• Nenhum resultado encontrado

Os dogmas do processo civil versus a necessidade de mudança

No documento DOUTORADO EM DIREITO São Paulo 2012 (páginas 35-38)

CAPÍTULO 2: DESJUDICIALIZAÇÃO

2.2 Os dogmas do processo civil versus a necessidade de mudança

A lei de arbitragem representou um grande marco no sentido de mudança cultural da sociedade brasileira. O artigo 18 da Lei no 9.307/1996 definiu que o árbitro é juiz de fato e de direito, e o artigo 31 dessa lei deu à sentença arbitral os mesmos efeitos da decisão proferida pelos órgãos do Poder Judiciário. Nos momentos que se seguem às grandes transformações, verifica-se, como de fato ocorreu, certa reação emocional na interpretação dos novos dispositivos legais, tanto que por um longo tempo bradou-se pela inconstitucionalidade da Lei de Arbitragem.

70 Folha de São Paulo - A10 – Poder – segunda-feira, 23 de maio de 2011. Flávio Ferreira e Rogério Pagnan, de São Paulo.

Paulo de Tarso Santos registra que as instituições jurisdicionais são criações culturais, inerentes ao comportamento humano e reguladoras da convivência social e, nessa perspectiva, o homem criador das instituições pode alterá-las, assumindo, em consequência, uma correlata mudança de hábito. Tal mudança constitui um processo sociocultural, cuja adaptação é lenta e paulatina.72-73

Segundo Tarso, toda atividade humana está sujeita ao hábito e, quando frequentemente repetida, torna-se um padrão cultural. A jurisdição estatal tem a seu favor um hábito criado ao longo dos anos – ela está incorporada, interiorizada em cada um dos jurisdicionados, estudiosos ou aplicadores do direito –, sendo mais fácil aceitá-lo a aderir a uma cultura nova, como aquela da jurisdição privada.74

Todavia, não se deve deixar acomodar aos padrões arcaicos e sedimentados – os hábitos podem e devem ser revistos. É necessário romper tradições, mitos e mentalidades conservadoras.75 O âmbito institucional jurídico não é lugar para dogmas, uma vez que haveria inevitável contradição com a mutabilidade da cultura e da sociedade. As normas – materiais e processuais – devem ser direcionadas para uma realidade social concerta, em um momento histórico determinado, de forma a atender as necessidades específicas daqueles que estão sob o seu comando. Caso haja alteração das necessidades, deve existir espaço e

72 SANTOS, Paulo de Tarso. Arbitragem e poder judiciário: (lei 9.307, 23.09.96): mudança cultural. São Paulo: LTr, 2001. p.75-6.

73 Sobre “mudanças”, interessante registrar o pensamento do sociólogo, e também ex-Presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, em seu último livro: “O novo, o importante para mim é uma mudança de cabeça, de comportamento, de cultura e a aceitação de que há novas formas de fazer com que a sociedade avance que não são controladas por um partido ou pelo Estado”. (...) “A sociedade que está emergindo é estranha e complexa. O que é uma maneira elegante de dizer que não se sabe exatamente o que ela é, como funciona e para onde está indo. O primeiro passo é reconhecer as mudanças. Quem não conhece as mudanças se condena a viver angustiado, pois vai julgar o que está acontecendo hoje pelo padrão do passado. Vai achar tudo ruim ou vai dizer ‘não sei onde vai dar isso’. O medo é uma reação diante do desconhecido”. (...) “É difícil se libertar do peso das idéias antigas... No mundo real, as práticas mudam, mas o discurso tem dificuldade de acompanhar a mudança. Fica defasado.” Por fim, vale apontar que o ex-Presidente também reconhece haver “um deslocamento de poder dos Estados para atores não estatais.” CARDOSO, Fernando Henrique. A soma e o resto: um olhar sobre a vida aos 80 anos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011. p.70-85-89-99.

74 SANTOS, op.cit., p.77.

75 MORAIS, José Luis Bolzan de; SPENGLER, Fabiana MARION. Mediação e Arbitragem. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. p.32.

condição para inserções harmônicas e alterações compatíveis da norma para com a nova realidade social.76

Arnoldo Wald menciona a disposição de alguns estudiosos do processo em evitar todo e qualquer evento externo que os perturbem, que os tirem do conforto dos padrões habituais; por outro lado, a disposição de outros em aceitar e efetivamente romper com as tradições, rejeitando até mesmo os princípios de base. Para Wald, os juristas estão perplexos, tentando conciliar o antigo direito às novas necessidades sociais e econômicas, e nessa toada, manter tudo aquilo que é útil e substituir o que se tornou obsoleto.77

Nessa esteira, pode-se afirmar com certa segurança que um dos principais problemas do processo civil moderno reside na superação dos “mitos” criados pela ciência jurídica, a começar pelo conceito de jurisdição.78

Segundo José Augusto Delgado,

[...] há se educar a população para o atual estágio da denominada entrega da prestação jurisdicional, quando não mais se constitui privilégio absoluto do Estado a responsabilidade pelo seu manejo. Há de se ter em consideração que os direitos e garantias fundamentais vistos na era contemporânea não podem receber interpretação idêntica a que se fazia em épocas passadas. Vivencia-se, na atualidade, uma transformação do modelo até então adotado para o Estado, buscando-se novas estruturas para o seu funcionamento.79

O direito processual passa por um momento de grandes transformações. O processo sociocultural de aceitação da jurisdição privada iniciou-se no Brasil há aproximadamente 15 anos e ainda encontra-se em desenvolvimento. Assim como hoje é bastante natural afirmar que o árbitro pode dizer o direito, haverá um momento em que o agente privado poderá

76 SANTOS, Paulo de Tarso. Arbitragem e poder judiciário: (lei 9.307, 23.09.96): mudança cultural. São Paulo: LTr, 2001. p.78-9.

77 WALD, Arnoldo. A Evolução do Direito e a Arbitragem. In: LEMES, Selma Ferreira; CARMONA, Carlos Alberto; MARTINS, Pedro Batista (Coord.). Arbitragem: estudos em homenagem ao Prof. Guido Fernando da Silva Soares. São Paulo: Atlas, 2007. p.456.

78 FIGUEIRA JÚNIOR, Joel Dias. Arbitragem, Jurisdição e Execução. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. p.110.

79DELGADO, José Augusto. Arbitragem no Brasil: Evolução Histórica e Conceitual. Disponível em: <http://www.tex.pro.br/tex/listagem-de-artigos/318-artigos-mar-2011/7915-a-arbitragem-no-brasil-evolucao- historica-e-conceitual>. Acesso em: 19 dez. 2011.

realizar o direito, por meio de práticas executivas, sem que isso seja considerado uma aberração jurídica.

O modelo de jurisdição privada – desjudicialização do poder de dizer o direito – “em nada afronta a Lei Maior, enfraquece ou desprestigia o Judiciário. Muito pelo contrário, vem para minimizar a crise jurisdicional e permitir ao Estado-juiz que dirija sua atividade principal à solução dos conflitos que não podem, por questões de ordem pública, ser conhecidos pela justiça privada”. 80

Entende-se que a proposta da desjudicialização da execução – ou do poder de império – também não afronta a Constituição Federal, uma vez que o devedor que entender que a execução realizada por um agente privado desenvolve-se de forma injusta ou ilegal poderá socorrer-se do Judiciário por meio da oposição de embargos, assegurando-se, assim, os princípios constitucionais do contraditório, da ampla defesa e até mesmo do acesso à Justiça, ainda que sob um novo prisma.

A aceitação de um novo padrão cultural não é das tarefas mais fáceis, mas não se pode apegar ao hábito. É necessário revisitar conceitos, padrões, dogmas, para que se possa atender às necessidades específicas da nova realidade social.

No documento DOUTORADO EM DIREITO São Paulo 2012 (páginas 35-38)