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2 O PAPEL DO ESTADO AVALIADOR NA ELABORAÇÃO E

4.1 O modelo tridimensional de Norman Fairclough

A teoria da análise do discurso não apresenta apenas uma perspectiva. Diferentes grupos, a partir de abordagens variadas se apropriam e adaptam a teoria para utilizá-la a partir de leituras de mundo diferenciadas. Caregnato e Mutti (2006) explicam que apesar dos enfoques variarem, os diferentes estilos

[...] parecem ter em comum, ao tomar como objeto o discurso, é que partilham de uma rejeição da noção realista de que a linguagem é simplesmente um meio neutro de refletir, ou descrever o mundo, e uma convicção da importância central do discurso na construção da vida social. (p. 680)

Assim, a análise do discurso se desenha a partir do sentido e não apenas do conteúdo do texto, um sentido que, segundo os autores mencionados, não é traduzido, mas produzido. Estes seguem explicando que o corpus da AD é constituído pela seguinte formulação: ―ideologia + história + linguagem. A ideologia é entendida como o posicionamento do sujeito quando se filia a um discurso, sendo o processo de constituição do imaginário que está no inconsciente, ou seja, o sistema de ideias que constitui a representação‖ (p. 680), em outras palavras, representa o contexto sócio-histórico. Nessa perspectiva, a linguagem é a materialidade do texto, que direciona, envia dicas, ―pistas‖ do sentido que o sujeito pretende dar. Portanto, na AD a linguagem vai além do texto. Vinculando-se à perspectiva de análise crítica do discurso, Fairclough propôs uma abordagem tridimensional, constituída pelas dimensões: texto, prática discursiva e prática social.

Figura 5-Abordagem tridimensional do discurso de Fairclough

Fonte: Fairclough (2001, p. 101).

Para compreender os três elementos dessa concepção e como eles se relacionam, aprofundaremos a discussão a seguir.

A conexão entre o texto e a prática social é vista como mediada pela prática discursiva: de um lado, os processos de produção e interpretação são formados pela natureza da prática social, ajudando também a formá-la e, por outro lado, o processo de produção forma (e deixa vestígios) no texto, e o processo interpretativo opera sobre ‗pistas‘ no texto. (FAIRCLOUGH, 2001, p. 35-36. Grifos do autor)

Nessa perspectiva, a prática discursiva seria o processo de produção, distribuição e consumo do texto, entendendo cada etapa mencionada como um processo social que pode variar de acordo com os diferentes tipos de discursos e, consequentemente, dos fatores sociais envolvidos.

No que se refere especificamente ao texto, o autor chama atenção para elementos da linguística, como: o vocabulário, a gramática, a coesão e a estrutura textual. Quando o foco está no vocábulo, são postos em relevo neologismos, lexicalizações, superexpressão, relações entre palavras e seus sentidos. Quando se trata da análise gramatical, as referências são às palavras combinadas em expressões ou frases. Seguindo para a coesão, associa-se aos elos entre essas expressões ou frases, como exemplo, o autor se refere às palavras de mesmo campo semântico, sinônimos e conjunções. Por fim, a estrutura textual, que tem a ver com as formas de construção do texto, a maneira como os elementos estão relacionados.

Apoiado no subsídio teórico fornecido pelo autor em questão, Pedrosa (s.d) elaborou quadro que tem como objetivo sistematizar as orientações de Fairclough para análise textual:

Quadro 9-Análise do texto

Elementos de análise Tópicos Objetivos

Controle internacional Estrutura textual

Geral

Descrever as características organizacionais gerais, o funcionamento e o controle das interações.

Polidez

Determinar quais as estratégias de polidez são mais utilizadas na amostra e o que isso sugere sobre as relações sociais entre os participantes.

Ethos

Reunir as características que contribuem para a construção do eu ou de identidades sociais.

Coesão Geral Mostrar de que forma as orações e os

períodos estão interligados no texto.

Gramática

Geral

Trabalhar com a transitividade (função ideacional da linguagem), tema (função textual da linguagem) e modalidade (função interpessoal da linguagem).

Transitividade

―Verificar se tipos de processo [ação, evento...] e participantes estão favorecidos no texto, que escolhas de voz são feitas (ativa ou passiva) e quão significante é a nominalização dos processos‖ (Fairclough, 2001, p. 287.)

Tema

Observar se existe um padrão discernível na estrutura do tema do texto para as escolhas temáticas das orações.

Modalidade

Determinar padrões por meio da modalidade, quanto ao grau de afinidade expressa com proposições.

Vocabulário Significado

de palavras

Enfatizar as palavras-chave que apresentam significado cultural, as palavras com significado variável e mutável, o significado potencial de uma palavra, enfim, como elas funcionam como um modo de hegemonia e um foco de luta.

Criação de palavras

Contrastar as formas de lexicalização dos sentidos com as formas de lexicalização desses mesmos sentidos em outros tipos de textos e verificar a perspectiva interpretativa por trás dessa lexicalização.

Metáfora

Caracterizar as metáforas utilizadas em contraste com metáforas usadas para sentidos semelhantes em outro lugar, verificar que fatores (cultural, ideológico, histórico etc) determinam a escolha dessa metáfora. Verificar também o efeito das metáforas sobre o pensamento e a prática.

O desenho proposto é importante porque contribui para o momento de realizar a análise, uma vez que expressa as orientações de Fairclough como caminho possível, embora o próprio autor chame atenção para o fato de que essa dimensão, textual, não deve ser compreendida apartada das dimensões da prática discursiva e da prática social, as três são interdependentes. Foi possível, portanto, apoiado neste, adaptar para realização da pesquisa que subsidiou a presente dissertação.

Assim, compreende-se que o texto falado ou escrito expressa uma prática discursiva. Como já mencionado, Fairclough (2001) considera a mesma a partir da produção, distribuição e consumo do texto e entende que ao analisar textos examinam-se simultaneamente questões outras, tanto de forma, quanto de significado.

O autor distingue três elementos utilizados na análise da prática discursiva e explica que embora envolva aspectos textuais, é por meio da prática discursiva que eles se materializam: ―a força dos enunciados, isto é, os tipos de atos de fala (promessas, pedidos, ameaças, etc.) por eles constituídos; a coerência dos textos; e a intertextualidade dos textos‖. (p. 103-104)

A exemplo do quadro apresentado para a análise textual, Pedrosa (s.d) disponibiliza também quadro com orientações para apoio no momento de realização da análise da prática discursiva. A base para a construção se deu a partir da obra Discurso como mudança social.

Quadro 10-Análise da prática discursiva

Práticas

discursivas Tópicos Objetivos

Produção do texto

Interdiscursividade

Especificar os tipos de discurso que estão na amostra discursiva sob análise, e de que forma isso é feito.

―É a amostra discursiva relativamente convencional nas suas propriedades interdiscursivas ou relativamente inovadoras?‖ (Fairclough, 2001, p. 283).

Intertextualidade manifesta

Especificar o que outros textos estão delineando na constituição do texto da amostra, e como isso acontece.

Como ocorre a representação

discursiva: direta ou indireta? O

discurso representado está demarcado claramente? O que está representado: contexto, estilo ou significado ideacional? Como as

pressuposições estão sugeridas no

texto?

Distribuição do texto

Cadeias intertextuais

Especificar a distribuição de uma amostra discursiva através da descrição das séries de textos nas quais ou das quais é transformada. (Quais os tipos de transformações, quais as audiências antecipadas pelo produtor?).

Consumo

do texto Coerência

Considerar as implicações interpretativas das particularidades intertextuais e interdiscursivas da amostra. Como os textos são interpretados e quanto de trabalho inferencial é requerido.

Condições da prática discursiva

Geral

Especificar as práticas sociais de produção e consumo do texto, ligadas ao tipo de discurso que a amostra representa.

A produção é coletiva ou individual? Há diferentes estágios de produção?

―As pessoas do animador, autor e principal são as mesmas ou diferentes?‖ (Fairclough, 2001, p. 285).

Fonte: Pedrosa (s.d)

No que diz respeito à produção a prática discursiva para Fairclough (2001), está associada à interpretação e leitura de mundo dos sujeitos que a produzem. Em relação à distribuição, a atenção deve voltar-se para quem são destinados os textos, e as formas como são socializados. Sobre o consumo, a compreensão passa pela perspectiva dos sentidos

atribuídos a partir dos conteúdos textuais. Como explica Meuerer (2007) este último elemento está associado a como os sujeitos ―estabelecem relações de coerência; como (re) criam a textualização de possíveis intenções; como se coadunam com outros textos (intertextualidade) e com outros discursos (interdiscursividade)‖. (p.48)

Por fim, Fairclough (2001) aborda o discurso como prática social. Para o autor, ainda que as pessoas sejam influenciadas ideologicamente falando, estas têm condições de filtrar o que recebem do meio externo no sentido de ressignificar suas práticas. ―O equilíbrio entre o sujeito ‗efeito‘ ideológico e o sujeito agente ativo é uma variável que depende das condições sociais, tal como a estabilidade relativa das relações de dominação‖ (p. 121).

Uma categoria que aparece como um dos pilares centrais da discussão ao lado da ideologia é a hegemonia. Apoiando-se nas ideias de Gramsci, Fairclough (2001) considera que a hegemonia

[...] fornece um modelo de teorização da mudança em relação a evolução das relações de poder que permite um foco particular sobre a mudança discursiva, mas ao mesmo tempo um modo de considerá-la em termos de sua contribuição aos processos mais amplos de mudança e de seu amoldamento por tais processos. Hegemonia é liderança tanto quanto dominação nos domínios econômicos, políticos, culturais e ideológicos de uma sociedade. Hegemonia é o poder sobre a sociedade como todo de uma das classes economicamente definidas como fundamentais em aliança com outras forcas sociais, mas nunca atingido senão parcial e temporariamente, como um 'equilíbrio instável'. Hegemonia é a construção de alianças e a integração muito mais do que simplesmente a dominação de classes subalternas, mediante concessões ou meios ideológicos para ganhar seu consentimento. Hegemonia é um foco de constante luta sobre pontos de maior instabilidade entre classes e blocos para construir, manter ou romper alianças e relações de dominação/subordinação, que assume formas econômicas, políticas e ideológicas. A luta hegemônica localiza-se em uma frente ampla, que inclui as instituições da sociedade civil (educação, sindicatos. família), com possível desigualdade entre diferentes níveis e domínios. (p.122)

Nessa perspectiva, os elementos da prática discursiva, produção, distribuição e consumo de textos expressam essa luta hegemônica que podem contribuir tanto no sentido de manutenção e reprodução ou podem ascender como uma possibilidade de mudança, transformação da ordem do discurso e das relações sociais existentes.

Avançando para a terceira dimensão, sobre a perspectiva do discurso como prática social, Pedrosa (s.d) também oferece significativa contribuição ao organizar as orientações de Fairclough (2001) no quadro a seguir.

Quadro 11- Análise da prática social

Elementos de análise Objetivos

Matriz social do discurso

―Especificar as relações e as estruturas sociais e hegemônicas que constituem a matriz dessa instância particular da prática social e discursiva; como essa instância aparece em relação a essas estruturas e relações [...]; e que efeitos ela traz, em termos de sua representação ou transformação?‖ (Fairclough, 2001, p. 289-290).

Ordens do discurso

Explicitar o relacionamento da instância da prática social e discursiva com as ordens de discurso que ela descreve e os efeitos de reprodução e transformação das ordens de discurso para as quais colaborou. Efeitos

ideológicos e políticos do discurso

Focalizar os seguintes efeitos ideológicos e hegemônicos particulares: sistemas de conhecimento e crença, relações sociais, identidades sociais (eu).

Fonte: Pedrosa (s.d)

Em relação ao terceiro elemento da análise, a prática social, o autor tece associações com duas outras categorias para explicá-la: ideologia e hegemonia. Sobre o assunto, Resende e Ramalho (2006) afirmam que

Na categoria ideologia, observam-se os aspectos do texto que podem ser investidos ideologicamente, como os sentidos das palavras, as pressuposições, as metáforas, o estilo. Na categoria hegemonia, observam-se as orientações da prática social, que podem ser orientações econômicas, políticas, ideológicas e culturais. (p.188)

Para os fins desse trabalho, o termo ideologia será aplicado e compreendido como um conjunto de representações no interior de uma sociedade, ou seja, ―uma orientação acumulada e naturalizada que é construída nas normas e nas convenções, como também um trabalho atual de naturalização e desnaturalização de tais orientações nos eventos discursivos‖ (FAIRCLOUGH, 2001, p. 119). Partindo do entendimento de que estamos inseridos em uma sociedade capitalista e, portanto, de classe, é preciso perceber que há várias ideologias em constante conflito se materializando na sociedade. A ideologia seria, nessa perspectiva, ―a visão de mundo de determinada classe e a maneira como ela representa a ordem social. Assim, a linguagem é determinada em última instância pela ideologia, pois não há uma relação direta entre as representações e a língua‖ (GREGOLIN, 1995, p.17).

O autor segue discutindo ―formação ideológica ou condições de produção do discurso". Para ele, a sociedade possui diversas formações ideológicas, estando cada uma

delas associada a uma "formação discursiva (o que se pode e se deve dizer em determinada época, em determinada sociedade). Por isso, os processos discursivos estão na fonte da produção dos sentidos e a língua é o lugar material onde se realizam os efeitos de sentido‖ (p.17-18).

Diante das contribuições de Fairclough (2001) como um dos pilares teórico- metodológicos deste estudo, no tópico a seguir apresentaremos brevemente as contribuições de Foucault para a análise critica do discurso, perspectiva de apoio deste trabalho.