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Os estados fisiológicos e a atividade fermentativa das leveduras

O conceito de estado fisiológico em fermentação foi definido por Kons- tantinov e Yoshida (1989), como uma característica fisiológica de uma população de células decorrente de mudanças ocorridas nas condições de cultivo. Em cultivos em batelada ou contínuos, o estado fisiológico da po- pulação de células não é uma característica constante e deve refletir mu- danças esperadas e não esperadas no comportamento da planta industrial, tal que pequenas alterações na estratégia do processo possam contornar os eventuais problemas. A caracterização do estado fisiológico das células dos microrganismos deveria ser mais bem explorada em biotecnologia, uma vez

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que a velocidade e eficiência dos processos dependem do estado fisiológico das células. Variáveis intracelulares como concentrações de NADH, ATP, nível de enzimas chaves das vias metabólicas e metabolitos estão relaciona- dos com as atividades de crescimento e formação de produtos e poderiam ser usados como indicadores de estados fisiológicos. Dessa forma, medidas desses indicadores poderiam ser usadas como uma forma de diagnóstico sobre o andamento do processo, tal que ações preventivas pudessem ser to- madas para evitar perdas durante o processo de produção do etanol. As oscilações em estados fisiológicos das células

Durante fermentações destinadas à produção de etanol combustível em bateladas alimentadas sucessivas, a levedura fica exposta a estresses suces- sivos diversos, sobretudo em escala industrial. Assim, o estado fisiológico do fermento varia entre ciclos de fermentação. A levedura também fica exposta a estresses durante as paradas do processo que ocorrem nas des- tilarias, sobretudo por problemas relacionados com o corte e transporte da cana-de-açúcar em períodos de chuva contínua. É desejável que o estado fisiológico das células possa ser mantido de forma econômica e eficiente. Para tal, é necessário que se disponha de métodos de avaliação da vitali- dade ou atividade metabólica antes do uso do fermento, bem como definir formas de condicionar o fermento, tal que as células possam desenvolver resistência a essas formas de estresses. Diversos eventos ocorrem durante a interrupção da atividade fermentativa, causando as seguintes alterações (Gabier et al., 2005):

• na capacidade de cultivo (“cultivability”);

• na viabilidade (indicativa da capacidade de reoxidar o NADH) que diminui, embora lentamente, com as perdas em trealose;

• a vitalidade ou a atividade metabólica reduz a capacidade de cresci- mento e o teor de trealose;;

• no potencial de membrana, pois a despolarização da membrana causa quedas no pH intracelular e prejuízo no cultivo das células;

• no pH intracelular;

• na quantidade de produtos inibitórios produzidos (por exemplo, eta- nol, acetaldeído, ácido acético);

Células de levedura em fase lag ou estacionária apresentam limitações quanto ao crescimento, enquanto que em fase logarítmica a predominância das atividades de crescimento ou fermentação depende da densidade das células no processo e da aeração (efeitos Pasteur e Crabtree).

Estágio das células da levedura no ciclo de divisão celular e atividade de crescimento

As características das células variam com o estágio do ciclo de divisão celular. Parte das células da população de leveduras pode não apresentar brotos em fase logarítmica. Na ausência de brotos, as células apresentam maiores resistências ao choque térmico, níveis de transcrição e tradução re- duzidos e maior resistência a diversos estresses (Plesset et al., 1987).

Muitos microrganismos sobrevivem em fase estacionária induzida por ambientes pobres em nutrientes. Conforme já descrito (Werner-Washbur- ne et al., 1993), células da levedura Saccharomyces cerevisiae em fase es- tacionária são fisiológica e bioquimicamente distintas de células em fase exponencial. Na fase estacionária, a parede celular torna-se mais rígida, menos porosa, enquanto as mitocôndrias estão em maior número e são mais arredondadas. Ao aproximarem-se da fase estacionária, as células passam a sintetizar proteases (Jones, 1984) que se acumulam em várias inclusões celulares, enquanto carboidratos de reserva, como glicogênio e trealose, se acumulam no citoplasma. Outra característica das células em fase estacio- nária consiste na capacidade de estas sobreviverem por longos períodos em água sem adição de nutriente. A fase estacionária é caracterizada por dimi- nuição da velocidade de crescimento e diminuição progressiva na síntese de proteínas (diminuição de até 95%), bem como acúmulo de RNAs (Bouche- rie, 1985) e, por fim, o ciclo celular é totalmente interrompido.

O crescimento é afetado por condições de operação do processo (tempe- ratura, pH) e por propriedades intrínsecas, tais como o tipo de linhagem, meio de cultura, estado fisiológico do inóculo e design do processo. Os pa- râmetros relacionados com as diferenças em estado fisiológico do inóculo são independentes do tipo de linhagem e meios de cultura utilizados (Di Serio et al., 2003). O aumento do volume das células e a proliferação são processos altamente regulados, e perdas em atividade de regulação causam a inviabilidade celular (Granot; Snyder, 1991).

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O controle da atividade da levedura (crescimento e fermentação em pro- dução d e etanol combustível) e sua viabilidade são parâmetros críticos na otimização de um processo industrial. Os microrganismos adaptam-se aos diversos ambientes para sobreviver e multiplicar-se. No entanto, poucos estudos descrevem a adaptação da levedura ou recuperação da atividade fermentativa e crescimento frente a estresses físicos e químicos durante a fermentação (Sanchez-Gonzales et al., 2009).

Variações em síntese de proteínas

A síntese de proteína ocorre durante o ciclo de divisão celular e cresci- mento das células filhas ou brotos. Na fase lag, o metabolismo celular está ativado para a progressão no ciclo, passando pelas fases S e G2, fase mitótica e, por fim, a formação da célula broto. A velocidade de síntese de proteínas aumenta muito rapidamente (20 minutos) quando as células do Saccha-

romyces cerevisiae estão em fase lag (Brejning; Jespersen, 2002). Neste perío- do de síntese intensa de proteínas, os brotos são liberados das células. Como descrito por esses autores, a velocidade de síntese de proteínas também au- menta quando as células são transferidas de um meio pobre para um meio rico, sendo isso acompanhado por aumento das proteínas totais, sobretudo as proteínas ribossomais. O acompanhamento da expressão de proteínas in- duzidas na fase lag poderia ser útil no controle e otimização de fermentações industriais.

Variações em níveis de trealose

Glicogênio e trealose estão relacionados com o aumento da viabilidade e vitalidade por serem fontes intracelulares de energia. A manutenção de funções celulares essenciais e a sobrevivência das células durante a esto- cagem dependem do nível de trealose interna (François; Parrou, 2001). A perda de viabilidade está relacionada com o decréscimo da reserva de carboidratos das células, e a queda em teores de trealose induz deterioração no processo de polarização da membrana. Estudos anteriores mostraram que a retenção de um nível alto de trealose durante a fermentação não evita as perdas na capacidade fermentativa, quando a levedura é utilizada para

fermentar massas congeladas de pães. Isso indica que o início da fermen- tação desencadeia uma rápida mobilização da trealose com consequente diminuição da resistência a estresses, mesmo quando os teores iniciais de trealose são altos (Van Dijck et al.,1995). Quando as células perdem a polaridade, o pH interno cai e a viabilidade diminui lentamente (Gabier et al., 2005). A trealose também atua como um protetor contra o estresse oxidativo produzido durante o processo fermentativo (Saharan; Sharma, 2010). A mobilização da trealose é observada quando as células em fase es- tacionária passam a se multiplicar com mudanças na atividade das enzimas essenciais, tais como glutationa redutase que está envolvida com a sobre- vivência e recuperação das células frente a estresses (Sebollela et al., 2004). A atividade destas enzimas é praticamente abolida a 40°C, uma tempera- tura que induz resposta fisiológica para acúmulo de trealose. A inibição da glutationa redutase pela trealose aumenta em presença de etanol, indi- cando que a atividade enzimática é drasticamente afetada pelo etanol. A inibição enzimática pode ocorrer mesmo após um estresse, caso a trealose acumulada não seja prontamente degradada (ibidem). Um estudo recen- te mostrou que as leveduras selvagens acumulam menos trealose do que as comerciais (Barrajón et al., 2011).

Variações em níveis de glicerol

O glicerol é sintetizado em resposta a diversas situações de estresse. A síntese do glicerol depende de vários fatores, tais como a linhagem selecio- nada, quantidades de células no inóculo, concentração de íons bissulfito presente no mosto, concentração de açúcares, estresse osmótico, tipo de fonte de nitrogênio e sua concentração, pH e condições de aeração (Ough et al., 1972; Gardner et al., 1993; Albers et al., 1996; Ribéreau-Gayon et al., 2000; Carrasco et al., 2001; Torija et al., 2002). No entanto, quantidades pequenas de dióxido de enxofre ou SO2 (100 ppm) diminuem significativa- mente a síntese de glicerol (Rankine; Bridson, 1971). O acúmulo de glicerol interno está inversamente correlacionado com a temperatura de fermenta- ção na fabricação de vinhos. As células que não conseguem sintetizar ou reter glicerol interno fermentam lentamente ou deixam de fermentar em baixas temperaturas.

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Durante o crescimento anaeróbico, o NADH formado não pode ser oxi- dado pelo oxigênio, sendo reoxidado via formação de glicerol. O acúmulo de glicerol é causado pela necessidade de as células manterem um balanço re- dox favorável (Berovic et al., 2007). As interações das linhagens de levedura entre si, a temperatura e a agitação também afetam a produção de glicerol (Remize et al., 2000). Portanto, o glicerol interno, além de atuar como um protetor osmótico, também contribui com a manutenção do balanço redox das células, em caso de estresse osmótico. A produção elevada de glicerol está relacionada com o aumento na expressão de duas isoformas da enzima glicerol-3-fosfato desidrogenase Gpd1p e Gpd2p (Pigeau; Inglis, 2005). Variações em níveis de acetaldeído e acetato

É bem conhecido que o acúmulo de produtos inibitórios durante a fer- mentação tais como etanol, ácido acético e acetaldeído afetam o crescimen- to e a viabilidade, bem como a estrutura e função das membranas celulares que, por sua vez, regulam o transporte de nutrientes. O acetaldeído é alta- mente reativo e biologicamente tóxico além de ser muito polar e isso pode causar estresse aquoso (Hallsworth, 1998). A produção de acetaldeído varia nas diferentes linhagens de levedura, na faixa de 0,5 mg L-1 a 700 mg L-1 (Liu; Pillone, 2000).

A adaptação a um meio acidificado com ácido acético protege as células da levedura Saccharomyces cerevisiae contra a morte celular programada ou apoptose induzida por este ácido (Giannattasio et al., 2005). Além disso, a formação de aldeídos e ácido acético diminui com a elevação na quantidade do inóculo em fermentações realizadas na presença de concentrações altas de açúcar (Arshad et al., 2008). Em mostos fermentados de vinho, as con- centrações de acetaldeído variam normalmente entre 0,3 g.L-1 a 0,4 g.L-1 (Martinez et al., 1997). Concentrações altas de acetaldeído adicionado (≥ 400mg L-1) reduzem a duração da fase lag e a velocidade específica de cres- cimento (Stanley et al., 1997). Por outro lado, em concentrações menores de acetaldeído ( 580mg L-1), a fase lag e a velocidade específica de cresci- mento aumentaram tanto em condições aeróbicas quanto anaeróbicas, mas somente em presença de 3% a 6% de etanol (idem, 1993). Por fim, sugere-se que o acetaldeído inicialmente produzido poderia ser utilizado como um marcador da atividade fermentativa em processos industriais, uma vez que varia com a linhagem da levedura (Cheraiti et al., 2010).

O bissulfito: preservativo químico

Outros produtos inibitórios estão presentes no melaço a ser fermenta- do. Um deles é o bissulfito de sódio que é usado como agente antioxidante e também como antimicrobiano na fabricação de vinhos penetrando nas células de levedura por difusão simples. No entanto, o bissulfito é forma- do em pequenas quantidades pelas células de levedura a partir do ânion sulfato, sendo um precursor da síntese de aminoácidos sulfurados. Den- tro das células, o dióxido de enxofre (SO2) é dissociado em SO32- e HSO

3 -, causando redução no pH intracelular e consequentemente perda de viabili- dade (Walker, 1998). Embora S. cerevisiae tolere níveis mais altos de sulfito (2,0% a 3,1% em p/v) do que as bactérias e leveduras selvagens, níveis ele- vados causam fermentações lentas (sluggish) e até a interrupção prematura da fermentação (stuck fermentations) como já descrito (Boulton, 1996; Free- man; Donald, 1957).

Os efeitos tóxicos do etanol produzido

Concentrações de etanol acima de 4%-6% (v/v) podem afetar seriamente os processos celulares. Entre as estratégias usadas para aumentar a sobrevi- vência das células na presença de altas concentrações de etanol estão a indu- ção de alterações na composição e fluidez (ex., aumento nos níveis de ácidos graxos, aminoácidos e ergosterol) das membranas, bem como o aumento da expressão de proteínas de choque térmico (Ding et al., 2009). Na verdade, o efeito inibitório do etanol e de outros produtos metabólicos torna-se evi- dente durante ciclos sucessivos de fermentação com reutilização de células, ao longo dos quais ocorre o acúmulo intracelular e gradual dos subprodutos tóxicos nas células (Marques; Serra, 2004).

Variações nos níveis das espécies reativas do oxigênio molecular

É bem conhecido que as mitocôndrias geram espécies reativas do oxi- gênio molecular (ROS) durante a respiração celular. Estas espécies reati- vas são degradadas pelo sistema enzimático de defesa das mitocôndrias à

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medida que são formadas. Temperaturas elevadas estimulam o acúmulo de espécies reativas do oxigênio na mitocôndria das leveduras (Davidson; Schiestl, 2001). A expressão de genes que codificam enzimas que destroem peróxidos (superóxido dismutase e catálase) foram observados em levedu- ras (Zhang et al., 2003). Radicais livres também são gerados durante conge- lamento e desgelo das células de levedura (Park et al., 1998).

Nutrientes e seus efeitos sobre atividade fisiológica