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CAPÍTULO II. A LÍNGUA: UM FENÓMENO SOCIAL

2.2. O MULTILINGUISMO

A utilização de termos como bilinguismo, trilinguismo e multilinguismo é hoje comum. Contudo, para os efeitos deste estudo, focar-nos-emos neste último conceito, uma vez que pode também englobar as outras duas noções. Se nos restringirmos à raiz etimológica deste conceito, facilmente constataremos que deriva de duas palavras latinas:

multi, que significa muitos, e lingua, que significa língua (Komorowska, 2013). Assim,

multilinguismo representará a capacidade de um falante para se expressar em muitas línguas com igual proficiência. Todavia, a investigação veio já demonstrar que, quer nas práticas comunicativas escritas, quer nas verbais, a proficiência numa língua tende a dominar num conjunto multilingue. Por outro lado, o conceito de multilinguismo pode igualmente ser entendido como a coexistência de várias línguas numa determinada sociedade, podendo estas ser inseridas em uma das seguintes categorias: oficiais ou não oficiais; nativas ou estrangeiras; nacionais ou internacionais (Okal, 2014).

Um determinado país ou sociedade é geralmente considerado multilingue se os seus membros ou cidadãos são multilingues. Estes demonstram, em muitas ocasiões, competências comunicativas identificáveis em várias línguas. No entanto, e tal como já foi mencionado, a prática de um multilinguismo perfeito é rara, dada a tendência para prevalecer apenas uma língua, subordinando-se as outras a esta. De facto, a existência de uma clara diferenciação funcional entre duas línguas é, geralmente, denominada diglossia. Assim, uma língua considerada de variedade baixa pode ser utilizada em casa ou em ambientes informais, ao passo que a de variedade alta é usada em situações formais (Komorowska, 2013). Existem também outros casos em que está envolvida a diferenciação

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funcional de três línguas – triglossia – fenómeno que pode ser testemunhado, por exemplo, no Quénia em que o inglês, língua de variedade alta, é utilizado como o único meio de instrução de todas as disciplinas ministradas nos vários níveis de ensino. Com efeito, apesar do kiswahili ser uma das línguas oficiais do país, limita-se a ser aplicado no ensino de

kiswahili enquanto disciplina. Acresce ainda o facto de cerca de quarenta línguas indígenas

serem faladas em casa e em outros ambientes sociais. No entanto, nenhuma destas é utilizada como meio de instrução em qualquer uma das instituições de ensino no Quénia (Okal, 2014).

De acordo com Komorowska (2013) e Okal (2014), o estatuto do multilinguismo pode ser oficial ou não oficial:

1. É oficial quando está consagrado na Constituição do país e é aplicado, quer no setor

da educação (processos de ensino e aprendizagem nas instituições de ensino básico, secundário e superior), quer nos compromissos oficiais nacionais e internacionais (processos parlamentares, atividades judiciais, conferências locais e internacionais);

2. É não oficial quando, não estando consignado na Constituição do país, é colocado

em prática nas interações diárias entre comunidades étnicas vizinhas (comércio, desportos e funções religiosas).

Um país com estatuto oficial multilingue dispõe de um quadro teórico concebido de forma clara e sustentado por uma lei devidamente consagrada na Constituição. É o caso de países como a Suíça, o Canadá e a Bélgica (Komorowska, 2013; Okal, 2014). Surpreendentemente, apesar de terem obtido a sua independência há mais de cinquenta anos e de terem numerosas línguas indígenas – algumas das quais servem como língua franca – os países africanos acabaram por adotar as línguas estrangeiras dos colonizadores como línguas oficiais (português, inglês e francês).

A prática do multilinguismo pode ter consequências linguísticas e políticas. Estas últimas assentam na ordem económica e política das sociedades e contribuem, a longo prazo, para a criação de línguas maioritárias e minoritárias, sendo que as primeiras diferem

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na importância e domínio alcançados. As consequências linguísticas podem subdividir-se em cinco (Komorowska, 2013; Okal, 2014):

1. A criação e o crescimento de uma língua franca que, normalmente, se desenvolve

devido à necessidade de comunicação entre diferentes grupos;

2. O desenvolvimento de línguas mistas, isto é, os falantes tendem a misturar as

línguas durante a comunicação verbal, o que poderá resultar na criação de gírias;

3. O desenvolvimento de estratégias linguísticas de comunicação cruzada como a

mudança ou a mistura de códigos. Quando se alterna entre uma língua usada em casa e outra utilizada fora desse ambiente, ocorre necessariamente uma mudança de código;

4. A criação de uma diferenciação diglóssica em que, em duas línguas oficiais, há uma

que tende a dominar sobre a outra que é entendida como subordinada. No continente africano, por exemplo, as línguas portuguesa, inglesa e francesa são classificadas como de variedade alta, ao passo que as línguas indígenas são identificadas como de variedade baixa;

5. O desenvolvimento de competências comunicativas interculturais.

Os princípios do regionalismo e internacionalismo, adotados por muitos países, e especialmente prementes nos campos do comércio, inovação e avanços tecnológicos, exigem que os falantes sejam proficientes em línguas de trabalho. Deverão, portanto, dominar uma língua comum, para além das línguas nativas, de forma a conduzir as suas atividades (Kramsch, 2014). Por conseguinte, um falante monolingue terá necessariamente de aprender mais línguas para que possa estar em sintonia com os demais num mundo em rápida mudança. A prática do multilinguismo em contexto educativo – formal e informal – pode, pois, comportar amplos benefícios (Komorowska, 2013; Okal, 2014):

1. Síntese e expressão clara do conhecimento – saber uma língua indígena poderá

proporcionar-nos o acesso a uma vasta reserva de sabedoria, conhecimento e competências. Com efeito, o domínio de uma língua oficial e de uma língua indígena capacita o falante para sintetizar o conhecimento e expressá-lo corretamente. A

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inclusão do estudo de línguas indígenas em contexto educativo possibilita, assim, o cumprimento deste objetivo;

2. Comunicação mais rápida e fácil – um falante monolingue pode ser descrito como

um animal restrito na comunicação. Esta “fixidez de referência” implica a ligação rígida entre a mensagem transmitida pelo animal e o seu referente no mundo real (um rugido dirigido a um inimigo ou um odor especial como forma de atração para acasalamento). Além disso, falar apenas uma língua poderá ser comparado a um estádio holofrástico de desenvolvimento da linguagem, ou seja, o falante monolingue estaria ainda em processo de aquisição e desenvolvimento da língua e, portanto, agiria como uma criança que emprega uma única palavra para designar toda uma frase, desejo ou necessidade. A aprendizagem de línguas estrangeiras permite que o indivíduo se mova para outro estádio de desenvolvimento da linguagem, evitando restrições na comunicação;

3. Aumento da flexibilidade e criatividade intelectuais – estudos recentes

demonstram que as crianças que crescem num ambiente em que se fala mais do que uma língua, desde idade precoce, são mais percetivas e intelectualmente flexíveis do que as que falam apenas uma língua. Por regra, sentem-se confortáveis e são igualmente fluentes nas duas línguas de casa e podem ainda aprender uma terceira ou quarta língua. Idênticos resultados poderão ser obtidos em contexto escolar se as crianças forem expostas a diferentes línguas;

4. Compreensão de diferentes culturas e experiências – cultura e sociedade

desempenham um papel crucial na existência das línguas. Neste sentido, o multilinguismo aumenta a compreensão e a apreciação automáticas dos valores culturais das sociedades que estão contidas nas línguas em causa. As experiências ganhas por aprender diferentes línguas tendem a modificar as atitudes, competências e crenças dos indivíduos, bem como a expandir a sua visão do mundo;

5. Capital humano sólido – embora os custos envolvidos no desenvolvimento de

competências linguísticas sejam consideráveis, a ausência de investimento será bastante prejudicial, resultando na fragilidade do capital humano;

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6. Contributo para a unidade nacional – especialmente visível se os indivíduos

aprendem línguas nacionais, para além das línguas indígenas e da língua franca. Durante o processo de aprendizagem é provável que tendam a valorizar a união;

7. Vantagem competitiva no mercado de trabalho atual – o domínio de uma (ou mais)

língua(s) estrangeira(s) é uma competência essencial para competir, com sucesso, na economia global. Não obstante a importância das competências académicas e profissionais, os empregadores exigem também fluência em línguas específicas: “therefore, being a multilingual is a plus to any job seeker in this millenium”4 (Okal, 2014, p. 227).