• Nenhum resultado encontrado

Podemos agora tomar distância para avaliar o conjunto. Ficamos pobres. Abandonamos uma depois da outra todas as peças do patrimônio humano, tivemos que empenhá-las muitas vezes a um centésimo do seu valor para recebermos em troca a moeda miúda do "atual". A crise econômica está diante da porta, atrás dela está uma sombra, a próxima guerra. A tenacidade é hoje privilégio de um pequeno grupo dos poderosos, que sabe Deus não são mais humanos que os outros; na maioria bárbaros, mas não no bom sentido. Porém os outros precisam instalar-se, de novo e com poucos meios. São solidários dos homens que fizeram do novo uma coisa essencialmente sua, com lucidez e capacidade de renúncia. Em seus edifícios, quadros e narrativas a humanidade se prepara, se necessário, para sobreviver à cultura. E o que é mais importante: ela o faz rindo. Talvez esse riso tenha aqui e ali um som bárbaro. Perfeito. No meio tempo, possa o indivíduo dar um pouco de humanidade àquela massa, que um dia talvez retribua com juros e com os juros dos juros.

Walter Benjamin145 < >

O tipo mais barato de orgulho é o orgulho nacional, pois se um homem é orgulhoso de sua própria nação, afirma que ele não tem qualidades suas, das quais ele poderia se orgulhar, caso contrário ele não teria que recorrer às qualidades que ele compartilha com tantos milhões de semelhantes. O homem que é dotado de qualidades pessoais importantes estará sempre pronto para ver claramente no que respeita a sua própria nação, e no que ela fica aquém, uma vez que suas falhas estarão constantemente diante de seus olhos. Mas, cada idiota miserável que de nada pode se orgulhar de si mesmo, adota, como um último recurso, orgulho da nação a que pertence. Ele estará sempre pronto e feliz em defender todos os seus defeitos e loucuras com unhas e dentes, reembolsando-se assim da sua própria inferioridade. [...] Os alemães não têm orgulho nacional, o que mostra como eles são honestos, como todo mundo sabe!

Arthur Schopenhauer146

B.1 Introdução

Neste ponto, defino neonazismo como uma miríade de movimentos extremamente heterogênea, na qual cada grupo articula a partir de uma narrativa bi-dimensional (mítica e biológica) um modo característico de ler elementos históricos, sociais, míticos, biológicos, religiosos ou de qualquer outra ordem, dentro de um grau específico de nazificação e sob uma ótica radicalmente racializada e com certos aspectos paranóicos, de modo a formatar uma

145 Cf. BENJAMIN, W – Obras escolhidas. Vol. 1. Magia e técnica, arte e política. Brasiliense, 1987, p. 119. 146 A Sabedoria da Vida, Capítulo Posição ou lugar de um homem na Estimativa de Outros, Seção 2 -. Orgulho,

por Arthur Schopenhauer, 1890 Tradução da versão em inglês em

noção de ‗nós‘ como ‗o povo branco‘, superior, que se contraporia ao ‗outro‘ por ele construído como ‗inimigo‘ e profundamente odiado, elaborando que sua ‗sobrevivência‘ dependeria de uma masculinidade exacerbada, exaltada, violenta, nacionalista, anti-semita, disposta a morrer pela causa defendida e pela perpetuação do grupo, colocando-se em estado permanente de alerta, ‗sob ameaça‘ e em ‗guerra‘.

Seguindo Raul Hilberg147, os neonazis do século XXI são profundamente anti- semitas, assim como ―os nazistas do século XX, como os antissemitas do século XIX, e os religiosos da Inquisição do século XVI‖, e avaliam todos os judeus ―como hostis, delinqüentes e parasitas‖. (HILBERG, 1961, p. 39). O tempo apenas enrijeceu o discurso com mais ódio. Mantidos por uma militância radical arquitetada a partir desse ódio praticamente cego, apontando para uma luta contínua, os neonazistas se valem, principalmente, de dois tipos de relações discursivas: ora se articulam a referências que se pretendem científicas, por se valerem de uma gramática biologista; ora se associam a ―verdades absolutas‖ (ELIADE, 1992, p.108) cifradas em códigos simbólicos demarcados numa atmosfera profundamente mítica, estabelecendo condições para que seu léxico se pretenda irrefutável.

Geralmente, a gramática genética e o léxico mítico interagem, sempre criando uma bidimensão148, introduzindo a ideia de que os símbolos ―acordariam a memória genética‖ (isso é repetido em todos os fóruns, centenas de vezes, de várias formas) ou os ―genes abririam a alma ao mito‖ (outra fórmula muito comum nos fóruns nazis). Há a ―memória genética do mito‖ que seria a forma ―da Natureza‖ oferecer o ódio emocional aos judeus, que deveria ser elaborado de forma intelectual, por estudo, para ―o mito que organiza a alma‖. O próprio Hitler distinguiu em seus textos duas formas de antissemitismo: o emocional (gefühlsmässigen) – a expressão suprema desse modo seriam os pogroms; e o antissemitismo estabelecido pela razão (Vernunft), aquele que um governo deveria utilizar por meio de medidas legais contra os judeus, a fim de realizar sua eliminação (Entfemung) (HILBERG, 1961, p. 64).

Nos sites neonazistas, além do judeu, há outros convenientes construídos que

147

1993. HILBERG, Raul, The Destruction of the European Jews, 3rd ed., New Haven CT, 2003 [1961]

ameaçariam de extinção a ―raça ariana‖, e/ou ―a grande Alemanha149‖, formada por ―brancos de todo o mundo‖, ―um povo sob ameaça de genocídio‖: o negro, o imigrante, o estrangeiro, o deficiente. Seja pela possibilidade de casamentos inter-raciais ou por adoção de crianças negras, ou pela presença de doentes no meio branco (―arma dos judeus para destruir a raça‖), ou ―prova de contaminação judaica‖, os membros do grupo ―que lutam pelos ideais da supremacia ariana‖ (EM, NA, V88), freqüentemente narram como se descobriram portadores do ―precioso sangue‖ (3W), e como esta descoberta transformou sua vida, falam como esta descoberta foi determinante para afastá-los ―dos perigos que envolvimentos afetivos com judeus ou negros‖ apresentariam.

Os sites delimitam tabus: qualquer tentativa de se tecer um mínimo elogio a negros e judeus150, em fóruns ou listas de discussão, provoca reações fortíssimas, muitas vezes expulsões. Nos relatos, exemplos peculiares de narrativas rituais, o processo de ―se descobrir ariano‖ (HLOBO) ganha status de iluminação, e a vida, a partir desta descoberta, um ―real sentido‖ (JNS). Outro interdito aparece nas linhas, por vezes nas entrelinhas: é preciso cuidar para que ―a liberdade de expressão não seja castigada pelo poder público‖ (NLNS, AARG). Há grande medo de que o ―poder estabelecido‖ os proíba de falar abertamente a respeito de seu ódio racial.

A ideia de ―natural e mítica‖ pode ser observada nestes exemplos etnográficos:

<etno19>Cada um de nós é membro da raça Ariana (ou Européia), (...) e desenvolveu suas características especiais ao largo de milhares de anos, (...) a fez avançar pelo seu caminho evolucionário. [para] (...) sobreviver a um inverno requeria planejamento e autodisciplina, avançaram mais rapidamente no desenvolvimento de suas faculdades mentais mais elevadas -- incluindo as habilidades para conceptualizar, resolver problemas, fazer planos para o futuro e adiar a gratificação -- do que aqueles que permaneceram em um clima relativamente invariável dos trópicos. [as] as raças variam hoje em suas capacidades para construir e manter uma sociedade civilizada e, mais em geral, em suas habilidades para ter uma mão consciente à Natureza na tarefa da evolução. (...) somos conscientes de nossa própria natureza e nossas relações com o resto do mundo,

149 Falo sobre essa construção da Alemanha, muito mais virtual e mítica que real, em meu Mestrado. CF. DIAS,

Adriana. Os anacronautas do teutonismo virtual: uma etnografia do neonazismo na internet. Dissertação de Mestrado. Campinas, SP: Unicamp, 2007

150 Embora haja nos sites menções negativas a outras minorias, como ciganos, armênios, e homossexuais, estes

últimos tratados como deficientes morais, este trabalho se centra na análise que os sites fazem do judeu e do negro, seu objeto de ódio privilegiado. Acerca da homossexualidade, transcrevo um texto, retirado do Valhalla 88: ―Homossexualismo é uma perversão repugnante que infelizmente passou a ser aceita na sociedade

politicamente correta (leia-se idiotizada) em que vivemos, qualquer pessoa com um mínimo de inteligência constata, sem muito esforço, que este é um comportamento completamente antinatural. Não fossem os anos de domínio judaico dos meios de comunicação, certamente o homossexualismo ainda seria encarado como uma doença. ‖

nós temos uma inevitável hierarquia de obrigações e responsabilidades. A natureza tem refinado e polido as qualidades especiais corporizadas na raça Ariana para que pudéssemos ser mais capazes de cumprir totalmente a missão que nos foi designada.

[...] a Deusa é a soma total de todas as essências, e todas as forças e formas que emanam delas, que compõem tudo no mundo manifesto e não manifestado. A Deusa é o grande ser que anima a Terra. As mulheres e suas deusas interiores, são "Faíscas da Deusa", entidades espirituais que expressam um a alma do povo através do mundo físico e natural [...] as mulheres [...] reconhecem e encarnam essa divindade em um grau limitado. </etno –WAU>

Assim, a ―raiz‖, seja ―genética‖, ou mesmo ―mitocondrial ariana‖ (SWP), aloja-se na pauta de discussão acerca de identidades, emoldurada na contemporaneidade pela volta ao biologismo – no qual o léxico genômico se destaca – para enquadrar o velho discurso na nova genômica. Para isso, esses internautas privilegiam o evolucionismo, e a genômica determina varias dúvidas postadas nos fóruns, como estas postadas num antiga comunidade do Orkut:

<etno 20> Pergunta: [...] meu primo tem características genéticas italianas e

portuguesas, mas também indígenas (em pequena quantidade). Ele possui pele branca e tem características predominantemente européias, porém, sei que ele também possui genes provenientes dos povos indígenas, devido a impurificação de sua mãe.

Resposta: [...]a pessoa em questão seria 1/8 indígena, em geral os traços de

miscigenação costumam aparecer até a 4ª ou 5ª geração, [...] só podemos considerar ariano o que apresentar menos de 32% de material genético não ariano. (CORK – Poder Branco)

Pergunta: Sou filho de brancos, neto de brancos, sou caucasiano, eu posso ter uma

mitocôndria negra? ou talvez um gameta negro, ou células negras?

Resposta Não seria melhor pra humanidade evitar a reprodução de genes ruins (como os

meus) e incentivar a reprodução de pessoas com genes bons? </etno C38>

Outro elemento sempre presente é o negacionismo. Há alguns anos, numa entrevista ao jornal ―Folha de São Paulo‖, falando acerca do impacto das novas tecnologias, Jean Baudrillard151 resumiu como a WEB destaca questões da contemporaneidade: ―hoje não pensamos o virtual, é o virtual que nos pensa‖152

. Nossa querela com o espaço hypermediado demanda negociação, distorção, apropriação, ressignificação com novas dimensões processando cronotopias e cronodistopias, para revelar aspectos emergentes em que estamos todos inseridos. Dessa forma, o neonazismo revela e denuncia aspectos emergentes do social,

151 Jean Baudrillard, sociólogo, ex-professor da Université Paris X – Nanterre, discute as teorias de comunicação,

criticando as noções sociológicas constituídas.

152

Entrevista concedida ao caderno MAIS!, em 28 de janeiro de 1996. Disponível na internet por meio do arquivo folha, acessível aos assinantes UOL, em http://www.uol.com.br/fsp.

como uma ―transparência imperceptível153‖. Na supracitada entrevista, Jean Baudrillard se vale de um exemplo absolutamente adequado a essa discussão, e, segundo ele, ―delicado‖, precisamente porque simula o prolongamento, a continuidade do fato mais assustador e incompreensível da história moderna: o extermínio em massa, planejado, burocrático. Há ainda aqueles que negam sua existência, os negacionistas154

Os neonazistas são negacionistas155. Negam a historiografia da perseguição dos judeus, a qual ocorreu desde sempre – desde Roma à Inquisição, incluindo o Holocausto – porque é preciso demonizar o judeu, convertê-lo no inimigo conveniente (refiro-me mais uma vez ao texto de Peter Gay, O Cultivo do Ódio). Embora a proposição negacionista, uma tese que se ambiciona historiográfica, seja extremamente quebradiça diante dos fatos, por que é preciso proteger esses mesmos fatos contra os que se posicionam como negacionistas? Por que é preciso se dedicar, como têm feito tantos historiadores, a comprovar o incontestável?

Contudo, o neonazismo não vive apenas de genômica, mito e negacionismo. Essa narrativa trifásica precisa de outros elementos para dar conta de um discurso de ódio incessante, tornando-se preciso pensar sua origem. A doutrinação do ódio da sociedade vitoriana pode oferecer pistas preciosas: foi construída em conjunto com a crença na individualidade humana. A produção coletiva histórica e social do ódio, primeiramente nas sociedades germânica e francesa e depois na Européia do século XIX, foi extensivamente explorada por Peter Gay em O Cultivo do Ódio: a experiência burguesa da rainha Vitória a Freud. Segundo afirma o autor, ―toda cultura, toda classe, todo século constrói seus próprios álibis para a agressão‖ (p.43)

Na década vitoriana, a atmosfera do ódio foi justificada num tríptico, no qual os estratagemas cognitivos que fundam os nacionalismos e o ódio são objeto de cultivo: (1) no sentido de sua natureza trabalhada árdua e continuamente; (2) cultivar no sentido de que esse ódio exerce a função de um objeto de culto, religioso; e (3) no sentido de ―ser culto‖, de preencher o locus de ―em estado de civilização‖. Odiar vira um estado permanente de superioridade racial, lingüística, moral, intelectual, filosófica, religiosa, a ser plenamente cultivado coletivamente.

153 Cf. BAUDRILLARD, J. A transparência do mal. Ensaio sobre os fenômenos extremos. Campinas: Papirus,

1990. Por exemplo, o discurso neonazista de terceira etapa revela a sociedade na qual estamos inseridos.

154 A pseudo-historiografia que pretende discutir a validade histórica do holocausto se autodenomina revisionista.

O termo negacionista se refere à corrente que se opõe ao revisionismo.

Para dar conta dessa triplicidade de sentidos, o cultivo do ódio se vale de três principais racionalizações, desenvolvidas desde a era vitoriana, e não menos atuais na extrema direita: em primeiro lugar, a idéia de uma ―concorrência, pautada pela vida biológica, que se estendeu sobre a economia, a política e todas as esferas de compreensão do final do século XIX‖ (PETER GAY, 1993, p. 56), e que nos neonazistas assume a forma da compreensão de sua superioridade ―natural‖ e ―moral‖, ―genômica e mítica‖, ―de sangue e honra‖, estabelecida na competição entre os melhores, uma delirante e belicosa meritocracia super exagerada. Essa competição acaba por criar uma persona militarista (que Gay explora na análise histórica dos duelos, assim como Norbert Elias em Os Alemães) por meio do efeito combinado de violência, competição excessiva por recursos, adoração da hierarquia e rigidez, para satisfazer as necessidades dos que escolhem odiar e se diferenciar de ―outros‖ e garantir sua ―superioridade‖, ―eu‖ e ―territorialidade‖.

Em segundo lugar, conforme considerado por Peter Gay, está a construção do ―Outro conveniente‖ uma construção social que confirma a superioridade de um grupo sobre os outros, enumerando justificativas para inventar um mundo de ―estranhos‖, a quem é possível e até adequado ―contradizer, tratar com superioridade, ridicularizar, explorar, exterminar‖ (p.43). por trás do ―Outro conveniente‖ haverá sempre, segundo o que propôs Peter Gay, um álibi muito útil para agredir e excluir, apontando diferenças físicas, culturais e socioeconômicas que, ao serem absorvidas, projetadas e generalizadas, implicaram sempre em preconceito e crueldade.

Enfim, em terceiro lugar, o cultivo do ódio se desenvolveria pelo culto da masculinidade, que, segundo o autor, funcionaria, ―na melhor das hipóteses, [como] um mecanismo incerto para a liberação de impulsos agressivos‖ (p.103). O descontrole do desejo masculino, uma prova de sua virilidade, a posse das mulheres, era um elemento central desse processo. Obviamente, a homossexualidade e o aborto são listados como agressões a esse culto.