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Para além da ideologia, o foco no poder

1.2 Configuração da Pesquisa

1.3.1 Para além da ideologia, o foco no poder

O interessante dos prêmios é que eles não são elaborados necessariamente por um tipo profissional ou algum setor da sociedade39. Existem diversos grupos que editam premiações numa rede de ação muito maior que a dos prêmios consagrados do jornalismo brasileiro. Num universo de 114 prêmios é impossível fazemos a varredura e classificação precisa de cada um, até mesmo porque uma mesma premiação pode pertencer a um ou mais modelos de jornalismo (vide o tema do prêmio, o tema anual e os subtemas das categorias). Nesse sentido, a pesquisa se afasta da questão da ideologia e se apoia na concepção de poder e de micro-poderes, onde o discurso por si só já é um tipo de poder40. E estes poderes se cruzam e se relacionam.

Foucault dá muita importância à linguagem, filologia como forma de análise. E, frequentemente, é associado à Análise do Discurso, na figura do enunciado e a

função enunciativa41. Esclarece-se que utilizamos o autor apenas na questão de criar duas grandes epistemes com as quais classificaremos historicamente as práxis de prêmios do estudo: pós-Objetividade (redações x assessorias) e pós-Sujeito (isenção x atuação), evitando a problemática de diversos modelos e suas tensões entre si, assunto já tratado anteriormente na seção do mosaico de “ismos”42.

Não há interesse, no âmbito da pesquisa, de entrar no mérito linguístico dos locutores, interlocutores ou questões tais. Nem a ideologia e nem o discurso43 são categorias ou pressupostos para a análise. O trabalho foge dessas disputas e foca apenas nas epistemes e poder (em Foucault), configurados na pesquisa pelo modelo do

Jornalismo Informativo em relação ao Jornalismo Público (isenção x atuação) e do

Jornalismo Investigativo em relação ao Jornalismo Institucional (redações x assessorias) tratados nas duas epistemes (pós-Objetividade e pós-Sujeito) que funcionam como tipologias de práxis sobre o processo de produção da notícia.

39 Assessores (sentido RP, Comunicação Empresarial), assessores (sentido jornalistas: Jornalismo Institucional), Primeiro Setor, Segundo Setor e Terceiro Setor.

40 (FOUCAULT, 1966; 1969) 41 (FOUCAULT, 1995, p. 144-146)

42 Essa dualidade é entendida com a comparação de um discurso em relação a outro, o que confere identidade e sentido a cada formação discursiva estabelecendo um referencial do que dada práxis jornalística é (ou não é), social e historicamente. Na pesquisa, esses dois discursos, pós-Objetividade e pós-Sujeito, são trabalhados num sentido histórico e cronológico de aparecimento dos saberes e poderes que configuram essas epistemes, além do fenômeno de edição de prêmios relativos a elas.

43 No que se refere a enunciados verbais de maior amplitude de dada sentença num sentido de se tornar hegemônico entre dois ou mais locutores.

A pesquisa trabalha com um corpus de 114 prêmios e se torna inviável positivar os lugares ideológicos de fala de cada premiador (com casos de premiações com até 11 entidades associadas)44. Menos ainda fazer um quadro, em quase 60 anos de prêmios, discriminando o posicionamento dos jornalistas premiados (1), em inúmeras edições (2), épocas distintas (3), atividades e funções laborais distintas (4), ainda que dentro do jornalismo brasileiro. Por isso, a base de estudo sobre essas duas tendências (Pós-Objetividade e Pós-Sujeito) e não sobre os enunciados dos 114 premiadores (ou mais)45, dos milhares de premiados em 5 décadas de premiações, dentre outros. A gama de vetores em relação a este quadro, além do fator de multiplicação desses vetores, foi o principal motivo da pesquisa de não trabalhar com a individualidade de cada locutor e suas ideologias (Bakhtin, Maingueneau, Pêcheux).

A pesquisa vai antes do discurso dos premiadores e dos premiados, escavando as origens sobre as quais as interações acontecem na conceituação de

Arqueologia do Poder (Foucault), dentro de uma estruturação do saber (epistemes), onde se posicionam os diferentes discursos antes mesmo desses se constituírem em saber profissional (no Jornalismo) ou científico (na Comunicação). O foco não é o dos locutores em si, mas dos valores que configuram as práticas em apreço (normatividade e os prêmios) inseridas em momentos históricos a serem enunciados por marcos. Não está em estudo o sujeito empírico (corpus de 114 prêmios) ou sujeito indivíduo (cada premiador e premiado em sua subjetividade), mas o sujeito do discurso (prática discursiva, episteme, paradigma, cosmovisão, entendidos como blocos de conhecimentos e práxis comuns).

A pesquisa trabalha num sentido mais de filosofia analítica (epistemes: ondas discursivas e emaranhados de conhecimentos e práxis), em detrimento de uma abordagem epistemológica muito fechada (paradigmas rígidos e fechados dentro da

44 Existem premiadores (patrocinadores, gestores, apoiadores e colaboradores) que são um arranjo complexo de vários setores da sociedade no intuito de premiar o trabalho, profissionais e empresas em jornalismo. Um exemplo: as 11 entidades que integram a comissão julgadora, gestora e realizadora do 34º Prêmio Jornalístico Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos representantes do Sindicato dos

Jornalistas Profissionais no Estado de São Paulo (1); da Ouvidoria da Polícia do Estado de São Paulo

(2); da Ordem dos Advogados do Brasil, Seção São Paulo, OAB/SP (3); do Fórum dos Ex-Presos e

Perseguidos Políticos do Estado de São Paulo (4); da Federação Nacional dos Jornalistas (FENAJ)(5);

da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP)(6); da Comissão Justiça e

Paz da Arquidiocese de São Paulo (7); do Centro de Informação das Nações Unidas no Brasil (UNIC

Rio) (8); da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (ABRAJI)(9); da Associação Brasileira de Imprensa, Representação em São Paulo (ABI/SP) (10) e o próprio Instituto Vladimir Herzog (11). 45 O 34º Prêmio Jornalístico Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos teve 11 entidades associadas em apenas uma edição. Imagine o número de dados a serem levantados em 34 edições. Só neste caso 1 prêmio é multiplicado por 11 entidades inseridas no papel de premiador. A amostra da pesquisa já tem 114 prêmios que podem gerar infinitos premiadores.

ciência), no sentido de uma Arqueologia do Saber (FOUCAULT, 1995, p. 386), acreditando que as ciências humanas não dão conta de desvendar o que o homem é por natureza, mas, sim, desvendam a positividade (configuração epistemológica) do ser humano de forma interdisciplinar, em relação a dado universo ou áreas do conhecimento, tais como Sociologia, Economia, Psicologia e Filologia46.

Entendemos os paradigmas contidos na modalidade do Jornalismo

Informativo, Jornalismo Investigativo, Jornalismo Institucional e Jornalismo Público como dispositivos de poder, tendo em si um dado saber, e o exercício de um poder específico (micro-poder), no qual inserimos os prêmios como ferramentas operantes deste saber. O termo “dispositivo” será muito utilizado para se referir aos prêmios e validação dessas duas epistemes, pois, assim como em A Ordem do Discurso, entendemos que os prêmios têm a função de validar um padrão de Jornalismo e um protocolo de procedimentos que produz e conserva discursos elaborados pelos premiadores a premiados, que irão posteriormente distribuí-los dentro de regras estritas e em espaços articulados (FOUCAULT, 1996, 26-39).

Foucault trabalha bem a questão da caracterização dos discursos de cada época histórica por meio do conceito de episteme, com o qual ele designa as relações conceituais que estruturam os diferentes tipos de discurso em uma dada época intelectual (MATTEDI, 2006). Para o autor, existe uma regularidade entre os conceitos e escolhas temáticas dos falantes, que remetem a formações discursivas, às quais se referem as falas individuais. Como nosso foco é traçar uma historicidade a partir de dois eixos (Pós-Objetividade e Pós-Sujeito) com quatro modelos (Jornalismo Informativo,

Jornalismo Investigativo, Jornalismo Institucional e Jornalismo Público), tomados como epistemes, o autor é muito pertinente à pesquisa47 48, ainda mais por nos permitir

46 A Comunicação não é citada no texto original, assim como a Sociologia, Economia, Psicologia e Filologia, mas a inserimos também neste âmbito (FOUCAULT, 1995, p. 516).

47 Aliás, só conseguimos enxergar os News Honors (premiadores, prêmios e premiados) como adjacentes, acessórios, orbitais ao processo de produção da notícia, com base na abordagem da genealogia do poder, ou arqueologia do poder, olhando para as bases (epistemes) sobre as quais se relacionam News

Promoters, News Assemblers e News Consumers. O que não foi uma experiência prévia, no pré-projeto de

pesquisa, nem mesmo na qualificação. Mas só mesmo durante a apuração da pesquisa empírica, o que levou o trabalho a uma terceira configuração.

48 Na pesquisa, não fizemos opção pelo modelo do Jornalismo Literário por não encontrar menções de que existiam prêmios nesse tipo de práxis, além do que, entendemos os prêmios vinculados à profissão de jornalista (regulamentada em lei, institucionalizada na mídia comercial, tradicional) e não à atividade jornalística (exercida por literários, comentadores, colaboradores, articulistas etc). Enfatizamos que, não trabalhamos com premiações que tenham como premiados: colaboradores, comentaristas, colunistas e outras funções na mídia que não a tradicional de repórter e de assessor de imprensa.

entrar numa perspectiva mais individual e subjetiva do indivíduo em dado contexto social, fugindo da ideia de oposição e disputa contida na categoria de ideologia.

Sousa (2002, p. 40-41), por exemplo, acredita em fatores “ecossistemáticos”, num sentido cognitivo influente no processo de produção da notícia, sendo um aspecto de "ação pessoal" (subjetividade: intenções, crenças, valores e expectativas individuais). Para o autor, até a correria das redações e as demandas de trabalho colaboram para que as rotinas produtivas instalem no indivíduo um pensamento estereotipado que serve de base para a fabricação de "informação padronizada". Ele chega a falar em “rotinas cognitivas”, dentro das rotinas produtivas. Na nossa leitura, concordamos com Sousa nessa individualização da ação (subjetividade)(1), na questão cognitiva como base da ação do jornalista (saber)(2) e ainda vemos padrões de como cobrir dada pauta por trás do indivíduo (epistemes)(3).

A partir da nossa adesão a Foucault, essa visão microssociológica (papel do indivíduo dentro de um sistema), quando Sousa comenta o Gatekeeper (White, 1950), corrobora a questão do micro-poder que vemos nas epistemes, pois escolhemos a abordagem foucaultiana para dar mais enfoque exatamente no indivíduo posicionado numa instância de poder. O intuito foi o de fugir de abordagens macrossociológicas (sistemas sociais em larga escola, como econômico, político). De forma bem resumida: quando Sousa olha o Gakekeeper e as rotinas produtivas, ele vê as “rotinas cognitivas”. Com as lentes de Foucault, ao olhar o mesmo objeto, nós vemos as epistemes, o Saber e o Poder, operantes no sistema de News Honors (premiadores, premiados, prêmios e normatividade).

Foucault não é uma escolha adequada meramente pela questão das epistemes, mas por restringir a questão das lutas ideológicas, o que é muito pertinente e operacional ao se trabalhar com um mosaico composto por: 114 prêmios, 43

regulamentos, 43 assessorias de imprensa, 25 empresas terceirizadas gestoras de prêmios, 3 configurações institucionais (Primeiro Setor, Segundo Setor e Terceiro

Setor), 2 eixos temáticos (pós-Objetividade e pós-Sujeito), 4 modelos jornalísticos

concorrentes (Jornalismo Informativo, Jornalismo Investigativo, Jornalismo

Institucional e Jornalismo Público), 3 modelos jornalísticos adjacentes (Jornalismo

Econômico, Jornalismo Corporativo e Mídia das Fontes), 2 padrões de perspectivas

teóricas (midiacêntrico e sociocêntrico) e 30 categorias de análise, atravessados por