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CAPÍTULO V MÉTODO

5.1. O Design de Investigação

5.2.1.1. Os Paradigmas Dominantes

5.2.1.1.1 O Paradigma Interpretativista

O interpretativismo, também denominado por construtivismo ou naturalismo (Guba & Lincoln, 1994), constitui o paradigma predominante no âmbito da abordagem qualitativa. Enraizado na posição filosófica do idealismo, o interpretativismo rejeita a visão objectiva da realidade, considerando que os actores sociais apreendem o mundo em função da cultura e dos valores em que estão embebidos (Denzin, 1992). Este paradigma congrega diversas teorias, das quais se destacam o construtivismo social, a fenomenologia ou a hermenêutica, que diferem em relação a alguns pressupostos e aos métodos que aplicam. Em comum, todas estas teorias procuram explorar os significados subjectivos que as pessoas atribuem à realidade, i.e., a forma como os indivíduos de um dado grupo ou contexto apreendem, compreendem e atribuem significado ao mundo que os rodeia (Schwandt, 1994). O significado que os actores sociais atribuem aos eventos e ao contexto social constitui, assim, o objecto de estudo por excelência da corrente interpretativista.

Os estudiosos desta corrente defendem que o conhecimento e os significados são produto do pensamento humano, do processo de interpretação da realidade (sensemaking) (Weick, 1995), rejeitando a ideia de existência de conhecimento

objectivo, independente da interpretação humana. Mais, estes autores consideram que os significados vão sendo construídos através da interacção humana, pelo que tendem a variar de pessoa para pessoa e de contexto para contexto. Neste sentido, a realidade social tende a ser concebida não como um dado adquirido, mas como uma construção social (Locke, 2001). A realidade social vai sendo construída através da história partilhada, da experiência e da comunicação, pelo que tendem a co-existir múltiplas

realidades em simultâneo. Denota-se, assim, um entrelaçar entre a consciência humana, o processo de interpretação da realidade a própria realidade (Denzin, 1992).

Dada a imensa importância dos significados neste paradigma, os teóricos defendem que interpretação mais aproximada da realidade está dependente de uma participação activa do investigador no contexto em estudo. De entre as técnicas de recolha de dados privilegiadas estão a entrevista e a observação participante (Van Maanen, 1988), que permitem mais facilmente aceder aos sistemas de significado dos participantes. As interacções dos investigadores com os participantes são entendidas como características do próprio contexto de estudo (Gephart, 1993). E neste sentido, é de esperar a intervenção do investigador, das suas crenças e valores, em todo o processo de análise e interpretação dos dados. Tal como enfatizado por Karl Weick (1969), o próprio investigador desempenha um papel activo na construção do contexto que ele próprio está a estudar.

Os estudos que se inserem neste paradigma (e.g. Bartunek, 1984; Isabella, 1990) procuram salientar como os actores sociais vão dando sentido à sua realidade (Weick, 1995), e como estas significações vão construindo e moldando os próprios contextos onde se inserem. A título de exemplo, salienta-se o estudo de caso de uma ordem religiosa, acompanhado por Bartunek (1984), cuja interpretação sobre a sua própria missão foi alterada. A autora analisou como estas mudanças produziram efeitos na estrutura da ordem, relação esta mediada pelas reacções dos membros à mudança, numa organização onde o sentimento de pertença e de identidade é muito forte. Num segundo estudo, realizado por Lynn Isabella (1990), o autor analisou como as interpretações dos gestores evoluiam à medida que se desenrolava um processo de mudança organizacional, desde a fase dos meros rumores à fase da concretização da mudança e da tomada de conhecimento das consequências da mesma. Este estudo veio introduzir

uma nova interpretação das “resistências à mudança”, podendo estas ser entendidas não como um obstáculo à mudança, mas antes como um elemento de transição em qualquer processo de mudança.

5.2.1.1.2. O Paradigma Pós-modernista

O paradigma pós-modernismo constitui uma combinação entre a escola pós-modernista e a teoria crítica. A escola pós-modernista teve a sua origem nas artes e na literatura, tendo ficado conhecida pelo desafio de todos os cânones mais tradicionais da arquitectura, patentes na edificação de obras “voltadas do avesso”, fracturadas ou lapidadas dos lados (Locke, 2001). Na filosofia e na ciência, a escola pós-modernista começou a desenvolver-se nos anos 60, pela mão de intelectuais como Michael Foucault (1926-1984) ou Jacques Derrida (1930-2004). A teoria crítica, por seu turno, começou a emergir como corrente crítica ao sistema político vigente, que aplaudia o capitalismo e as formas de dominação, alegando produzirem injustiça e subjugação social (Kincheloe & McLaren, 1994). O capitalismo é entendido como um meio de difusão de desigualdades, no sentido em que o capitalista, que detém os meios de produção, detém o poder legitimado para explorar os trabalhadores, concedendo-lhes em troca um salário, que do ponto de vista da teoria crítica, tem menos valor económico do que o valor produtivo gerado pelo trabalhador. Em consonância com estes críticos, estas desigualdades são disseminadas pela actual ideologia ocidental, que as encoraja, levando as pessoas a aceitar e a manter o status quo, considerado como natural e inalterável.

Transpondo para o campo científico, da combinação destas duas correntes, o paradigma pós-modernista apresenta uma visão ainda mais subjectiva dos fenómenos

mutuamente causais (McKelvey, 2004). Este paradigma assenta em duas premissas fundamentais: a rejeição de narrativas a priori e a aceitação de que as condições sociais estão em mudança constante (Kincheloe & McLaren, 1994). Deste modo, o pós- modernismo rejeita qualquer possibilidade de a ciência ser concebida como um referencial objectivo, advogando que qualquer cientista está envolto num determinado contexto, embebido de história, valores e políticas (Hatch, 1997). O conhecimento é entendido como fragmentado e instável, e qualquer tentativa de organização deste corpo teórico é vista como uma forma de dominação e de incapacidade para perceber e aceitar a natureza instável do conhecimento e da realidade. Os pós-modernistas defendem, assim, que a realidade vai sendo construída pelo discurso e pelos sistemas de significados presentes num determinado contexto histórico-cultural. A realidade é o que é representado como sendo a realidade (Hatch, 1997).

A prevalência da natureza idiossincrática dos fenómenos leva os defensores do pós- modernismo a fazerem uso de técnicas de recolha de dados subjectivas e ricamente descritivas, assumindo os estudos a forma de narrativas, como ensaios teóricos, estudos de campo ou estudos de caso (Calás & Smircich, 1999; Van Maanen, 1988). Com base nas técnicas da desconstrução e da análise textual, o investigador procura identificar as estruturas de dominação e de exploração, especialmente as dicotomias (e.g. capitalista- trabalhador; masculino-feminino) que perpetuam o status quo, e que se encontram muitas vezes camufladas nos discursos. Em seguida, os investigadores reconstroem todo o discurso, apresentando uma visão alternativa, menos exploradora e sexista. As teorias emergentes são, na perspectiva destes teóricos, interpretações que transcendem a visão

ideológica vigente dos fenómenos sociais, desreificando as estruturas sociais antes vistas como imutáveis e incorporando mudanças que produzem uma sociedade mais igualitária, menos alienada e contraditória (Kincheloe & McLaren, 1994).

Vários estudos (e.g. Boje, 1995; Martin, 1990) têm sido conduzidos com o propósito de desconstruir o discurso presente numa dada realidade, que reforça o controlo e as desigualdades de controlo e de género, respectivamente. A título de exemplo salienta-se o estudo de Boje (1995), no qual o autor, utilizando a análise discursiva aos discursos presentes na Disney, fez emergir as vozes marginalizadas desta empresa. Uma peça, Tâmara, foi usada como metáfora para demonstrar as múltiplas interpretações que coexistiam acerca do autoritarismo e da orientação para a sobrevivência que a empresa tendia a assumir. No segundo estudo, Martin (1990) analisou o discurso predominante numa organização que apelava para a necessidade de a organização ajudar as trabalhadoras do sexo feminino a balancearem as tarefas do trabalho com as domésticas. Através da desconstrução do discurso, a autora verificou que o grande beneficiário da veiculação deste discurso era a própria organização, que procurava justificar a discriminação existente nas tarefas e nos salários entre homens e mulheres.

5.2.1.1.3. Paralelismo entre os Três Paradigmas da Ciência Em síntese, os três paradigmas que tendem a dominar a ciência – positivista, interpretativismo e pós-modernismo – apresentam concepções muito distintas sobre o mundo e a ciência, que se reflectem em diferentes formas, designs, métodos e técnicas de investigação. O paradigma positivista concebe a existência de uma realidade objectiva, propondo-se descobrir as verdades e os factos sobre essa realidade, recorrendo, para tal, à aplicação de procedimentos precisos de controlo das variáveis e a instrumentos rigorosos de mensuração. De acordo com o paradigma interpretativista, a realidade é percebida subjectivamente pelos actores sociais, desempenhando os investigadores o importante papel de análise dos sistemas de símbolos e significados que os primeiros atribuem à realidade. Tal papel encontra-se facilitado com a imersão

do investigador no contexto em estudo, por meio de técnicas de recolha de dados que permitem a proximidade e o aprofundamento do investigador com o seu objecto de estudo. No âmbito do paradigma pós-modernista, a realidade vai sendo construída pelo discurso vigente numa determinada época histórica, veiculando a ideologia que serve os interesses e mantém as estruturas de poder da classe dominadora.

Em seguida, apresenta-se uma tabela que procura estabelecer um paralelismo entre os três paradigmas vigentes na ciência, por forma a facilitar uma melhor compreensão.

Tabela 8: Os três paradigmas vigentes na ciência. Baseado em Calás e Smircich (1999), Guba e Lincoln (1994) e Schwandt (1994)

Positivismo Interpretativismo Pós-modernismo Pressupostos A realidade é objectiva,

visando a ciência a busca da verdade universal; A realidade é subjectiva, procurando a ciência identificar os significados; A realidade é fragmentada e contraditória, podendo ser compreendida apenas pela remoção da ideologia;

Focus Procura as variáveis

contextuais e organizacionais que causam o comportamento;

Procura os padrões de significado;

Procura as contradições escondidas nas ideologias;

Natureza do conhecimento (forma da teoria)

Hipóteses confirmadas, que envolvem medidas das variáveis fiáveis, válidas e sensíveis;

Descrição abstracta dos significados e dos contextos produzidos numa dada situação;

Insights históricos ou estruturais reveladores de contradições;

Teorias centrais Contingencial, dos sistemas, teoria ecológica, empirismo;

Interacionismo simbólico, fenomenologia,

hermenêutica;

Marxismo, teoria crítica, pos-estruturalismo, desconstruccionismo, semiótica;

Figuras centrais Lorsch e Lawrence, Hannan e Freeman, Oliver Williamson;

Goffman, Garfinkel, Schutz, Van Maanen, Silverman;

Marx, Habermas, Offe;

Critérios de avaliação da investigação

Predicção das causas, com base em medidas rigorosas, fiáveis e válidas;

Confiança, autenticidade Consistência teórica,

insights históricos, narrativas de mudança e de mobilização;

Unidade de Análise

A variável; O significado, o acto simbólico; Contradições, incidentes de exploração; Tipos de investigação Experimental; quasi- experimental, pré- experimental; Etnografia, Grounded Theory, estudos de caso;

Estudos de campo, estudos de caso; Técnicas de recolha de dados Questionários; documentos codificados quantitativamente. Observação participante; entrevistas.

Análise histórica; análise dialéctica.

5.2.1.1.4. A Identidade Organizacional Segundo os Três Paradigmas da Ciência

Estes três paradigmas estão bem patentes na literatura da identidade organizacional. Duas concepções da identidade organizacional tendem a dominar a literatura: a primeira, que está alicerçada no paradigma positivista, concebe a identidade organizacional como uma entidade fixa, que tende a manter-se constante ao longo do ciclo de vida organizacional (e.g. Bouchikhi et al., 1998; Tajfel & Turner, 1979). A segunda perspectiva, que se baseia no paradigma interpretativista, concebe a identidade organizacional como uma entidade dinâmica, que está em constante mudança, em função da interacção entre os actores sociais e da interpretação e reinterpretação das experiências passadas (e.g. Fiol et al, 1998; Humphreys & Brown, 2002). Enraizada nos pressupostos pós-modernistas, encontra-se, ainda, uma terceira concepção da identidade organizacional, que a perspectiva como uma entidade fragmentada, que momentaneamente vai definindo quem os colaboradores são, em cada momento (Hatch & Schultz, 2002). Esta terceira concepção chega a conceber a identidade organizacional como uma mera metáfora organizacional.

Embora estas três concepções da identidade organizacional tendam a co-existir na literatura organizacional, a concepção dinâmica tem vindo a ganhar força, podendo já ser considerada a visão dominante. Neste sentido, a presente investigação insere-se no âmbito do paradigma interpretativista, procurando perceber como a identidade organizacional se vai modificando em função das mudanças que afectam as organizações empreendedoras.

investigação baseou-se no design da grounded theory para a análise dos dados. Foi, ainda, utilizado o design dos estudos de caso como estratégia para a recolha dos dados. Optámos pelo estudo de caso, por este se revelar o design mais adequado para o estudo aprofundado, em contexto real, de um fenómeno social (Feagin, Orum & Sjoberg, 1991). Neste domínio, utilizou-se o design dos estudos de caso múltiplos, por facilitar a análise de relações entre constructos intra e inter-casos, por um lado, e por permitir a lógica replicativa, servindo os diferentes casos para comparar e contrastar os padrões encontrados (Eisenhardt & Graebner, 2007). Deste modo, seguiu-se seis casos – seis organizações empreendedoras – ao longo de dois anos, para melhor se apreender o crescimento e as dinâmicas da identidade organizacional.

A grounded theory é o design que mais se ajusta à geração de teoria nova sobre um dado fenómeno social, especialmente quando este se encontra ainda pouco explorado (Brown & Eisenhardt, 1997). Com o presente trabalho, procura-se desenvolver novo conhecimento sobre as mudanças na identidade organizacional ao longo do tempo, por influência das mudanças organizacionais. Em síntese, procura-se com a presente investigação gerar teoria nova e interessante sobre a forma como as mudanças organizacionais afectam a identidade organizacional, com base no estudo de seis organizações empreendedoras.

Segue-se uma caracterização do design da grounded theory.