• Nenhum resultado encontrado

4 O INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE DEMANDAS REPETITIVAS 83 

4.1   A influência do direito estrangeiro 88 

4.1.1 O musterverfahren alemão

O musterverfahren, de origem pretoriana que remonta ao início da década de 1980, foi incorporado à legislação alemã em 1991 e aperfeiçoado sucessivamente em 2005, 2008 e 2012. Consiste no procedimento-padrão, utilizado tradicionalmente pela legislação tedesca para tutelar as causas referentes à Jurisdição Administrativa334, ao mercado de capitais335 e à assistência e previdência social336, e cujo sucesso influenciou, posteriormente, a sua inclusão na legislação processual civil alemã337.

Mais difundida em sua versão para a proteção de investidores do mercado de capitais, também conhecida como Kapitalanleger-

Musterverfahrengesetz (KapMuG), a lei permite:

331 CUNHA, Leonardo José Carneiro da. O regime processual das causas repetitivas cit., p. 139-174.

332 CAMARGO, Luiz Henrique Volpe. O incidente de resolução de demandas repetitivas no projeto de novo CPC: a comparação entre a versão do Senado Federal e a da Câmara dos Deputados. In: FREIRE, Alexandre e outros (org.). Novas tendências do processo civil – estudos sobre o projeto do novo Código de Processo Civil. Salvador: JusPodivm, 2014. v. 3, p. 280.

333 MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Da jurisdição coletiva à tutela judicial plurindividual: evolução da experiência brasileira com as demandas seriais. Revista de Processo, São Paulo: RT, v. 39, n. 237, p. 307-334, nov. 2014; e ATAÍDE JÚNIOR, Jadelmiro Rodrigues. As demandas de massa e o projeto de novo Código de Processo Civil. In: FREIRE, Alexandre e outros (org.). Novas tendências do processo civil. Salvador: JusPodivm, 2014. v. 3, p. 45-47.

334 Sobre o assunto, informações interessantes são relatadas por Aluísio Mendes em palestra realizada no TST em setembro de 2014 (cf. MENDES, Aluísio Gonçalves de Castro. Sistema de solução dos recursos repetitivos cit.).

335 Disponível em: <http://www.processoscoletivos.net/brazilian-class-actions/1064- kapitalanleger-musterverfahrensgesetz-kapmug-english-version>. Acesso em: 13 jun. 2014. 336 MENDES, Aluísio Gonçalves de Castro. Ações coletivas e meios de resolução coletiva de

conflitos no direito comparado e nacional cit., p. 120-128 e p. 279-281.

337 NUNES, Dierle; PATRUS, Rafael Dilly. Uma breve notícia sobre o procedimento-modelo alemão e sobre as tendências brasileiras de padronização decisória: um contributo para o estudo do incidente de resolução de demandas repetitivas brasileiro cit., p. 477.

[...] introduzir no bojo do processo judicial um expediente incidental com a pretensão de estabelecer, a partir do julgamento de uma causa-modelo, um padrão-decisório, de acordo com o qual todos os demais casos repetitivos serão posteriormente examinados e julgados338.

Como ensina Cabral, isso significa “a obtenção de um esclarecimento unitário de características típicas a várias demandas isomórficas, com um espectro de abrangência subjetivo para além das partes”339.

Pode-se dizer, assim, que o incidente permite a cisão da cognição judicial, com a separação do tema de interesse coletivo do de interesse individual340. Isso se verifica da lição de Rolf Strüner, para quem a aplicação dos acórdãos-modelo depende sempre da atuação do juiz de primeiro grau341.

Desse modo, o procedimento pode ser resumido em três fases, sendo a primeira destinada à admissibilidade do incidente por parte do órgão de primeiro grau, a segunda designada para o processamento e o julgamento do incidente por parte do tribunal de segundo grau e a terceira incumbida de promover a aplicação do julgado às demandas que apresentem identidade com o processo-modelo342.

Sobre o assunto, inicialmente cabe destacar que o requerimento para a sua instauração apenas pode ser manejado pelas partes – sendo vedada a sua promoção de ofício pelo juiz –, que deverão definir o respectivo objeto do incidente, indicar as situações fáticas e jurídicas que o fundamentam e apresentar as informações e os meios de prova de pretendem produzir,

338 NUNES, Dierle; PATRUS, Rafael Dilly. Uma breve notícia sobre o procedimento-modelo alemão e sobre as tendências brasileiras de padronização decisória: um contributo para o estudo do incidente de resolução de demandas repetitivas brasileiro cit., p. 478.

339 CABRAL, Antonio do Passo. O novo procedimento-modelo (Musterverfahren) alemão cit., p. 123-146.

340 CAPONI, Remo. Modelo europeu de tutela coletiva no processo civil: comparação entre experiência alemã e italiana. Trad. Michel Roberto Oliveira de Souza. Revista de Processo, São Paulo: RT, v. 36, n. 200, p. 235-269, out. 2011.

341 STRÜNER, Rolf. Sobre as reformas recentes no direito alemão e alguns pontos em comum com o projeto brasileiro para um novo Código de Processo Civil. Revista de Processo, São Paulo: RT, v. 36, n. 193, p. 355-371, mar. 2011.

342 MENDES, Aluísio Gonçalves de Castro. Ações coletivas e meios de resolução coletiva de conflitos no direito comparado e nacional cit., p. 122-123.

demonstrando assim a relevância do mecanismo para a resolução de questões comuns a diversas outras demandas343.

Com efeito, a matéria a ser discutida como questão comum pode ser tanto de fato quanto de direito, desde que relacionada ao mercado de capitais e limitada à pretensão de indenização por perdas e danos ou de cumprimento de contrato, dada a aplicação restritiva do referido instituto na legislação alemã344.

Não obstante, por expressa disposição legal, não é admitido o requerimento para a instauração do musterverfahren quando a causa nele baseada estiver pronta para julgamento, quando a sua admissão puder prolongar ou postergar indevidamente o trâmite do processo ou quando fundado em prova inadequada, alegação injustificada ou ponto controvertido que não necessite de esclarecimento345.

Nessas circunstâncias, não preenchidos os requisitos ou incorrendo em quaisquer das situações obstativas previstas em lei, caberá ao órgão de primeiro grau negar seguimento ao mecanismo.

Por outro lado, não ocorrendo as hipóteses supramencionadas, caberá ao juízo de origem suspender o processo em sede do qual o requerimento foi formulado e de seus termos dar publicidade gratuitamente, por meio de cadastro eletrônico de órgão oficial, em que deverão constar as informações necessárias e suficientes para a sua identificação, cuja exatidão estará a cargo do órgão de primeira instância346.

No caso, o incidente apenas será admitido se, após o transcurso de quatro meses, houver sido constatada a propositura de nove outras solicitações

343 MENDES, Aluísio Gonçalves de Castro. Ações coletivas e meios de resolução coletiva de conflitos no direito comparado e nacional cit., p. 122-123.

344 CAPONI, Remo. Modelo europeu de tutela coletiva no processo civil: comparação entre experiência alemã e italiana cit., p. 235-269.

345 CABRAL, Antonio do Passo. O novo procedimento-modelo (Musterverfahren) alemão cit., p. 123-146.

346 MENDES, Aluísio Gonçalves de Castro. Ações coletivas e meios de resolução coletiva de conflitos no direito comparado e nacional cit., p. 122-123.

para a sua instauração347, ficando a cargo do juízo de origem, em decisão

irrecorrível, a designação, discricionária, da causa representativa de controvérsia, levando em consideração a amplitude da demanda e a abrangência da discussão formulada entre os litigantes348.

Após o juízo de admissibilidade do órgão de primeira instância, o incidente é remetido ao tribunal de segundo grau, que suspenderá os processos em que se identifique a discussão sobre a mesma questão objeto do incidente e escolherá as partes que figurarão como autor e réu no procedimento-modelo, entre titulares das causas paralelas, em decisão irrecorrível349.

Registe-se que a suspensão dos processos é abrangente, alcançado automaticamente aqueles idênticos ou análogos ao procedimento modelo e que estejam em tramitação no mesmo período350.

Na oportunidade, o incidente será conduzido pelos litigantes indicados pelo tribunal de segundo grau, sendo eventualmente permitida a participação dos demais titulares das ações individuais suspensas, que o receberão no estado em que se encontra, mas terão amplos poderes de participação, desde que suas alegações não conflitem com os posicionamentos sustentados pelos representantes dos polos da demanda de que fizerem parte351.

347 MENDES, Aluísio Gonçalves de Castro. Ações coletivas e meios de resolução coletiva de conflitos no direito comparado e nacional cit., p. 122-123.

348 NUNES, Dierle; PATRUS, Rafael Dilly. Uma breve notícia sobre o procedimento-modelo alemão e sobre as tendências brasileiras de padronização decisória: um contributo para o estudo do incidente de resolução de demandas repetitivas brasileiro cit., p. 478 e 479-480. 349 CABRAL, Antonio do Passo. O novo procedimento-modelo (Musterverfahren) alemão cit., p.

123-146. 350 Idem, ibidem. 351 Idem.

Destarte, considerando a abertura à participação ampla dos interessados, as custas são rateadas entre todos os participantes do

musterverfahren352.

Por sua vez, a comunicação dos atos processuais será destinada, em regra, aos representantes dos polos ativo e passivo escolhidos pelo órgão competente, restando aos demais intervenientes deles tomar conhecimento por meio de comunicação pública a ser realizada por órgão oficial, responsável por dar publicidade ao procedimento-modelo353.

Julgado o incidente, o tribunal de segundo grau proferirá decisão- padrão sobre as questões de fato e de direito definidas anteriormente, surtindo efeitos em todos os processos individuais suspensos, que estiverem tramitando contemporaneamente ao procedimento-modelo, cumprindo esclarecer que somente não serão alcançados pelo decisum aqueles que houverem desistido das suas respectivas ações individuais354.

Apesar de existir discussão sobre se a decisão forma coisa julgada ou estabelece efeito vinculante, cumpre registrar a inclinação dos estudiosos da matéria em aceitar a formação de uma coisa julgada atípica, assim denominada porque tem ampliada sua eficácia objetiva (atingindo fatos e fundamentos jurídicos) e subjetiva (abarcando os titulares de demandas paralelas em tramitação no momento em que for proferida a decisão)355.

352 CABRAL, Antonio do Passo. O novo procedimento-modelo (Musterverfahren) alemão cit., p. 123-146.

353 MENDES, Aluísio Gonçalves de Castro. Ações coletivas e meios de resolução coletiva de conflitos no direito comparado e nacional cit., p. 125.

354 CAVALCANTI, Marcos de Araújo. Mecanismos de resolução de demandas repetitivas no direito estrangeiro: um estudo sobre o procedimento-modelo alemão e as ordens de litígios em grupo inglesas. Revista de Processo, São Paulo: RT, v. 103, n. 950, p. 333-377, dez. 2014.

355 CABRAL, Antonio do Passo. O novo procedimento-modelo (Musterverfahren) alemão cit., p. 123-146.

Registre-se que as partes ou os titulares das ações individuais suspensas poderão recorrer da decisão, sendo autorizada a adesão dos demais interessados que não tenham apresentado recurso356.

Por fim, transitada em julgado, a decisão judicial terá eficácia pro e

contra e deverá ser observada pelos órgãos de primeiro grau em que tramita

cada uma das demandas individuais suspensas, respeitadas as circunstâncias fático-probatórias que as delimitam357.

Dito isto, apenas excepcionalmente o limite subjetivo da coisa julgada não atingirá os processos suspensos, sendo a respectiva impugnação quanto à aplicação dos seus efeitos condicionada à demonstração de falha na condução do processo por parte do representante indicado pelo órgão competente358.