de ato infracional. Porém, como descreve Roman (2007.p. 46 e seguintes), as garantias processuais nem sempre são cumpridas.

Dos artigos 112 a 128 dispõe sobre as medidas socioeducativas. Essas são as medidas apresentadas pela lei para responsabilizar o adolescente sobre os seus atos. Elas se baseiam na educação e ressocialização.

Vale ressaltar alguns pontos. As medidas socioeducativas são:

Art. 112 - advertência; obrigação de reparar o dano; prestação de serviços à comunidade; liberdade assistida; inserção em regime de semiliberdade; internação em estabelecimento educacional; qualquer uma das previstas no art. 101, I a VI (medidas de proteção).

§ 1º A medida aplicada ao adolescente levará em conta a sua capacidade de cumpri-la, as circunstâncias e a gravidade da infração.

§ 2º Em hipótese alguma e sob pretexto algum, será admitida a prestação de trabalho forçado.

Na prática, o que ocorre atualmente é que os adolescentes que cumprem uma medida socioeducativa de internação vivenciam o dia-a-dia do cárcere adulto.

Art. 114. A imposição das medidas previstas nos incisos II a VI do art. 112 pressupõe a existência de provas suficientes da autoria e da materialidade da infração, ressalvada a hipótese de remissão, nos termos do art. 127.

Estar acompanhado dos pais ou responsáveis no ato da audiência, freqüentar escola e possuir trabalho são atenuantes na decisão do juiz em relação a qual medida socioeducativa impor ao adolescente.

Art. 121. A internação constitui medida privativa da liberdade, sujeita aos princípios de brevidade, excepcionalidade e respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento.

Art. 122. A medida de internação só poderá ser aplicada quando:

I - tratar-se de ato infracional cometido mediante grave ameaça ou violência a pessoa;

II - por reiteração no cometimento de outras infrações graves;

III - por descumprimento reiterado e injustificável da medida anteriormente imposta.

§ 1º O prazo de internação na hipótese do inciso III deste artigo não poderá ser superior a três meses.

§ 2º. Em nenhuma hipótese será aplicada a internação, havendo outra medida adequada.

Art. 123. A internação deverá ser cumprida em entidade exclusiva para adolescentes, em local distinto daquele destinado ao abrigo, obedecida rigorosa separação por critérios de idade, compleição física e gravidade da infração.

Parágrafo único. Durante o período de internação, inclusive provisória, serão obrigatórias atividades pedagógicas.

Pelo relato de Trassi (2006) verifica-se que o Estatuto vem sendo sistematicamente descumprido pelos órgãos responsáveis pelo cumprimento da medida socioeducativa de internação.

Art. 124. São direitos do adolescente privado de liberdade, entre outros, os seguintes:

I - entrevistar-se pessoalmente com o representante do Ministério Público;

II - peticionar diretamente a qualquer autoridade; III - avistar-se reservadamente com seu defensor;

IV - ser informado de sua situação processual, sempre que solicitada; V - ser tratado com respeito e dignidade;

VI - permanecer internado na mesma localidade ou naquela mais próxima ao domicílio de seus pais ou responsável;

VII - receber visitas, ao menos, semanalmente; VIII - corresponder-se com seus familiares e amigos;

IX - ter acesso aos objetos necessários à higiene e asseio pessoal;

X - habitar alojamento em condições adequadas de higiene e salubridade;

XI - receber escolarização e profissionalização;

XIII - ter acesso aos meios de comunicação social;

XIV - receber assistência religiosa, segundo a sua crença, e desde que assim o deseje;

XV - manter a posse de seus objetos pessoais e dispor de local seguro para guardá-los, recebendo comprovante daqueles porventura depositados em poder da entidade;

XVI - receber, quando de sua desinternação, os documentos pessoais indispensáveis à vida em sociedade.

§ 1º Em nenhum caso haverá incomunicabilidade.

§ 2º A autoridade judiciária poderá suspender temporariamente a visita, inclusive de pais ou responsável, se existirem motivos sérios e fundados de sua prejudicialidade aos interesses do adolescente.

Art. 125. É dever do Estado zelar pela integridade física e mental dos internos, cabendo-lhe adotar as medidas adequadas de contenção e segurança.

Os relatos dos jovens entrevistados demonstraram que, nem sempre, receberam o tratamento adequado ao seu desenvolvimento e o que está previsto em lei.

Das Entidades de Atendimento

Art. 94. As entidades que desenvolvem programas de internação têm as seguintes obrigações, entre outras:

I - observar os direitos e garantias de que são titulares os adolescentes; II - não restringir nenhum direito que não tenha sido objeto de restrição na decisão de internação;

III - oferecer atendimento personalizado, em pequenas unidades e grupos reduzidos;

IV - preservar a identidade e oferecer ambiente de respeito e dignidade ao adolescente;

V - diligenciar no sentido do restabelecimento e da preservação dos vínculos familiares;

VI - comunicar à autoridade judiciária, periodicamente, os casos em que se mostre inviável ou impossível o reatamento dos vínculos familiares;

VII - oferecer instalações físicas em condições adequadas de habitabilidade, higiene, salubridade e segurança e os objetos necessários à higiene pessoal;

VIII - oferecer vestuário e alimentação suficientes e adequados à faixa etária dos adolescentes atendidos;

IX - oferecer cuidados médicos, psicológicos, odontológicos e farmacêuticos;

X - propiciar escolarização e profissionalização;

XII - propiciar assistência religiosa àqueles que desejarem, de acordo com suas crenças;

XIII - proceder a estudo social e pessoal de cada caso;

XIV - reavaliar periodicamente cada caso, com intervalo máximo de seis meses, dando ciência dos resultados à autoridade competente;

XV - informar, periodicamente, o adolescente internado sobre sua situação processual;

XVI - comunicar às autoridades competentes todos os casos de adolescentes portadores de moléstias infecto-contagiosas;

XVII - fornecer comprovante de depósito dos pertences dos adolescentes; XVIII - manter programas destinados ao apoio e acompanhamento de egressos;

XIX - providenciar os documentos necessários ao exercício da cidadania àqueles que não os tiverem;

XX - manter arquivo de anotações onde constem data e circunstâncias do atendimento, nome do adolescente, seus pais ou responsável, parentes, endereços, sexo, idade, acompanhamento da sua formação, relação de seus pertences e demais dados que possibilitem sua identificação e a individualização do atendimento.

Pelo exposto verifica-se que o ECA determina como devem ser cada uma das medidas socioeducativas e em quais circunstâncias devem ser aplicadas. Todas as medidas devem contar com o propósito de promover o desenvolvimento do adolescente; garantir sua integridade física, moral e psicológica; responsabilizá-lo por seus atos; garantir que estejam regularmente matriculados em estabelecimento oficial de ensino e freqüentem as aulas; entre outras.

Apesar do Estatuto definir cada uma das medidas socioeducativas e as circunstâncias que devem ser aplicadas, ele não detalha como as instituições e os poderes legislativos e executivos de cada instância da federação devem executar suas determinações. Para isso foi criado pelo conjunto da sociedade (Estado e Sociedade Civil Organizada) – o SINASE – Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo - que proporciona diretrizes nacionais para o cumprimento do que é previsto no Estatuto da Criança e do Adolescente.

O SINASE é um Projeto de Lei que foi enviado ao Congresso Nacional e serve para regulamentar a execução das medidas destinadas ao adolescente, em razão do cometimento de ato infracional.

Pelo texto do SINASE:

Entende-se por Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo o conjunto ordenado de princípios, regras e critérios, de caráter jurídico, político, pedagógico, financeiro e administrativo, que envolvem o processo de apuração de ato infracional e de execução de medida socioeducativa, incluindo-se, nele, o sistema nos níveis estaduais, distrital e municipais, bem como todos os planos, políticas e programas específicos de atenção ao adolescente infrator.32

O ECA necessita de delimitações como o SINASE propõe, mas também precisa desvincular as infrações com os artigos do código adulto e as medidas socioeducativas com as penas.

Importante lembrar que o ECA não está sendo totalmente aplicado. Nem em relação às condições fundamentais de existência – moradia, saúde, educação etc – nem em relação ao que se determina para a execução das medidas socioeducativas.

As unidades de internação deveriam ser unidades pequenas, com espaço físico adequado e propostas pedagógicas condizentes com o desenvolvimento do adolescente, com atendimento personalizado, oferecendo um ambiente de respeito e dignidade. Mas apesar disso existem ainda diversas unidades que não se adequaram ao necessário.

Hoje em dia eu não sei como que está [a Febem], que deve ter mudado

algumas coisas, mas eu acho que está do mesmo jeito, do jeito que estava... a gente mal chegava, a gente já apanhava, entendeu? A gente já apanhava e como você vai se recuperar num lugar que você já chega apanhando... (Lucas)

32 Projeto de Lei sobre os sistemas de atendimento socioeducativo. (em tramitação no Congresso

Nacional). Disponível em: <http://www.mj.gov.br/sedh/ct/spdca/atendimentosocioeducativo/ PROJETODELEIMEDIDASOCIOEDUCATIVAFINAL >. Acesso em: 21 nov 2006. No dia 12 de julho de 2007 chegou à Câmara Federal o projeto de lei que regulamenta o Sistema Nacional de

Atendimento Socioeducativo (Sinase) . O projeto foi entregue ao presidente da Câmara, deputado Arlindo Chinaglia (PT-SP).

Lucas tem dúvidas de como está a Febem atualmente, mas infelizmente as notícias não são animadoras nem para São Paulo, nem para outros estados do país.

O Conselho Federal de Psicologia (CFP) e a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) realizaram a Inspeção Nacional às unidades de Internação dos Adolescentes em Conflito com a lei. Foram visitadas, simultaneamente no dia 15/03/2006, unidades de internação em 22 estados e distrito federal. “O objetivo era avaliar os níveis de efetivação dos direitos deferidos aos jovens nesta condição, denunciar as violações, suscitar o debate e propor ações”.

As inspeções constataram que havia uma enorme gama de variações nos atendimentos oferecidos a esses jovens, mas em comum, encontraram irregularidades na efetivação das propostas socioeducativas, na adequação dos espaços físicos, no atendimento oferecido aos adolescentes como preconiza o ECA, entre outras irregularidades33.

Atualmente, cada estado ou município da Federação efetiva de maneira diversa as medidas socioeducativas. Por exemplo, o ECA e o SINASE determinam que as medidas socioeducativas de prestação de serviço à comunidade e de liberdade assistida devem ser coordenadas pelos municípios, porém, 60% das capitais ainda não contavam com a municipalização das medidas de meio aberto34.

Além das irregularidades presentes nas instituições responsáveis pelo oferecimento da medida socioeducativa de internação, existem outras distorções. Os juízes não seguem um padrão estabelecido nas suas orientações. Há razões subjetivas influenciando as determinações judiciais das medidas socioeducativas. As audiências lembram uma sessão de bronca, mostrando que os juízes consideram que esta deveria ter sido dada pelo pai e que, por falha na

33 Um Retrato das Unidades de Internação dos Adolescentes em Conflito com a Lei – Ação conjunta

CFP/OAB – Disponível em: <http://www.pol.org.br/publicacoes/pdf/relatoriocaravanas.pdf> Acesso em: 05 dez 2006

34 Conforme informações da Secretaria Especial de Direitos Humanos – Disponível em:

<http://www.mj.gov.br/sedh/ct/noticias-Anexo/apresentacaodolevantamentoconsolidado.doc > Acesso em: 21 nov 2006.

educação oferecida pela família do adolescente, quem estaria exercendo esse papel seria ele próprio.

Segundo o Instituto Latinoamericano das Nações Unidas para a Prevenção do Delito e Tratamento do Delinqüente (ILANUD): (ALMEIDA.; HOJDA; KAHN; SPOSATO. 2002) “Frequentemente os registros oficiais refletem os preconceitos do sistema de justiça criminal com relação a certos grupos, como negros, moradores de rua, moradores da periferia e do sexo masculino e até mesmo adolescentes em situação de risco”.

Os juízes, ao exercerem sua função, longe de serem imparciais e neutros, fazem parte da história da nossa sociedade, reproduzindo em atos o que o imaginário social conforma.

[...] pois o que justifica a administração do sofrimento ao infrator é sua imagem socialmente construída como encarnação descontextualizada do mal, contra o qual a sociedade pode extravasar sua crueldade [...] (ROMAN. 2007. p.65)

A pesquisa [ADORNO; LIMA; BORDINI; 1999] mostrou que a aplicação do ECA pelo judiciário pode contribuir para a pouca credibilidade desta lei na medida que abranda as sanções para crimes graves. Considera-se que para a lei ganhar legitimidade na opinião pública, seu uso deveria ser absolutamente rigoroso sem o viés político-ideológico em sua aplicação, o que por um lado garantiria a igualdade de todos os cidadãos perante a lei e, por outro, a responsabilização de todos os adolescentes envolvidos com a prática do ato infracional, tal como preconiza o ECA. (TRASSI. 2006. p. 168)

Apesar do que determina a lei, o Juiz decide pessoalmente sobre a vida dos adolescentes. Não há defensor desde o início do processo, pelo menos os jovens entrevistados não relatam nada sobre isso.

Há uma lógica da moralização para fazer com que o adolescente sinta vergonha e arrependimento e seja punido pelo ato praticado, fato que pode ser interpretado pela constante utilização da medida de internação pelas Varas Especiais da Infância e Adolescência.

O sistema de justiça brasileiro e a população em geral acreditam que impingir punições a quem comete delitos tem a intenção de fazer sofrer aquele

que transgrediu uma regra, além de amedrontar aquele que pensa em fazer o mesmo.