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CAPÍTULO 2 A RESPONSABILIDADE PENAL DA PESSOA JURÍDICA POR

2.4. PRINCIPAIS SISTEMAS DE RESPONSABILIDADE

2.4.2 O sistema francês

Na França, após a Revolução Francesa, foi arquitetado um Direito Penal baseado na responsabilidade pessoal e na culpabilidade fundada na reprovação moral do delinquente. Dessa forma, o ordenamento jurídico francês não responsabilizava as pessoas coletivas192.

A responsabilidade penal da pessoa jurídica foi um dos principais assuntos tratados pelo projeto Paul Matter de 1938 e os anteprojetos de Código Penal de 1978 e de 1983. O

188PRADO, Luiz Regis. Responsabilidade penal da pessoa jurídica: fundamentos e implicações. In: PRADO, Luiz Regis; DOTTI, René Ariel (coordenadores). Responsabilidade penal da pessoa jurídica: em defesa do princípio da imputação penal subjetiva. 3. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011. p. 143.

189SANTIAGO, Ivan. Responsabilidade penal da pessoa jurídica na lei de crimes ambientais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005. p. 108 e 109.

190

CASTELO BRANCO, Fernando. A pessoa jurídica no processo penal. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 81. 191CASTELO BRANCO, Fernando. A pessoa jurídica no processo penal. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 82. 192BANDEIRA, Gonçalo Nicolau Cerqueira Sopas de Melo. “Responsabilidade” penal económica e fiscal dos

entes colectivos à volta das sociedades comerciais e sociedades civis sob a forma comercial. Coimbra:

Código Penal francês, em vigor desde 1º de março de 1994, adotou o princípio da responsabilidade penal da pessoa jurídica:

As pessoas morais, com exceção do Estado, são penalmente responsáveis, segundo as distinções dos arts. 121-4 a 121-7 e nos casos previstos em lei ou regulamento pelas infrações praticadas por sua conta, pelos seus órgãos ou representantes. Entretanto, as coletividades territoriais e suas entidades só são responsáveis pelas infrações praticadas no exercício de atividades suscetíveis de ser objeto de convenções de delegação de serviço público. A responsabilidade penal das pessoas jurídicas não exclui a das pessoas físicas quando autores ou partícipes dos mesmos fatos 193.

No artigo mencionado, está previsto que somente nos casos previstos em lei ou regulamento é possível que exista responsabilidade penal da pessoa coletiva. Dessa forma, no Código Penal francês há a responsabilização penal quanto aos crimes de homicídio, tráfico de entorpecentes, lavagem de dinheiro, furto, extorsão, abuso de confiança, falsificação de documentos, terrorismo, dentre outros. Existem também diversas leis posteriores ao Código Penal francês que preveem a responsabilização penal das pessoas jurídicas, a título de exemplo temos a Lei de adequação de 16 de Dezembro de 1992 e a Lei de 2 de fevereiro de 1995 que trata da proteção do meio ambiente194.

Entretanto, na França, diferentemente do que ocorre em outros países, a exemplo da Alemanha, Espanha e Brasil, o princípio da culpabilidade não tem valor constitucional. Na Europa, apesar das recomendações do comitê de ministros do Conselho da Europa, “cabe ao legislador nacional a escolha do tipo de responsabilidade que melhor se adapte à exigência de efetividade, de proporcionalidade e de dissuasão”195. Nesse sentido, o legislador francês preocupou-se com a eficácia da repressão penal.

No ordenamento jurídico francês, há a previsão do princípio da personalidade da pena. Entretanto, a adoção desse princípio não é considerada um obstáculo à responsabilização penal da pessoa jurídica visto que a pessoa jurídica já era considerada uma realidade jurídica

193PRADO, Luiz Regis. Direito penal do ambiente. 3. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011. p. 138.

194BANDEIRA, Gonçalo Nicolau Cerqueira Sopas de Melo. “Responsabilidade” penal económica e fiscal dos

entes colectivos à volta das sociedades comerciais e sociedades civis sob a forma comercial. Coimbra:

Almedina, 2004. p. 244-245.

195PRADO, Luiz Regis. Responsabilidade penal da pessoa jurídica: fundamentos e implicações. In: PRADO, Luiz Regis; DOTTI, René Ariel (coordenadores). Responsabilidade penal da pessoa jurídica: em defesa do princípio da imputação penal subjetiva. 3. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011. p. 145.

com vontade coletiva própria. “Além disso, fala-se em uma responsabilidade pessoal e não individual, e que tal princípio não tem validade absoluta”196.

Essa orientação foi adotada pela primeira vez por um país de cultura latina pertencente à família romano-germânica de direito que influenciou a formação do direito escrito moderno, a título de exemplo, os códigos napoleônicos e o movimento codificador197.

No ordenamento jurídico francês, para que ocorra a responsabilidade da pessoa jurídica é necessária a constatação da responsabilidade delegada também conhecida como responsabilidade cumulativa ou teoria do órgão, ou seja, exige-se o cometimento da infração por um órgão ou representante da pessoa jurídica. Assim, deve estar provada a ação ou omissão das pessoas físicas que atua como órgão ou representante legal da empresa. Nesse sentido, “a pessoa colectiva só actua por intermédio de um acto ou omissão dum ser humano, os quais constituem razão da sua eventual responsabilidade penal”198.

Outro requisito para a responsabilização criminal do ente coletivo é a exigência de atuação da pessoa física em proveito ou interesse da pessoa jurídica. Assim, se a pessoa física agiu ou se omitiu em razão de interesse próprio ou de um terceiro, ou contra os interesses da empresa, não há a responsabilização penal da pessoa jurídica199.

Importante ressaltar a responsabilidade por reflexo em que “as infrações que podem ser objeto de denúncia às pessoas jurídicas devem ter sido cometidas por pessoas físicas”200. Dessa forma, a responsabilidade penal da pessoa jurídica não exclui a responsabilidade penal da pessoa física pelos mesmos fatos. Ademais, não ficou esclarecido na lei se a responsabilidade penal da pessoa física é uma exigência sine qua non de responsabilidade da pessoa jurídica, ou se pode ocorrer a responsabilidade objetiva. Sobre a questão:

(...) o órgão ou representante tem que necessariamente actuar (ou omitir) com dolo ou negligência e tem que ser efectivamente culpado, i.e., não pode actuar ao abrigo

196PRADO, Luiz Regis. Direito penal do ambiente. 3. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011. p.137.

197

PRADO, Luiz Regis. Responsabilidade penal da pessoa jurídica: fundamentos e implicações. In: PRADO, Luiz Regis; DOTTI, René Ariel (coordenadores). Responsabilidade penal da pessoa jurídica: em defesa do princípio da imputação penal subjetiva. 3. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011. p. 146.

198

BANDEIRA, Gonçalo Nicolau Cerqueira Sopas de Melo. “Responsabilidade” penal económica e fiscal dos

entes colectivos à volta das sociedades comerciais e sociedades civis sob a forma comercial. Coimbra:

Almedina, 2004. p. 245-246. 199

BANDEIRA, Gonçalo Nicolau Cerqueira Sopas de Melo. “Responsabilidade” penal económica e fiscal dos

entes colectivos à volta das sociedades comerciais e sociedades civis sob a forma comercial. Coimbra:

Almedina, 2004. p. 245-246.

200SANTIAGO, Ivan. Responsabilidade penal da pessoa jurídica na lei de crimes ambientais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005. p. 115.

de causas de justificação, em estado de erro ou ser inimputável. Ora, a doutrina parece ser largamente favorável à tese da responsabilidade delegada ou reflexa, pois exige uma omissão ou actuação culpável do órgão ou representante legal. Esta arquitectura de responsabilidade jurídica acarreta, pois, a exigência de marcação do injusto (ilícito) e da culpa das pessoas individuais autoras que actuam ou omitem em representação ou como órgãos da pessoa colectiva. Para chegar à responsabilidade da pessoa colectiva, teremos que fazer derivar a imputação da responsabilidade da pessoa física, que terá que actuar ou omitir com dolo ou negligência devidamente comprovadas: daí também rotular-se de responsabilidade rotulada201.

Destaca-se um importante caso na qual um tribunal de primeiro grau denominado Tribunal Correctonnnel de Verdun prolatou decisão referente à condenação criminal de uma pessoa jurídica em que um empregado de uma cooperativa agrícola morreu sufocado. Quando o empregado “ingressou no silo para limpá-lo, outro empregado pôs em funcionamento um canal de aspiração, ligado à calha do silo, que aspirou, aproximadamente, quatro toneladas de soja de outro silo, que foram despejadas sobre a vítima”. Não foi verificada a existência de qualquer aviso de segurança no local. A sociedade cooperativa e o diretor geral foram condenados por homicídio involuntário. Não houve recurso da condenação202.

A condenação da pessoa jurídica ocorre em decorrência do reconhecimento da responsabilidade da pessoa natural que a dirige. No caso Verdun, o empregado que acionou os mecanismos que acarretaram a morte da vítima não foi condenado, mas houve condenação da cooperativa agrícola e de seu dirigente por omissão de informação, treinamento e aparelhamento203.

O legislador brasileiro inspirou-se no modelo francês no projeto que resultou na Lei de Crimes Ambientais, Lei 9.605 de 1998, inclusive quanto aos requisitos para a imputação de responsabilidade penal da pessoa jurídica. Destaca-se que, no Brasil, para que ocorra a denúncia de um crime à pessoa jurídica, é necessário que a ação ou omissão tenha sido praticada por uma pessoa física e que seja comprovado o especial fim de agir, em que a tomada de decisão do colegiado, representante legal ou contratual vise ao interesse ou benefício da entidade.

Entretanto, ao contrário da legislação brasileira, na França é imprescindível a previsão expressa, no tipo legal, da responsabilidade penal do ente coletivo. Conforme o princípio da especialidade, há a definição de modo taxativo das infrações penais passíveis de serem

201

BANDEIRA, Gonçalo Nicolau Cerqueira Sopas de Melo. “Responsabilidade” penal económica e fiscal dos

entes colectivos à volta das sociedades comerciais e sociedades civis sob a forma comercial. Coimbra:

Almedina, 2004. p. 250.

202CASTELO BRANCO, Fernando. A pessoa jurídica no processo penal. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 76. 203CASTELO BRANCO, Fernando. A pessoa jurídica no processo penal. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 77.

imputadas à pessoa jurídica. “O legislador brasileiro ao descrever as normas penais incriminadoras na Lei dos Crimes Ambientais, não explicitou sobre qual delas poderia recair a responsabilidade da pessoa jurídica, e tampouco qual a pena a ser aplicada”204.

Ademais, no ordenamento jurídico francês, foi observado que a responsabilização penal da pessoa jurídica não traria modificações apenas no Direito Penal material, mas também no âmbito processual. Dessa forma, foi criada a chamada Lei de Adaptação de 15 de dezembro de 1992, Lei 92-1336/92. No Brasil, os críticos da responsabilização penal da pessoa jurídica argumentam que não houve adaptação da responsabilização do ente moral prevista na Lei de Crimes contra o Meio Ambiente com o ordenamento jurídico, como um todo205.