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Siglas e Acrónimos

1.2. Paradigmas de enquadramento

1.2.1. Teoria da complexidade

1.2.1.1. A Filosofia

A complexidade foi definida por um dos seus principais teóricos, E. Morin, como “um tecidoii de constituintes heterogéneos

inseparavelmente associados”, “o tecido de acontecimentos, acções, interacções, retroacções, determinações, acasos, que constituem o nosso mundo fenomenal”2. Complexidade “à primeira vista, é um

fenómeno quantitativo, a extrema quantidade de interacções e de interferências entre um número muito grande de unidades”, mas “compreende também incertezas, indeterminações, fenómenos aleatórios” tendo “sempre contacto com o acaso”2– é “ a incerteza

no seio de sistemas ricamente organizados”, “uma certa mistura de ordem e desordem, mistura íntima, ao contrário da ordem/desordem estatística, onde a ordem (pobre e estática) reina ao nível das

grandes populações e a desordem (pobre, porque pura

indeterminação) reina nas unidades elementares”2. É uma viragem

das perspectivas epistemológicas: é preciso aceitar uma certa

imprecisão, não apenas dos fenómenos, mas também dos conceitos tendo em conta que “uma das superioridades do cérebro humano (sobre os computadores) é poder trabalhar com o insuficiente e o vago”2. O objectivo é entrar no cerne dos fenómenos e considerar a

complexidade organizacional e a complexidade lógica, tentando ir, “não do simples para o complexo, mas da complexidade para uma complexidade sempre maior”2, tentando considerar “as linhas, as

tendências da complexificação crescente” “em função dos

desenvolvimentos da auto-organização (autonomia, individualidade, riqueza de relações com o meio, aptidões para a aprendizagem, inventividade, criatividade, etc)”2. O desafio é, portanto, desenvolver

“um pensamento capaz de tratar o real, de dialogar e de negociar com ele”2, substituindo o paradigma “da disjunção-redução-

unidimensionalização”2 pelo da “distinção-conjunção que permite

distinguir sem separar,”2proporcionando o “escapar à alternativa entre

o pensamento redutor que só vê os elementos e o pensamento

globalista que apenas vê o todo”2. O que se procura, como defende

H. Mariotti, é o “pensamento integrador”1 que aceita que o

pensamento redutor e o globalista não se excluem um ao outro, mas antes se complementam numa “interacção mutuamente

fertilizadora”1 através de uma relação de circularidade e de inclusão.

Trata-se de “desenvolver ao mesmo tempo uma teoria, uma lógica, uma epistemologia da complexidade que possa convir ao

conhecimento do homem”2.

Importa, neste momento, dissipar duas ilusões. A primeira é a de que o pensamento complexo aparece para eliminar o pensamento simplificador – o que o pensamento complexo tenta é integrar, o mais possível, os modos simplificadores de pensar, recusando, portanto, como diz E. Morin, “as consequências mutiladoras, redutoras,

unidimensionais e, finalmente, ilusórias de uma simplificação que se toma pelo reflexo do que há de real na realidade”2. E a segunda

ilusão que é a que decorre de se confundir complexidade com completude – a teoria da complexidade assume, à partida, que o conhecimento completo é impossível, a omnisciência é impossível, mas aspira-se “ao conhecimento multidimensional”2 – o pensamento

complexo é “animado por uma tensão permanente entre a aspiração a um saber não parcelar, não fechado, não redutor e o

reconhecimento do inacabamento, da incompletude de todo o conhecimento”2.

Outra conclusão que decorre da teoria da complexidade é que “só existe objecto em relação a um sujeito (que observa, isola, define,

permite reconhecer-se, definir-se, pensar-se, mas também existir)”2.

Sujeito e objecto são indissociáveis, “o mundo está no interior do nosso espírito e este no interior do mundo”2 revelando a inadequação da

obrigação da escolha “entre o sujeito metafísico e o objecto

positivista”2. Como salienta H. Mariotti, “o observador faz parte daquilo

que observa”1, a “percepção é um fenómeno que acontece na

estrutura dos organismos vivos”1 e os seus resultados internos, em cada

pessoa, “dependem das peculiaridades de cada um”1 – “a

percepção é um diálogo”1, “é uma transacção entre o observador e

o observado”1 e a realidade “é o que observamos e também o que

sentimos e pensamos em relação ao que observamos”1. Não é,

portanto, possível “eliminar a subjectividade e a participação do observador nos fenómenos que ele observa”, “a objectividade em si, vista como um absoluto, não existe”, a “definição do que é objectivo resulta de consensos”, é “uma construção cultural”1 que inclui,

necessariamente, a subjectividade.

Por último e para se entender a dinâmica da teia relacional dos fenómenos, é importante considerar que, em todos os níveis de organização complexa, é possível encontrar os três tipos de

causalidade: linear – “tal causa produz tais efeitos”; circular retroactiva – “o efeito (de uma produção) pode retroagir para estimular ou fazer retroceder a produção”; recursiva – “os efeitos e os produtos são necessários ao processo que os gera”; “o produto é produtor daquilo que o produz”2.

1.2.1.2. A prática

Desta abordagem da complexidade, retiramos vários níveis de consequências para a prática: no modo de pensar; na interacção geral com os outros (em especial no trabalho em equipa); na formação/desenvolvimento pessoal e profissional; na gestão das

organizações; na construção e implementação de políticas; e na investigação.

No modo de pensar é necessário um pensamento aberto,

abrangente e flexível, que contextualiza e integra, capaz de mobilizar capacidades criativas e transformadoras, potenciador da auto-crítica e da abertura à crítica externa. É essencial desenvolver uma

capacidade de adaptação rápida a contextos sempre em mutação, de tomada de decisão atempada mesmo em situações pouco

definidas ou incertas. Finalmente, é fundamental uma aptidão para gerir conflitos porque eles vão surgir dentro de cada um e com os outros porque vamos aceitar colocar todas as hipóteses na análise dos problemas e permitir que outros o façam igualmente2.

Na interacção geral com os outros e, em particular, no trabalho em equipa, H. Mariotti, citando R. Martin, advoga que temos de evoluir do construto existente, com que aprendemos a interagir com os outros e que se pode resumir em

«eu sei a resposta correcta, o outro, quando não concorda

comigo, ou está desinformado ou mal intencionado e a tarefa é fazer com que ele veja as coisas à minha maneira»,

para outro construto, o modificado, que se sintetiza em

«eu sou rico em dados e experiência, mas posso não perceber ou entender tudo, e o outro, pode ver coisas que não vejo e elas podem contribuir para a minha compreensão e a tarefa comum é consultar a nossa inteligência colectiva para fazer as melhores escolhas»1i.

Esta mudança de construto é a expressão da afirmação de H. Mariotti de que o homem é “um ser-no-mundo”, “um ser-com-os- outros”1 e isso tem profundas implicações na vida das organizações.

formação e desenvolvimento pessoal e profissional e a pensar como Montaigne, citado por E. Morin, “mais vale uma cabeça bem feita do que bem cheia”2: mais do que acumular conhecimentos, é muito

importante dispor ao mesmo tempo de uma aptidão geral para colocar e tratar os problemas, de princípios organizadores que permitam religar os saberes e dar-lhes sentido2.

Nas organizações, as implicações práticas da teoria da

complexidade convidam a uma gestão que através da liderança e da adopção de uma série de princípios façam emergir a tomada de decisão16:

• promover um enquadramento de diálogo/conversação entre

stakeholders relevantes para um dado problema;

• reduzir a hegemonia profissional e os diferenciais de poder entre

stakeholders, para que todos tenham voz na abordagem dos

problemas e na vida das organizações;

• desenvolver um ambiente de elevada confiança para que haja a possibilidade de inovar e, mesmo, de errar de um modo

frutífero (quando serve para a evolução e desenvolvimento); • definir um pequeno número de princípios-guia ou regras simples

que permitam enquadrar os objectivos que se querem alcançar, focar no que interessa e alinhar todos os intervenientes nos seus esforços, não cedendo à tentação de tudo definir,

espartilhando a imaginação, a criatividade, o espírito empreendedor e a autonomia;

• reconhecer a importância dos julgamentos reiterativos – a fonte dos padrões é a história prévia do sistema, ou seja, numa

primeira fase vamos responder como sempre respondemos, trilhando os mesmos caminhos, eventualmente fazendo os mesmos erros, sendo necessário ter consciência disso para tomar as melhores decisões no contexto em que estamos a actuar;

• permitir soluções que, não sendo óptimas, satisfazem os constrangimentos do sistema, evitando o perfeccionismo excessivo que, por vezes, leva à perda do timing necessário para que as coisas aconteçam, possibilitando começar a funcionar em tempo útil e ir-se adaptando à evolução dos acontecimentos.

Ainda nas organizações, é importante favorecer um enquadramento de funcionamento próximo das chamadas

organizações de aprendizagem17,18,19,20,21,22,23,24 – organizações que

fazem da aprendizagem uma característica nuclear da sua actividade. Estas organizações aperfeiçoam práticas que lhes

permitem ser exigentes, críticas (para dentro e para fora), proactivas e inovadoras. Um caminho para se conseguir ser uma organização aprendente passa pelo estabelecimento de rotinas de aprendizagem produtivas – identificar erros e corrigi-los, mas também questionar e inovar e, fundamental, conseguir a meta-aprendizagem, aprender como se aprende para o fazer cada vez melhor. Mas não é suficiente, é igualmente necessário cultivar amplos espaços de conversação, em que seja possível a convivência, a intereducação (aprender com os outros) e a intergeração de ideias (a espiral de evolução do

pensamento e das ideias que frutifica do debate)1.

Continuando nas organizações, estas não são ilhas, e só

conseguirão ter um desempenho optimizado nos contextos complexos em que têm de operar quando integradas em redes, com ligações a sistemas supra e infra e fora do seu sector específico, em interacção com redes de investigação, de formação e de gestão da informação ou seja fazendo net-working social. E neste contexto, os sistemas de informação assumem uma posição central e fundamental25. São

indispensáveis sistemas de informação credíveis e fáceis de utilizar para assegurar a ligação entre as partes e transferir o trabalho

Torna-se, igualmente, necessário expandir o conceito de “smart

healthcare” - saber “utilizar os recursos de saúde com inteligência, de

forma holística”25 e de um modo sustentável, num ambiente complexo

e onde cidadãos e profissionais de saúde são parceiros na

potenciação da qualidade da prestação dos cuidados de saúde. Finalmente, e ainda no nível das organizações, em contextos e situações de trabalho complexas é fundamental a auto-organização. Existe “auto-organização” quando um grupo consegue alterar a sua própria organização sem intervenção externa25 ainda que alimentado

pela interacção e feedback interno e externo; por esta razão estas organizações são consideradas estruturas orgânicas em que as características da ligação entre os seus membros encorajam ajustes mútuos, um mecanismo-chave de coordenação, organização e evolução destes grupos. A auto-organização não implica, no entanto, a ausência de líderes. Pelo contrário, é o tipo de organização que necessita de lideranças, que emergem à medida que a situação e o contexto vão evoluindo e de acordo com as competências

reconhecidas e assumidas dentro do grupo. Estas lideranças são ainda importantes na definição de regras fundamentais para orientar a

abordagem das situações sem coarctar a imaginação e iniciativa dos restantes elementos e permitindo a inovação oportuna25. O líder aqui

é aquele que percebe os motivos que bloqueiam o fluxo livre de comunicação e age para alterar esse bloqueio através da sua participação activa nos processos e pelo fomento de espaços e

momentos de reflexão26; actua como líder aquele que fomenta climas

motivadores para o trabalho, tolerantes ao erro frutífero, promotores da inovação e potenciadores do valor humano25,26; A mudança só

pode ocorrer quando os padrões de comunicação e de relação entre os elementos do grupo mudam porque são estes padrões que

permitem organizar a experiência para que a inovação ocorra26. Está

grupo funcionam, se relacionam e trabalham em conjunto: a

qualidade das relações existentes é essencial. Lapão25 cita Kauffman

ao sintetizar que são fundamentais para que uma auto-organização possa existir25: a diversidade de respostas, a liderança para a

qualidade, a existência de profissionais muito qualificados que saibam exercer sob condições paradoxais e de incerteza, a qualidade das relações dentro do grupo e a persistência de condições que

permitam a aprendizagem permanente e a inovação. A auto- organização pode, portanto, ajudar no processo de encontrar as soluções que constituam as respostas mais ajustadas aos problemas, através da partilha de experiências entre elementos das equipas, do aumento do conhecimento disponível e da multiplicação das

alternativas estratégicas e comunicacionais para lidar com as situações25.

Ao nível da definição e implementação de políticas27, surge a

proposta de construir políticas adaptativas. Nem sempre se consegue antecipar todas as situações mas o que D. Swanson chama de

políticas adaptativas pode permitir antecipar situações inesperadas e continuar a navegar na direcção dos objectivos em contextos muito voláteis e de evolução incerta. Essas políticas adaptativas propõem organizar a acção em concertação com algumas das características dos sistemas complexos adaptativos:

• desenvolver análises das situações integradas e viradas para o futuro;

• favorecer decisões baseadas em deliberações do máximo possível de stakeholders;

• promover a capacidade de ajustamentos automáticos da política através da monitorização de indicadores-chave;

• fomentar a capacidade da sociedade, das comunidades e das organizações para a auto-organização e o networking social (ver atrás nesta secção);

• descentralizar a governação até ao mais baixo e mais efectivo nível jurisdicional;

• promover respostas variadas às políticas implementadas para que desta diversidade surja a possibilidade de escolha de soluções alternativas e se potencie a inovação; e

• implementar rotinas de revisão das políticas e fomentar a aprendizagem permanente.

Num artigo de 2005, R. Atun et al28 ilustram o sucesso destas

políticas adaptativas na reforma dos cuidados de saúde primários (como os autores a colocam, uma complexa inovação) da Estónia, enumerando os factores que fizeram com que esta reforma fosse bem-sucedida: liderança forte, boa coordenação entre o nível político e o operacional, abordagem prática da implementação enfatizando a simplicidade das intervenções para poder ser

facilmente apreendida pelos potenciais destinatários dessas políticas, estratégias de envolvimento para evitar conflitos desnecessários com o status-quo, gestão cuidadosa da mudança para que a reforma não seja politizada demasiado cedo e investimentos fortes e precoces na formação para estabelecer uma massa crítica de profissionais que possam rapidamente operacionalizar e implementar as políticas. R. Atun considerou ainda que é da máxima importância que haja uma abordagem multifacetada e coordenada à reforma com mudanças nas leis, reestruturação organizacional, alterações no financiamento e nos sistemas de pagamento aos prestadores, criação de incentivos à inovação e investimento no desenvolvimento dos recursos humanos. Esta é uma cartilha que tem sido seguida, em termos gerais, na

reforma de 2005 - … dos cuidados de saúde primários portugueses (ver secção 3).

E quais as consequências para a investigação e os seus métodos, nomeadamente no que se deve adoptar nesta tese? E. Morin2 fala da

princípios de disjunção, de redução e de abstracção”2, “rareando as

comunicações entre o conhecimento científico e a reflexão

filosófica”2, isolando “todos os objectos daquilo que os envolve”2, não

identificando “o elo inseparável entre o observador e a coisa observada”2 e de se “rasgar e retalhar o tecido complexo das

realidades, e fazer crer que o corte arbitrário operado sobre o real era o próprio real”2. A patologia está, segundo E. Morin, na

hipersimplificação que não permite apreender a complexidade do real, no idealismo em que a ideia oculta o real e lhe toma o lugar, no doutrinarismo e no dogmatismo que petrificam as teorias e na

racionalização que “encerra o real num sistema de ideias coerente, mas parcial e unilateral, e que não sabe sequer que uma parte do real é irracionalizável”2. Defende, então, a necessidade de um paradigma

“ que permita distinguir sem separar, associar sem reduzir”2,

escapando “à unidade abstracta do alto (holismo) e do baixo (reducionismo)”2. Não nega, contudo e obviamente, a importância

do conhecimento científico e cita Bachelard para o reforçar: “A ciência constrói o objecto extraindo-o do seu meio complexo para o colocar em situações experimentais não complexas. A ciência não é o estudo do universo simples, é uma simplificação heurística

necessária para libertar certas propriedades e mesmo certas leis.”2. E

E. Morin acrescenta ainda “a despeito do seu ideal simplificador, a ciência progrediu porque era, efectivamente, complexa”, “a

complexidade científica é a presença do não-científico no científico que não anula o científico, mas, pelo contrário, lhe permite exprimir- se”2 Diz E. Morin, “O que me interessa é respeitar as exigências de

investigação e de verificação próprias do conhecimento científico e as exigências da reflexão propostas no conhecimento filosófico”2. Este

objectivo é mais bem alcançado se se adoptarem métodos de investigação como as já referidas técnicas multimétodos ou de métodos mistos e da cristalização. Deste modo evitam-se visões

unifocais e limitadas das situações, alcançando-se um entendimento mais abrangente das problemáticas. Na própria análise dos dados da investigação, os modelos de análise que assumem relações lineares entre factores associados a um fenómeno ou tentam compreender o real através da limitação simplista dos factores em causa estão cada vez mais postos de parte. Galea et al 29 dão forma a estas dúvidas no

seu artigo “Causal thinking and complex system approaches in epidemiology” reconhecendo que os fenómenos podem ser influenciados por variados factores a múltiplos níveis, incluindo o biológico, o comportamental e o grupal e que as inter-relações,

muitas vezes não lineares, entre esses factores incluem mecanismos de retro-alimentação dinâmicos que se modificam ao longo do tempo e que a formulação de causa – qualquer coisa que faz a diferença – tem de ser considerada segundo esta nova abordagem. Estes autores avançam, como caminho para lidar com esta nova compreensão, a adopção de métodos e modelos computacionais dinâmicos dos sistemas complexos “complex systems dynamic computational

models”. Estes autores acreditam, mesmo, que estes métodos vão

tornar-se a língua franca da epidemiologia nos próximos anos (à semelhança dos modelos de regressão) ainda que não devam ser considerados como a panaceia para todos os problemas, reforçando que a utilidade destes modelos será proporcional à qualidade dos dados de entrada e das assunções prévias à construção desses

modelos que devem estar alicerçadas numa parametrização tangível e baseada na evidência.