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CAPÍTULO 2: FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA Para uma melhor compreensão do tema referente a acessibilidade

2.6. ARQUITETURA RIBEIRINHA: DAS PALAFITAS ÀS ESTIVAS A urbanização na Amazônia tem na rede hidrográfica um

2.6.1. As palafitas ribeirinhas

Como uma civilização tradicional espontânea, as comunidades ribeirinhas reproduzem de maneira peculiar o tipo palafita às margens de igarapés, rios e furos da Amazônia indicando a resistência de uma cultura que se adaptou às terras baixas e alagáveis dominantes na Pan Amazônia e a uma floresta densa (MENEZES; PERDIGÃO, 2013). Para Pereira, Barros e Silva (2009), as palafitas são moradias populares que dialogam com o movimento das águas da Amazônia, permanecendo com suas estacas de madeira submersas durante a enchente e vindas à tona na vazante.

Tal condição revela que as palafitas conseguiram captar o genius

loci14. Segundo Geissler et al. (2009), este é alcançado quando o lugar comum transforma-se de acordo com a sua personalização e apropriação ao converter a utilidade em ícone e ao considerar materiais e significados. Para estes autores, isso significa: utilizar um tipo adequado às características econômicas e temas que movem o local; valorizar as

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O genius loci é um conceito romano; de acordo com um credo antigo, cada ser independente possui o seu genius, seu espírito guardião. Este espírito oferece vida aos povos e aos lugares, os acompanha desde o nascimento até a morte e determina seu caráter ou essência (BARDA, 2009, p. 35).

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relações de vizinhança; administrar os limites físicos; e trabalhar com as técnicas disponíveis.

Todas essas relações e significados fundamentam um padrão significativo aos seus assentamentos. De acordo com Rapoport (1972, p.16) a tradição tem a força de uma lei respeitada por todos, cujo enfoque funciona porque há uma imagem de vida compartilhada por todos a partir de uma hierarquia aceita e, consequentemente, um padrão de assentamento também aceito.

Em função disso, Granell e Runge (2007, p.209) distinguem duas formas de organização dos assentamentos em palafitas, os quais definem como: modelo dissociado e modelo associado.

O modelo dissociado é aquele integrado por unidades de habitações ou de equipamentos que possuem conexão entre si por via pedestre. É considerado “disperso” quando as unidades se configuram agrupadas a uma grande distância entre elas. Também pode ser considerado “compacto” quando as unidades habitacionais estão próximas entre si. Esta configuração pode ser observada em comunidades rurais como acorre na Ilha do Combu (Figura 12).

Já o modelo “associado" também é definido como aquele integrado por unidades de casas ou de equipamentos conectados entre si por via pedestre. Contudo, não existem modelos associados dispersos, apenas compactos. Este tipo de modelo é identificado em alguns povoados como o Pueblo Viejo e Ceuta de Agua, na Venezuela (Figura 13). Já no meio urbano, observa-se essa configuração nos assentamentos informais como favelas e em algumas cidades e povoados da Amazônia, como é o caso da cidade de Afuá (Figura 14). Na região Amazônica, segundo Simonian (2010), o modelo “associado” é conhecido pelos seus moradores por meio do termo “apinhado”, que significa habitações dispostas de forma aglomerada.

Figura 12- Ilha do Combu- Exemplo de assentamento “dissociado”, tendo em alguns trechos concentrações dispersas e em outros compactos

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Figura 13- Exemplo de assentamentos no modelo associado. Pueblo Viejo e Ceuta de Agua, Venezuela (desenho esquemático)

Fonte: GRANELL e RUNGE, 2007.

Figura 14- Exemplo de assentamentos em palafita no modelo associado. Casas em assentamentos informais em Manaus- AM e a Cidade de Afuá- PA

Fonte: SORIANO, 2010; BRENTANO, 2011.

As palafitas possuem um “tipo” arquitetônico que, segundo Martínez (1998), expressa a complexidade da habitação e identidade mediante a linguagem para comparação a outras edificações e aos signos. Com base nisso, Oliveira (2010) acredita que a arquitetura ribeirinha amazônica absorveu não apenas a influência das construções indígenas, mas também as nordestinas, tanto em questões formais, quanto na adaptação de materiais locais.

As habitações indígenas dos povos Wajãpi15, que habitam as regiões do Pará, do Amapá e da Guiana Francesa, servem como um dos exemplos da influência indígena muito presente na casa tradicional ribeirinha (Figura 15). Observam-se as semelhanças dos princípios construtivos, sobretudo, do material utilizado: a palha para a cobertura em duas águas e para os fechamentos; a planta retangular; o cipó para as amarrações; a estrutura de madeira. Incorpora-se também o jirau como um compartimento externo ou interno para armazenar, lavar a louça e tratar os alimentos (Figura 16). A diferença está nos fechamentos

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Estes índios, principalmente os que vivem no Amapá, não se fixam em um só local, preferem construir várias casas em aldeias diferentes, onde passam determinado período do ano (AMAPÁ, 2014).

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laterais, incluindo a madeira ou o bambu e na divisão interna dos compartimentos da casa ribeirinha.

Figura 15- Casas de palafita dos povos indígena Wajãpi e a tradicional do ribeirinho

Fonte: AMAPÁ, 2014; Própria autora, 2013.

Figura 16- Utilização do cipó para amarrações e a adaptação do jirau pelos ribeirinhos

Fonte: Própria autora, 2013.

Já para a afirmativa sobre a influência nordestina, Oliveira (2010) em seu estudo sobre “Arquitetura ribeirinha sobre as águas da Amazônia”, considerou como referencial formal as casas nordestinas da Cidade de Acupaí, no Estado do Ceará, das quais foram objetos de estudo da tese de doutorado de Daniel Ribeiro Cardoso (2008). A partir das considerações de Cardoso (2008) sobre as características arquitetônicas das casas nordestinas, Oliveira pôde fazer as similaridades entre a arquitetura cearense e a arquitetura ribeirinha.

A partir das conclusões de Oliveira (2010), percebe-se que as similaridades entre a casa ribeirinha e as casas nordestinas constituem-se de sua planta retangular, onde a parte frontal é representada pela dimensão menor. A casa possui uma varanda ou alpendre que cria uma circulação coberta que rodeia toda a edificação, criando assim, uma simetria como observada na palafita da comunidade de santa Luzia do Baixio, no Amazonas Figura 17. Outro ponto semelhante é o telhado composto por duas águas.

Para melhor compreensão dessas considerações, a Figura 17 mostra o cruzamento das imagens disponíveis, tanto na tese do Cardoso quanto na dissertação de Oliveira. As casas nordestinas junto à casa

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indígena confirmam as semelhanças e à influência destes dois povos na arquitetura ribeirinha. Por outro lado, a Figura 17 mostra como, mesmo sob influência externa, o povo ribeirinho conseguiu imprimir na sua arquitetura a sua identidade regional, exemplificadas nas palafitas da cidade de Afuá, no Pará.

Figura 17- A influência da arquitetura indígena e nordestina na arquitetura ribeirinha

Fonte: CARDOSO, 2008; AMAPÁ, 2014; SCHLZE apud OLIVEIRA, 2010; THIELY, 2010; Própria autora, 2013.

Infelizmente, mesmo diante de habitações com grande respaldo cultural, a questão da sua preservação e conservação é afetada pelas transformações advindas da cultura moderna. Neste sentido, relata-se aqui um exemplo destas transformações que está ocorrendo na Ilha do Combu e em outras localidades paraenses.

Observa-se que na ilha do Combu as casas de palafitas construídas em madeira, aos poucos estão sendo substituídas por casas de alvenaria. A casa de alvenaria significa a muitos moradores uma forma de ter moradia com melhores condições, status daqueles com melhor poder aquisitivo e da participação no progresso da sociedade moderna, uma vez que a palafita, para muitos, carrega o estigma da pobreza.

O problema não está na inclusão de casas de alvenaria, mas na escolha de materiais, de sistemas construtivos e de tipologias inadequados concebidos sem o aporte técnico correto para este meio natural. Além disso, tais problemas contribuem para uma perda cultural local, principalmente quando seu desenho destoa significativamente do ambiente tradicional.

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Nesta perspectiva, cabe destacar que, no mundo, existem referências positivas de edificações em palafitas que seguem o modelo tradicional, mesmo sendo incorporados materiais diversificados. Prova disso está presente em vários hotéis de luxo construídos em estrutura palafitada.

Nestes hotéis a tipologia arquitetônica segue o desenho tradicional ribeirinho em forma, função e na utilização de materiais típicos da região. O diferencial está no emprego de materiais considerados distintos deste contexto como: o vidro, alumínio, ferro, cerâmicas e de equipamentos de alta tecnologia. Neste caso, o trabalho de profissionais especializados contribui também na concepção de ambientes mais sofisticados para acomodar seus hóspedes.

Dentre as referências positivas, apresenta-se o hotel de luxo localizado em uma ilha tropical privada de Lankanfushi no Atol de Male, de um pequeno país insular chamado de República das Maldivas, situado no Oceano índico (Figura 18). No Brasil, tem-se o hotel de luxo chamado Ariaú Amazon Towers localizado em plena selva em Manaus. Este último possui várias torres em palafitas em formato cilíndrico, que mesmo diferente da casa ribeirinha, apresenta-se como uma estrutura eficiente, singular e conveniente ao meio (Figura 18).

Figura 18- Palafitas de luxo na ilha tropical privada de Lankanfushi, República de Maldivas e o hotel com formato cilíndrico, localizado em Manaus,

Brasil

Fonte:KIWI COLLECTION, 2014; PRINCIPE, 2011.

Claro que, embora estes exemplos estejam direcionados à elite, é relevante destacar aquilo que é possível de ser realizado conforme as condições do local e dos moradores. A intervenção de profissionais especializados em parceria com a comunidade promoveria a importância da conservação e preservação desta arquitetura, por meio do aprofundamento cultural local junto a estudos técnicos que esclarecessem a inclusão de outros materiais e outras técnicas construtivas. Isso permite o profissional fazer uma releitura proposital

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destas habitações, sem que haja a descaracterização dos traços tradicionais.

A partir deste pensamento e do alcance da moradia digna, tais conhecimentos poderiam possibilitar também novas soluções com custos mais acessíveis que poderiam ser aplicados e difundidos para suprimir os problemas da habitação popular e dos acessos públicos nas localidades ribeirinhas.