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Siglas e Acrónimos

1.2. Paradigmas de enquadramento

1.2.2 O Modelo Salutogénico e a Qualidade de Vida

O modelo salutogénico de abordagem dos processos de saúde- doença e a qualidade de vida são conceitos já não emergentes, mas que estão a sedimentar-se fortemente nos esquemas conceptuais

adoptados pelos profissionais da saúde e pelos organismos

responsáveis pelo delineamento das políticas da saúde, com linhas de investigação cada vez mais produtivas e referências cada vez mais presentes30,4.

1.2.2.1 O Modelo Salutogénico

Na compreensão da pessoa e dos processos saúde-doença é fulcral reconhecer a interligação e interacção dinâmica dos vários sistemas auto-regulados que neles intervêm: bioquímico, celular, fisiológico, psicológico, social, histórico, ambiental, político, cultural… Os fenómenos de saúde e doença resultarão mais destas interacções do que da disfunção de componentes isolados31,3. Por sua vez, saúde

e doença, em vez de elementos distintos, fazem parte de um mesmo continuum multidimensional saúde-doença, no qual cada pessoa está situada e nele progredindo ou regredindo em relação aos seus

pólos32,33.

Este é o modelo salutogénico, uma concepção positiva e

complementar da fornecida pelo modelo patogénico prevalecente. No modelo patogénico doença e saúde aparecem dicotomicamente separadas34 e o corpo humano surge como uma organização

mecanicista que mantém a homeostasia através de mecanismos de regulação que podem ser comprometidos pela acção de “stressores” e lesado, aguda, crónica ou letalmente32,34; a enfâse é colocada nas

causas da doença, nos factores de risco e nos efeitos de doenças particulares, tentando encontrar-se os meios do seu controlo.

O modelo salutogénico (origens da saúde) assume que os

“stressores” são omnipresentes e nunca poderão ser completamente anulados. Considera o ser humano num estado de desequilíbrio dinâmico, importando centrar a atenção nos factores envolvidos no posicionamento da pessoa no continuum, rumo ao extremo saúde33.

Este modelo rejeita a classificação dicotómica pessoas saudáveis - pessoas doentes e tenta superar o poder redutor da etiologia da doença, considerando a experiência totalizadora da vida da pessoa. Importa investigar quais os factores que, num ambiente de

“stressores”, permitem uma resposta favorável à saúde – quais os factores de saúde32,34.

A resposta de A. Antonovsky, principal teórico do modelo

salutogénico, está no que chamou de recursos gerais de resistência – ego, poder, dinheiro, auto-estima, inteligência, conhecimento,

educação, orientação para a prevenção, estabilidade cultural,

suporte social... Estes recursos gerais de resistência proporcionam mais meios para fazer face aos desafios que surgirem e levam a

experiências de vida que podem estruturar um sentido interno de coerência ou sentido de coerênciaiii robusto, uma maneira de fazer

face ao mundo que facilita a adaptação com sucesso aos

“stressores” do dia-a-dia32,30. O sentido de coerência é visto como

uma orientação global, uma atitude que mede o modo como as pessoas encaram a vida e, em situações de stresse, identificam e usam os seus recursos gerais de resistência para manter ou

desenvolver a sua saúde30. O sentido de coerência define a

capacidade que um indivíduo, com um persistente e dinâmico sentimento de confiança, tem para encarar os estímulos intrínsecos (do próprio - aspirações, necessidades, medos…) ou extrínsecos (dos contextos da família, do trabalho, da sociedade,…) como

estruturados, previsíveis e explicáveis (a dimensão da

compreensibilidade), considerando ter ao seu alcance os recursos para satisfazer as exigências colocadas por esses estímulos (a dimensão da maneabilidade) e sendo essas exigências encaradas como desafios, que merecem o seu investimento e empenho (a dimensão da significabilidade)30,34. Este sentido de coerência vai

sendo estruturado ao longo da vida de cada um e pode evoluir e ser alvo de tentativas de melhoriaiv. A. Antonovsky defendia que a

robustez do sentido de coerência é influenciada por três experiências de vida diferentes – consistência, avaliação positiva-negativa que cada um faz da sua vida e participação em decisões consideradas socialmente importantes. Estas experiências são moldadas pela posição de cada um na estrutura familiar e social, pela própria cultura, pelo trabalho que tem, sexo, etnia, genética,...32 . A grande

implicação para os conceitos de saúde é que a orientação que cada um confere à sua vida tem um impacto na sua saúde30; o que significa

que os indivíduos têm de ser capazes de identificar e compreender as suas aspirações, assim como satisfazer as suas necessidades e lidar com o ambiente em que vivem; este processo proporciona não só adaptação ao stresse, mas também a flexibilidade e a capacidade para identificar e usar os recursos gerais de resistência.

A. Antonovsky era um sociólogo e considerava o

desenvolvimento de um forte sentido de coerência em todos os indivíduos uma responsabilidade social30. Alguns autores consideram

mesmo que o sentido de coerência é um factor promotor de

equidade ao proporcionar uma melhor capacidade de adaptação35

e que poderia ser alvo de tentativas de estruturação nomeadamente no sistema educativo.

Esta abordagem salutogénica pode ser transferida da dimensão individual para grupos, organizações, sistemas ou políticas30,35:

• centrando as definições e concepções naquilo que lhes é

nuclear e singular e menos no que o não é e no que os distingue dos outros (a dimensão da compreensibilidade);

• disponibilizando os meios para se compreender a sociedade, os sistemas, as organizações, a actividade de cada um e dos outros, as

problemáticas com que se tem que lidar , integradas no seu contexto (a dimensão da compreensibilidade);

• realçando os pontos positivos e as oportunidades tanto como os pontos negativos e as ameaças, evidenciando os recursos, próprios, da organização, do sistema, da sociedade que podem ser actividos e como (a dimensão da maneabilidade);

• apostando em estratégias que orientem rumo ao pólo positivo/saúde (a dimensão da maneabilidade);

• desenvolvendo e reforçando os recursos gerais de resistência, favorecendo a adaptação com sucesso (a dimensão da

maneabilidade);

• evidenciando a importância de assumir com empenho e perseverança uma finalidade, um objectivo, uma acção (a dimensão da significabilidade).

1.2.2.2

A Qualidade de Vida

O termo “qualidade de vida” foi empregue em política pela primeira vez pelo presidente dos Estados Unidos, L. Johnson, em 1964 ao declarar que "os objectivos não podem ser medidos através do balanço dos bancos. Eles só podem ser medidos através da qualidade de vida que proporcionam às pessoas"36. Também na saúde, a

exigência aumentou e os conceitos acompanharam essa evolução. O primado da pessoa total, a complexidade dos sistemas que

influenciam a saúde e objectivos mais ambiciosos do que aliviar sintomas e prolongar a vida, tornaram mais exigente a avaliação de todo o processo dos cuidados de saúde e dos seus resultados4. A

Organização Mundial da Saúde colocou a fasquia bem alta: saúde não é só a ausência de doença, mas o estado de completo bem- estar físico, mental, social e espiritual30 (ou mesmo a definição da

WONCA - Organização Mundial de Médicos de Família - que retirou o “completo” desta definição e o substituiu por um “óptimo” e omitiu a

referência ao espiritual: “um estado de bem-estar físico, mental, e social óptimo e não apenas a ausência de doença ou

enfermidade”37). A saúde surge então como um recurso para a vida

do dia-a-dia e uma importante dimensão da qualidade de vida. A própria noção de promoção da saúde, como apresentada na Carta de Ottawa, descreve um processo que, através da saúde, se propõe alcançar qualidade de vida: é o processo de capacitação das pessoas para aumentar o controlo sobre a sua saúde, e melhorarem- na para alcançarem um estado de bem-estar óptimo e uma vida activa e produtiva.

A contribuir para esta evolução nos conceitos de saúde está igualmente a posição que a satisfação com os cuidados de saúde ocupa como objectivo das organizações de saúde e a crescente importância dos movimentos de consumidores que definem a satisfação destes como um resultado necessário, desligado até da eficácia da intervenção38,39. Esta mudança definiu o contexto

propício para que o conceito de «qualidade de vida” se tornasse incontornável na clínica, na investigação e no planeamento das políticas de saúde. Qualidade de vida é a “percepção do indivíduo quanto à sua situação de vida tendo em conta a cultura, o sistema de valores em que vive e os seus objectivos, expectativas, referências e preocupações” (Organização Mundial da Saúde)40. É um conceito

abrangente, multidimensional colocando ênfase naquilo que é valorizado pela pessoa, nomeadamente em que medida as suas funções físicas, emocionais e intelectuais estão asseguradas e até que ponto é garantida a sua capacidade para participar em actividades tidas como importantes pelo próprio na família, no trabalho e na comunidade41.

A evolução deu-se também na área instrumental, na construção de instrumentos de medida para avaliar este novo conceito. Dois

elemento de referência na área da qualidade de vida e pela menção ao trabalho como elemento importante da qualidade de vida, e o questionário SF-36, novamente pela valorização da área do trabalho e pela sua aceitação e utilização extensas na investigação em qualidade de vida42,43,44,45 mas também pela utilização de uma

das suas questões nesta tese. Utilizou-se a questão referente à auto- avaliação do estado de saúde: “Em geral, diria que a sua saúde é” a responder numa escala ordinal de 5 pontos – Óptima; Muito boa; Boa; Razoável; e Fraca. Aqui importa realçar que a auto-avaliação do estado de saúde tem um valor preditivo na probabilidade de se ficar doente ou de morrer46,47,48 sendo, portanto, uma variável importante a

introduzir para uma avaliação sucinta e global do estado de saúde . 1.2.2.3 A Pessoa, o Modelo Salutogénico e a Qualidade de Vida

Fechando o círculo, foram efectuadas e publicadas em 2006 e 200730,33 , duas revisões sistemáticas dos artigos e dissertações de

doutoramento publicados no período 1992 – 2003 que abordavam os conceitos da salutogénese, do sentido de coerência e as suas

relações com a qualidade de vida e com a saúde. Dos 458

documentos encontrados na busca, foram seleccionados 32 com base nos critérios adoptados, incluindo estudos transversais,

longitudinais e qualitativos.

Como principal conclusão, temos que o sentido de coerência parece ter impacto na qualidade de vida: quanto mais elevado, melhor a qualidade de vida (correlações iguais ou superiores a 0,5 quando se utilizavam instrumentos específicos para medir a qualidade de vida)30. Estudos longitudinais em pessoas com doenças ou

saudáveis confirmaram a validade preditiva do sentido de coerência para uma boa qualidade de vida no futuro não só a nível individual, mas também a nível do sentido de coerência e qualidade de vida familiar. Estas conclusões vão, de certo modo, ao encontro dos

processos que a Carta de Ottawa preconiza para a promoção da saúde e os processos que capacitam a pessoa para alcançar qualidade de vida30.

Na mesma direcção, as relações do sentido de coerência com a saúde auto-percepcionada e principalmente com a saúde mental aparecem fortes na investigação existente, ainda que mais

fortemente nas pessoas com um sentido de coerência mais robusto (para pessoas com um sentido de coerência mais mediano ou mais fraco, a relação não parece ser tão clara)33. O sentido de coerência

parece ter, portanto, um papel moderador ou mediador na

explicação da saúde, ainda que não conseguindo explicá-la por si só33.

Para reforçar estas concepções, foi efectuado um estudo35 numa

província da Finlândia – Aland – que tinha como uma das

características distintivas apresentar índices de saúde superiores aos dos outros países nórdicos assim como uma esperança de vida mais llonga. Esta província tinha um estatuto de maior autonomia do que as outras na Finlândia, uma taxa de desemprego das mais baixas da região e um produto interno bruto per capita mais elevado entre os países nórdicos. Foi efectuada uma amostra representativa do grupo etário 40-70 anos e executado um estudo transversal que mediu o sentido de coerência, a depressão auto-reportada, o estado de saúde auto-percepcionado (numa escala de 5 pontos). O sentido de coerência estava significativa e fortemente relacionado com o estado de saúde auto-percepcionado e com a depressão (quanto maior o sentido de coerência, maior o nível de saúde auto-avaliado e menor o grau de depressão) e foram fornecidas indicações de poder ser, igualmente, um bom indicador de saúde mental 35.

Como implicação mais geral de tudo o que foi dito neste capítulo está a possibilidade de desenvolver o conceito de saúde,

incorporando a salutogénese e a qualidade de vida: o sentido de coerência é um factor de saúde, influenciando a qualidade de vida. Quanto ao conceito de promoção da saúde, por seu lado, é proposto que se desenvolva para ser entendido como o processo de capacitar indivíduos, grupos ou sociedades para aumentar o controlo e melhorar a sua saúde física, mental, social e espiritual. Isto poderia ser atingido com a criação de sociedades caracterizadas por estruturas e

ambientes capacitadores em que as pessoas estariam aptas a identificar os seus recursos internos e externos, a usá-los e reusá-los para realizar as suas aspirações, satisfazer as suas necessidades, apreender o sentido das coisas e mudar ou adaptar-se ao ambiente de um modo promotor da saúde30.

1.2.2.4 A Pessoa, o Modelo Salutogénico, a Qualidade de Vida, a Qualidade e a Satisfação no Trabalho

O modelo salutogénico pode ser utilizado, como foi visto, na prestação directa de cuidados, mas também na gestão das unidades de saúde. Uma abordagem da satisfação no trabalho neste modelo colocaria a satisfação no trabalho como uma construção assente num continuum satisfação-insatisfação multidimensional dependente do contexto do trabalho e, por outro lado, da singularidade de cada um. O foco estaria nos factores que fazem evoluir a situação de cada trabalhador e de cada organização no sentido de uma maior

satisfação no trabalho; esses factores traduziriam o esforço que tem de ser desenvolvido em três eixos para aumentar o “sentido de coerência”:

• aumentar a compreensão do que é a satisfação no trabalho e do que está em jogo e assim proporcionar um maior controlo cognitivo do trabalho e da satisfação a ele associada,

permitindo apreender, cada vez mais, o que se está a passar em cada momento e em termos gerais (compreensibilidade);

• desenvolver a competência de cada trabalhador e de cada organização na mobilização de recursos endógenos e

exógenos para fazer face ao que é essencial à satisfação no trabalho (maneabilidade); e

• reforçar a atitude de que ter satisfação no trabalho é um

objectivo que merece o empenho de todos e que o esforço de tentar construir uma situação de trabalho mais satisfatória para todas as partes envolvidas é sempre relevante

(significabilidade).

A qualidade de vida de cada trabalhador surge, então, pela sua multidimensionalidade, abrangência e foco na singularidade de cada trabalhador e da sua situação:

• como objectivo de todas as intervenções; e

• como importante indicador associado ao sucesso global das estratégias para melhorar a satisfação no trabalho.

Por seu lado, os modelos que analisam as organizações com indicadores análogos aos da qualidade de vida , multidimensionais, abrangentes, adaptados à realidade das organizações, surgem igualmente como os indicadores a procurar para o objectivo da «qualidade de vida» da organização – as suas efectividade e

eficiência organizacionais. Para esta avaliação, Kreitner et al10 lembra-

nos que não há uma abordagem única que se adeque a todas as circunstâncias e a todos os tipos de organização. O melhor conjunto de critérios deve ser obtido na auscultação de todos as partes

interessadas relevantes da organização em confronto com a missão e valores da organização (ver secção 2).