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4 O INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE DEMANDAS REPETITIVAS 83 

4.2   Objeto 111 

No direito brasileiro, o mecanismo de resolução de questões comuns que se assemelha aos institutos encontrados no direito comparado é o Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas, embora com eles não se confunda435.

É que, em que pese o tratamento conjunto de processos individuais seja uma realidade constante nos diversos países mencionados436, particularidades culturais e sociais culminam na criação de legislações processuais civis específicas e diversificadas, próprias de cada ente nacional437.

Na Europa, foi importante para esse desenvolvimento o papel desempenhado pela União Europeia, a qual fixou diretrizes para conferir certa padronização ao processo civil dos seus membros, apesar da regulação interna realizada por cada Estado438.

Adotando uma cultura híbrida439 e sofrendo marcante influência do

sistema da common law440, o direito processual civil nacional passa a pugnar

435 MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Da jurisdição coletiva à tutela judicial plurindividual: evolução da experiência brasileira com as demandas seriais cit., p. 307-334.

436 DANTAS, Bruno. Teoria dos recursos repetitivos: tutela pluri-individual nos recursos dirigidos ao STF e ao STJ (arts. 543-B e 543-C do CPC) cit., p. 85 e ss.

437 GALENO, Lacerda. Processo e cultura. Revista de Direito Processual Civil, São Paulo: Saraiva, v. 2, n. 3, p. 74-86, jan.-jun. 1961.

438 PRUTTING, Hanns. Fundamentos y tendencias actuales em le desarrollo del derecho procesal civil europeo. Revista de Processo, São Paulo: RT, v. 35, n. 190, p. 71-91, dez. 2010.

439 GRINOVER, Ada Pellegrini; WATANABE, Kazuo. Recepção e transmissão de institutos processuais civis. Revista de Processo, São Paulo: RT, v. 31, n. 140, p. 143-154, set. 2006.

pela concessão de um tratamento mais célere e uniforme no que concerne às demandas massificadas, conforme já sinalizava a legislação pátria441.

Nessas circunstâncias, a previsão do incidente brasileiro não constitui propriamente uma novidade no cenário nacional, vez que se inspira também em mecanismos como o pedido de uniformização da interpretação da lei nos Juizados Especiais Federais e da Fazenda Pública, a repercussão geral em recurso extraordinário, os recursos repetitivos em sede do Superior Tribunal de Justiça e a suspensão de liminares, para a proteção do interesse público, quando, concedidas em diversos processos, forem suspensas por uma única decisão442, perpetuando a tendência de buscar solução de demandas de massa por meio da criação de modelo decisório – o que observa a experiência pretoriana443.

O mecanismo, assim, constitui um acréscimo às formas de resolução coletiva de conflitos destinadas a enfrentar a litigiosidade repetitiva, figurando como um dos meios para a tutela de direitos pluri-individuais444.

É que o surgimento de uma sociedade de massa, tecnológica e globalizada, baseada na produção e na prestação de serviços padronizadas e em larga escala, traz consigo conflitos igualmente massificados, advindos de

440 MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Divergência jurisprudencial e súmula vinculante. 5. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: RT, 2013. p. 209 e ss.

441 ROSSI, Júlio César. O precedente à brasileira: súmula vinculante e o incidente de resolução de demandas repetitivas. Revista de Processo, São Paulo: RT, v. 37, n. 208, p. 203-240, jun. 2012.

442 MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Da jurisdição coletiva à tutela judicial plurindividual: evolução da experiência brasileira com as demandas seriais cit., p. 307-334.

443 DANTAS, Bruno. Teoria dos recursos repetitivos: tutela pluri-individual nos recursos dirigidos ao STF e ao STJ (arts. 543-B e 543-C do CPC) cit., p. 109.

444 MENDES, Aluísio Gonçalves de Castro; RODRIGUES, Roberto de Aragão Ribeiro. Reflexões sobre o incidente de resolução de demandas repetitivas previsto no projeto de novo Código de Processo Civil cit., p. 191-208. No mesmo sentido, DANTAS, Bruno. Teoria dos recursos repetitivos: tutela pluri-individual nos recursos dirigidos ao STF e ao STJ (arts. 543-B e 543-C do CPC) cit., p. 93 e ss. e LEAL, Marcio Flavio Mafra. Ações coletivas cit., p. 34 e ss.

circunstâncias idênticas ou muito similares, em que se torna necessária a disponibilização de diversos mecanismos para enfrentar o problema445.

Destarte, ao lado das ações coletivas para a tutela de direitos individuais homogêneos são disponibilizados mecanismos para a solução conjunta de ações individuais, os quais conformam procedimentos diferenciados para a resolução coletiva de conflitos446-447.

O posicionamento é reforçado em razão da inoperatividade das ações coletivas no direito brasileiro, as quais encontram problemas por várias razões, especialmente no que se refere à disciplina das demandas de natureza repetitiva448.

Sobre o assunto, incialmente cabe esclarecer que as ações coletivas no Brasil são subutilizadas449, apesar de a doutrina nacional apresentar posição de vanguarda nos estudos sobre as demandas essencial ou acidentalmente coletivas450, existindo inequívoca resistência quanto à efetiva operacionalização e ao aperfeiçoamento da legislação destinada a reger as ações coletivas451.

445 RODRIGUES, Ruy Zoch. Ações repetitivas. Casos de antecipação de tutela sem o requisito da urgência. São Paulo: RT, 2010. p. 25-48.

446 MENDES, Aluísio Gonçalves de Castro. Resolução coletiva de conflitos cit., p. 47-49.

447 CABRAL, Antonio do Passo. A escolha da causa-piloto nos incidentes de resolução de processos repetitivos cit., p. 201-224.

448 CARNEIRO, Paulo Cezar Pinheiro. Os diálogos entre o Código de Defesa do Consumidor e o projeto do novo Código de Processo Civil. Revista Eletrônica de Direito Processual – REDP, v. XIV, ano 8, p. 479, jul.-dez. 2014.

449 GRINOVER, Ada Pellegrini; WATANABE, Kazuo; SADEK, Maria Tereza e outros (coord.). Avaliação da prestação jurisdicional coletiva e individual a partir da judicialização da saúde 2014 (Relatório de pesquisa). CEBEPEJ. São Paulo: FGV, 2014. p. 74-76. Disponível em: <http://cpja.fgv.br/sites/cpja.fgv.br/files/relatorio_final_judializacao_da_saude.pdf> . Acesso em: 14 dez. 2014.

450 GRINOVER, Ada Pellegrini; WATANABE, Kazuo. Recepção e transmissão de institutos processuais civis cit., p. 143-154.

451 MORAES, Voltaire de Lima. A Lei da Ação Civil Pública 25 anos depois (Lei 7.347/1985) e a derrocada do Projeto de Lei 5.139/2009, que pretendia revogá-la. In: MILARÉ, Édis (coord.). A ação civil pública após 25 anos. São Paulo: RT, 2010. p. 851-852.

Como explica Dantas452, no cenário nacional existe uma tendência de

rejeitar uma ideologia coletivizante afirmada por meio das ações coletivas, favorecendo a criação de técnicas de tutela pluri-individual, que constituem apenas e tão somente formas de racionalização de questões comuns de direito, não raro voltadas à solução de demandas em série453.

Nesse sentido, em vez de se privilegiar as ações coletivas com o desenvolvimento de legislação específica, trabalhando e melhorando os seus conceitos e favorecendo a sua aplicação quando necessário, se aposta no desenvolvimento de técnicas assemelhadas ao julgamento por amostragem, nas quais a visão do direito permanece individualizada454.

É o que se observa empiricamente com o insucesso de iniciativas doutrinárias e legislativas, que visam ao aperfeiçoamento das ações coletivas, e com o favorecimento dos procedimentos de resolução conjunta de processos individuais455.

Na prática, isso se expressa pelos obstáculos impostos às ações coletivas, tais quais as limitações atribuídas à propositura de ações para a tutela de direitos individuais homogêneos e a disciplina da coisa julgada e da extensão subjetiva dos efeitos da decisão, que, no primeiro caso, impedem a tutela coletiva de direitos individuais, e, no segundo caso, incentivam a litigiosidade individual456.

Essas inclinações se refletem nas principais diretrizes políticas adotadas pelo Código de Processo Civil de 2015, que objetiva atingir “a simplicidade da linguagem e da ação processual, a celeridade do processo e a efetividade do resultado da ação, além do estímulo à inovação e à

452 DANTAS, Bruno. Teoria dos recursos repetitivos: tutela pluri-individual nos recursos dirigidos ao STF e ao STJ (arts. 543-B e 543-C do CPC) cit., p. 92-93.

453 LEAL, Marcio Flavio Mafra. Ações coletivas cit., p. 35.

454 ROSSI, Júlio César. O precedente à brasileira: súmula vinculante e o incidente de resolução de demandas repetitivas cit., p. 203-240.

455 MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Da jurisdição coletiva à tutela judicial plurindividual: evolução da experiência brasileira com as demandas seriais cit., p. 307-334.

456 CUNHA, Leonardo José Carneiro da. Anotações sobre o incidente de resolução de demandas repetitivas previsto no projeto do novo CPC cit., p. 270-272.

modernização de procedimento, garantindo o respeito ao devido processo legal”457.

Isso também se extrai da exposição de motivos do CPC/2015, a qual registra que as alterações mais expressivas no sistema processual dizem respeito a regras que induzem à uniformidade e à estabilidade da jurisprudência, no intuito de se alcançar a segurança jurídica e a isonomia458. O incidente de resolução de demandas repetitivas é uma das figuras criadas para alcançar esses misteres459.

Como esclarece Teresa Arruda Alvim Wambier, o incidente de resolução de demandas repetitivas tem duas finalidades, quais sejam, combater a dispersão jurisprudencial, que impede a concessão de mesmo tratamento aos jurisdicionados que se encontrem em situações jurídicas semelhantes, e diminuir o número de processos que versem sobre o mesmo assunto, desafogando os órgãos jurisdicionais, para que possam enfrentar situações mais complexas460.

Nesse sentido, por combate à dispersão jurisprudencial se entende a busca por estabilização da interpretação fixada em determinada norma jurídica e atribuição de efetivo respeito às decisões dos tribunais superiores pelos

457 Mensagem de abertura do então presidente do Senado Federal, Senador José Sarney (BRASIL. Senado Federal. Anteprojeto do novo Código de Processo Civil cit.)

458 BRASIL. Código de Processo Civil (2015) cit.

459 Exposição de Motivos do Código de Processo Civil de 2015 (BRASIL. Código de Processo Civil (2015) cit.): “Criaram-se figuras, no novo CPC, para evitar a dispersão excessiva da jurisprudência. Com isso, haverá condições de se atenuar o assoberbamento de trabalho no Poder Judiciário, sem comprometer a qualidade da prestação jurisdicional.

Dentre esses instrumentos, está a complementação e o reforço da eficiência do regime de julgamento de recursos repetitivos, que agora abrange a possibilidade de suspensão do procedimento das demais ações, tanto no juízo de primeiro grau, quanto dos demais recursos extraordinários ou especiais, que estejam tramitando nos tribunais superiores, aguardando julgamento, desatreladamente dos afetados.

Com o mesmo objetivo, criou-se, com inspiração alemã, o já referido incidente de resolução de demandas repetitivas, que consiste na identificação de processos que contenham a mesma questão de direito, que estejam ainda no primeiro grau de jurisdição, para decisão conjunta”.

460 WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Anotações sobre o Projeto de Lei n. 166/2010, para um novo Código de Processo Civil. In: MOREIRA, Alberto Camiña; ALVAREZ, Anselmo Prieto; BRUSCHI, Gilberto Gomes (coord.). Panorama atual das tutelas individual e coletiva – estudos em homenagem ao professor Sérgio Shimura. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 725- 726.

órgãos hierarquicamente inferiores e pelo próprio tribunal, evitando mudanças bruscas de posicionamento.

Já com a diminuição do número de processos se pretende a redução na quantidade de ações e recursos judiciais, em obediência aos princípios da celeridade e da economia processual, baixando a carga de trabalho dos tribunais e aumentando a qualidade da prestação jurisdicional.

A iniciativa faz parte de um conjunto de disposições do CPC/2015 que tem na tutela coletiva sua preocupação principal. Estão nesse grupo, além do incidente e dos recursos repetitivos, os previstos nos arts. 139, X, e 333 (vetado), os quais viriam a favorecer a propositura de ações coletivas para a defesa de direitos coletivos lato sensu.

De efeito, o art. 139, X, possibilita a remessa de ofício aos legitimados coletivos previstos na Lei 7.347/1985 e na Lei 8.078/1990, para, verificando a existência de múltiplas demandas individuais, promoverem a propositura de ação coletiva.

Por sua vez, antes do veto461, o art. 333 permitia a conversão da ação individual em ação coletiva quando identificadas demandas individuais com efeitos coletivos ou demandas pseudoindividuais, que reclamassem a tutela de direitos difusos e coletivos stricto sensu ou a solução de relação jurídica plurilateral, ambos em substituição à tutela individual462.

461 O dispositivo foi objeto de veto presidencial nos seguintes termos: “Da forma como foi redigido, o dispositivo poderia levar à conversão de ação individual e ação coletiva, de maneira pouco criteriosa, inclusive em detrimento do interesse das partes. O tema exige disciplina própria para garantir a plena eficácia do instituto. Além disso, o novo Código já contempla mecanismos para tratar demandas repetitivas. No sentido do veto, manifestou-se também a Ordem dos Advogados do Brasil – OAB” (Mensagem de Veto 56, de 16 de março de 2015 – publicado no Diário Oficial da União de 17 de março de 2015, seção 1, p. 51). 462 A disposição, baseada na iniciativa do professor Kazuo Watanabe (WATANABE, Kazuo.

Relação entre demanda coletiva e demandas individuais. Revista de Processo, São Paulo: RT, v. 31, n. 139, p. 28-35, set. 2006), desenvolvendo conceitos de Luiz Paulo da Silva Araújo Filho (ARAÚJO FILHO, Luiz Paulo da Silva. Ações coletivas: a tutela jurisdicional dos direitos individuais homogêneos. Rio de Janeiro: Forense, 2000), pretendia possibilitar a conversão de ação individual em ação coletiva, no intuito de permitir tratamento adequado à ação movida individualmente cujos efeitos acabariam atingindo a coletividade (v.g., ação individualmente movida contra casa noturna, visando à redução de ruído e beneficiando

Quanto ao incidente de resolução de demandas repetitivas, sua nota distintiva é que, diversamente das mudanças implementadas por meio das legislações anteriores, volta-se à produção de padrão decisório a ser observado de forma vinculante em primeira e segunda instâncias de jurisdição, complementando a disciplina da assunção de competência e dos recursos especial e extraordinário repetitivos.

Isso porque o incidente de resolução de demandas repetitivas, assim como a assunção de competência, constitui um mecanismo para resolução de relevante questão jurídica, de interesse público, e, como os recursos repetitivos, é voltado à tutela de demandas massificadas.

Como consequência, a promoção do incidente pretende trazer consigo celeridade processual, ao abreviar a solução de casos análogos, racionalizando o trabalho desenvolvido pelo julgador, de forma a evitar “o dispêndio de atenção e de recursos com controvérsias que já tiveram a complexidade esmaecida”463 e, com isso, limitar a apreciação das demandas apenas às questões novas, que ainda não houverem sido adequadamente equacionadas.

Dito isso, resta saliente a sua intenção de ser útil para a resolução de casos presentes e futuros, dada a importância do posicionamento fixado pelo incidente e pela imposição da sua necessária contemplação.

toda a comunidade) e em razão da necessidade de conferir tratamento unitário a titulares de uma mesma relação plurilateral. No primeiro caso permitir-se-ia a proteção de direitos difusos e coletivos por meio de decisão com efeitos erga omnes e, no segundo, seria admitido tratamento unitário a idêntica relação jurídica de direito material, melhorando as formas de tratamento coletivo de demandas, com a tutela de categorias intermediárias, que não se encontram propriamente abrangidas nem como direito individual, nem como direito coletivo. As modificações na proposta do professor paulista e a incompreensão no que se refere à utilização do instituto parecem ter levado à rejeição da proposta cujo argumento central se situa na inconstitucionalidade decorrente da violação do direito de ação. Contra esse argumento, esclarece a professora Ada Pellegrini Grinover que o dispositivo viria a corrigir a forma de instrumentalizar direito, impropriamente buscado por meio de ação individual, não configurando, pois, ofensa ao direito de ação (GRINOVER, Ada Pellegrini. A coletivização de ações individuais após o veto. Disponível em: <http://www.direitoprocessual.org.br/download.php?f=a71b66f664b0f99500084d1c256965b e>. Acesso em: 10 abr. 2015).

463 VIAFORE, Daniele. As ações repetitivas no direito brasileiro: comentários sobre a proposta de “incidente de resolução de demandas repetitivas” do projeto de novo Código de Processo Civil cit., p. 100.

Pelo exposto, o incidente de resolução de demandas repetitivas constitui mecanismo com características próprias, não dissociado das demais iniciativas encontradas na legislação nacional, mas que, junto a elas, pretende dar tratamento às demandas individuais em série, por meio da fixação de posicionamentos que sejam úteis à solução dos casos concretos.